Budismo. Shunya.
Grupo de Estudo de Prática Budista. Por Jack Kornfield (1945- ). KARMA – O CORAÇÃO É NOSSO JARDIM. O Sutra
Avatamsaka é o texto budista que descreve as leis que governam os
milhares de possíveis domínios do universo; domínios de prazer e de dor,
domínios criados pelo fogo, pela água, pelos metais, pelas nuvens ou até mesmo
pelas flores. Cada universo, diz-nos o sutra, segue a mesma lei
básica: em cada um desses domínios, se você plantar uma semente de manga, terá
uma mangueira, e se plantar uma semente de maçã, terá uma macieira. Assim é em
todos os domínios que existem no mundo dos fenômenos da criação. A lei do karmadescreve
o modo como causa e efeito regem os padrões que se repetem através de toda a
vida.Karma significa que nada surge por si mesmo. Cada experiência
é condicionada por aquilo que a precede. Desse modo, nossa vida é uma série de
padrões inter-relacionados. Os budistas dizem que a compreensão dessa lei é
suficiente para se viver sabiamente no mundo. O karma existe
em muitos níveis diferentes. Seus padrões governam as imensas formas do
universo, tais como as forças gravitacionais das galáxias, e os mais sutis e
diminutos modos pelos quais, a cada momento, nossas escolhas humanas afetam o
nosso estado mental. No nível da vida física, por exemplo, se uma pessoa olha
para um carvalho, ela pode ver o "carvalho" manifestando-se em algum
dos diferentes estágios de seus padrões vitais. Num determinado estágio do
carvalho padrão, o carvalho existe sob a forma de bolota; num estágio
subsequente, ele vai existir sob a forma de árvore nova; noutro estágio, sob a
forma de árvore adulta; e, ainda noutro, sob a forma de bolota verde crescendo
nessa árvore adulta. Em rigor, não existe o "carvalho" definitivo.
Existe apenas o carvalho padrão através do qual certos elementos seguem as leis
cíclicas do karma: um arranjo específico de água, minerais e a
energia solar que o transforma, infinitas vezes, de bolota em árvore nova e
depois em árvore adulta. De modo semelhante, as tendências e hábitos da nossa
mente são padrões kármicos que repetimos infinitas vezes, como
a bolota e o carvalho. Ao abordar esse tema, Buda perguntou: "O que vocês
acham que é maior: a mais alta montanha da Terra ou a pilha de ossos que
representa as vidas que vocês viveram infinitas vezes em cada domínio governado
pelos padrões dos seuskarmas? Maior, meus amigos, é a pilha de ossos;
maior do que a mais alta montanha da Terra". Vivemos num oceano de padrões
condicionadores que repetimos infinitas vezes e, ainda assim, raramente notamos
esse processo. Podemos compreender com mais clareza o funcionamento do karma na
nossa vida se olharmos esse processo de causa e efeito nas nossas atividades
comuns e observarmos como os padrões repetitivos da nossa mente afetam o nosso
comportamento. Por exemplo, nascidos numa certa cultura em determinada época,
assimilamos determinados padrões de hábitos. Se nascermos numa taciturna
cultura pesqueira, aprendemos a ser calados. Se crescermos numa cultura
mediterrânea mais expressiva, talvez expressemos nossos sentimentos com gestos
amplos e tenhamos uma maneira de falar espalhafatosa. Nosso karma social,
parental, escolar e condicionamento linguístico, cria padrões completos de
consciência que determinam o modo como vivenciamos a realidade e o modo como
nos expressamos. Esses padrões e tendências são, muitas vezes, bem mais fortes
do que as nossas intenções conscientes. Quaisquer que sejam as circunstâncias,
são os velhos hábitos que irão criar o modo como vivemos. Lembro de ter ido
visitar minha avó num prédio de apartamentos exclusivo para idosos. A vida ali
era tranquila e sedentária para a maioria dos moradores. O único lugar onde
algo acontecia era no saguão, e os moradores interessados iam até lá para
observar quem entrava e saía. No saguão, havia dois grupos de pessoas. Um grupo
sentava-se ali regularmente e se divertia, jogando cartas e cumprimentando
todos os que passavam. Tinham um relacionamento agradável e amistoso entre si e
com as circunstâncias à sua volta. Do outro lado do saguão, ficavam as pessoas
que gostavam de reclamar. Para elas, havia algo errado com todo mundo que
passava pela porta. Entre uma pessoa que passava e outra, reclamavam,
"Você viu que comida horrível nos serviram hoje?". "Viu o que
fizeram com o quadro de avisos?". "Você sabe para quanto vai subir o
nosso condomínio?". "Sabe o que disse o meu filho a última vez que
esteve aqui?" Esse era um grupo de pessoas cuja principal relação com a
vida era reclamar dela. Cada grupo levou para o edifício um padrão com o qual
tinha vivido durante muitos anos. Circunstâncias e atitudes mentais que se
repetem por muito tempo tornam-se a condição daquilo que chamamos de
"personalidade". Quando perguntaram ao Lama Trungpa Rinpoche o que
iria renascer nas nossas próximas vidas, ele respondeu brincando: "Seus
maus hábitos". Nossa personalidade é condicionada pelas causas passadas.
Às vezes isso é evidente, mas com muita frequência os hábitos que se originam
do passado distante e esquecido passam despercebidos. Na psicologia budista, o
condicionamento kármico da nossa personalidade é classificado
de acordo com três forças inconscientes básicas e tendências automáticas da nossa
mente. Existem os tipos marcados pelo desejo, cujos estados mentais mais
frequentes estão associados à avidez, à carência, ao sentimento de não ter o
suficiente. Existem os tipos marcados pela aversão, cujo estado mental mais
comum é rechaçar o mundo através do julgamento, do desagrado, da aversão e do
ódio. E existem os tipos marcados pela confusão, cujos estados mais
fundamentais são a letargia, a ilusão e a desconexão, não sabendo o que fazer a
respeito das coisas. Você pode testar qual o tipo que predomina em você
observando sua maneira peculiar de entrar num ambiente. Se seu condicionamento
for mais fortemente aquele do desejo e da carência, você tenderá a olhar em
volta e ver aquilo de que gosta, aquilo que você pode obter; você verá as
coisas que o atraem; observará o que é belo; apreciará um bonito arranjo de
flores; gostará do modo como algumas pessoas estão vestidas; encontrará alguém
sexualmente atraente ou vai imaginar que há pessoas simpáticas que
valerá a pena conhecer. Se você é do tipo aversão, ao entrar na sala, em vez de
ver primeiro aquilo que você deseja, você tenderá a ver o que está errado.
"Ambiente muito barulhento. Não gosto do papel da parede. As pessoas não
estão vestidas adequadamente. Não gosto do jeito como tudo foi organizado".
E se você é uma personalidade confusa, talvez entre na sala, olhe em volta e
não saiba como se relacionar, perguntando a si mesmo: "O que está
acontecendo aqui? Onde eu me encaixo neste ambiente? O que devo fazer?".
Esse condicionamento primário é, na verdade, um processo de grande influência.
Ele cresce e se transforma naquelas forças que levam sociedades inteiras para a
guerra, criam o racismo e dirigem a vida de muitas pessoas à nossa volta.
Quando, pela primeira vez, encontramos em nós mesmos as forças do desejo e da
aversão, da avidez e do ódio, podemos pensar que elas são inofensivas, contendo um
pouquinho só de carência, de desagrado, um pouquinho de confusão. No entanto, à
medida que observamos o nosso condicionamento, vemos que o medo, a cobiça e a
fuga são, na verdade, tão compulsivos que governam muitos aspectos da nossa
personalidade. Pela observação dessas forças, podemos ver como operam os
padrões dokarma. Quando, na meditação, começamos a olhar atentamente
nossa personalidade, em geral nosso primeiro impulso é procurar livrar-nos dos
nossos velhos hábitos e defesas. De início, a maioria das pessoas acha a sua
própria personalidade difícil, desagradável e até mesmo insípida. A mesma coisa
pode acontecer quando olhamos para o corpo humano. Ele é belo quando visto a
distância certa, na idade certa e à luz certa, mas, quanto mais de
perto o olhamos, mais cheio de defeitos ele se torna. Quando notamos essa
imperfeição, procuramos fazer regime, jogging, tratamento de pele,
exercícios e tirar férias para melhorar o físico. Mas, embora tudo isso possa
ser benéfico, continuamos a estar basicamente presos ao corpo com que nascemos.
A personalidade é ainda mais difícil de ser modificada do que o corpo; contudo,
o propósito da vida espiritual não é fazer com que nos livremos da nossa
personalidade. Parte dela já existia quando nascemos, parte tem sido
condicionada pela nossa vida e cultura e, diga-se o que se quiser, não podemos
viver sem ela. Todos nós, na face desta Terra, temos um corpo e uma personalidade.
Nossa tarefa é aprender muitas coisas sobre esse corpo e sobre essa mente, e
despertar dentro deles. Compreender o jogo dokarma é um aspecto do
despertar. Se não estivermos conscientes, nossa vida simplesmente irá seguir,
infinitas vezes, o padrão dos nossos hábitos passados. Mas, se formos capazes
de despertar, estaremos aptos a fazer escolhas conscientes quanto ao modo de
responder às circunstâncias da nossa vida. Nossa resposta consciente irá então
criar o nosso karma futuro. Podemos ser ou deixar de ser
capazes de mudar as circunstâncias externas, mas, com percepção consciente,
podemos sempre mudar nossa atitude interior, e isso é suficiente para
transformar a nossa vida. Mesmo nas piores circunstâncias externas, podemos
escolher se vamos ao encontro da vida com medo e ódio ou com compaixão e
compreensão. A transformação dos padrões da nossa vida sempre se processa no
nosso coração. Para compreender como trabalhar com os padrões kármicos precisamos
observar que okarma tem dois aspectos distintos: o karma que
é o resultado do nosso passado e o karma que as nossas
respostas atuais estão criando para o nosso futuro. Recebemos os resultados da
ação passada; e isso é algo que não podemos mudar. Mas, ao
responder no presente, também criamos um novo karma. Semeamos
as sementes karmicas para colher novos resultados. Em sânscrito, a palavra
"karma" geralmente vem junto com outra palavra, "vipaka", karma-vipaka. Karma significa
"ação" e vipaka, "resultado". Ao lidar com cada
momento da nossa experiência, usamos meios hábeis (conscientes) ou meios
inábeis (inconscientes). Todas as respostas inábeis, como avidez, aversão e
confusão, inevitavelmente criam mais sofrimento e karma doloroso.
As respostas hábeis, baseadas na percepção consciente, no amor e na
receptividade, levam inevitavelmente ao bem-estar e à felicidade. Através de
meios hábeis, podemos criar novos padrões que transformam a nossa vida. Até
mesmo os padrões poderosos baseados na avidez, na aversão e na ilusão contêm
dentro de si as sementes de respostas hábeis. O desejo por prazer pode ser
transformado numa ação natural e compassiva que traz beleza à sociedade e ao
mundo que nos cerca. O temperamento que julga, do tipo aversão, através da
percepção consciente pode transformar-se naquilo que é chamado sabedoria
discriminativa: uma clareza associada à compaixão, uma sabedoria que vê
claramente através de todas as ilusões do mundo e usa a clareza da verdade para
ajudar e curar. Até mesmo a confusão e a tendência a desligar-se da vida podem
ser transformadas numa equanimidade sábia e ampla, num equilíbrio sábio e
compassivo que envolve todas as coisas com paz e compreensão. Tradicionalmente,
o karma é discutido nos ensinamentos budistas em termos de
morte e renascimento. Buda, o sublime, falou de uma visão na noite de sua
iluminação, na qual viu milhares de suas vidas passadas, bem como as de muitos
outros seres, todos morrendo e renascendo de acordo com os resultados da leikármica de
suas ações passadas. Mas não é necessário ter a visão de Buda para compreender
o karma. As mesmas leis kármicasque ele descreveu agem
na nossa vida momento após momento. Podemos ver como a morte e o renascimento
ocorrem a cada dia. A cada dia, nascemos em meio a novas circunstâncias e
experiências, como se fosse uma nova vida. Com efeito, isso acontece a cada
momento. Morremos a todo momento e renascemos no momento seguinte. Ensina-se
que existem quatro tipos de karma no instante da morte ou em
qualquer momento de transição: karmadenso, karma imediato, karma habitual
e karmafortuito. Nessa ordem, cada um representa uma
tendência kármica mais forte do que a seguinte. A imagem
tradicional para explicar esse ensinamento é a do gado num curral, com a
porteira aberta. O karma denso é como um touro. É a força das
mais poderosas ações boas ou más que praticamos. Se um touro está no curral,
quando a porteira é aberta, ele é sempre o primeiro a sair. O karma imediato
é a vaca que está mais próxima à porteira. Ele se refere ao estado mental que
está presente no momento da transição. Se a porteira é aberta e não há nenhum
touro no curral, quem sai é a vaca mais próxima à porteira. Se nenhuma vaca
estiver perto da porteira, surge o karma habitual. É a força
do nosso hábito costumeiro. Se não estiver presente nenhum forte estado mental,
a vaca que costuma sair primeiro é a que irá sair primeiro. E, finalmente, se
nenhum forte hábito estiver operando, surge o karma fortuito.
Isto é, se não surgir nenhuma força mais impetuosa, nosso karma será
o resultado fortuito de um número qualquer de condições passadas. À medida que
cada ação (ou nascimento) surge, existem forças que a sustêm e forças que
finalmente a levam a termo. Essas forçaskármicas são
descritas fazendo-se uso da imagem de um jardim. A semente que é plantada é
o karma causal. Fertilizar e regar a semente, cuidar das
plantas, é chamado dekarma sustentador. Quando surgem dificuldades,
trata-se do karma opositor, representado pela seca; mesmo se
plantarmos uma semente viável e a fertilizarmos, se não houver água, ela irá
secar. E então, finalmente, o karma destrutivo é como o fogo
ou os roedores no jardim, que o queimam ou o devoram por completo. Essa é a
natureza da vida em todos os domínios, em todas as circunstâncias criadoras.
Uma condição segue-se à outra e, no entanto, tudo isso está sujeito a mudança.
O karma das nossas circunstâncias exteriores pode mudar com o
agitar da cauda de um cavalo. A qualquer dia, uma imensa fortuna ou a morte
podem chegar para qualquer um de nós. O resultado kármico dos
padrões das nossas ações não decorre unicamente da nossa ação. À
medida que temos uma intenção e agimos, criamos karma; assim, uma
outra chave para compreender a criação do karma é a de
tornarmo-nos conscientes da intenção. O coração é o nosso jardim e, junto com
cada ação, existe urna intenção plantada como uma semente. O resultado dos
padrões do nossokarma é o fruto dessas sementes. Por exemplo,
podemos usar uma faca afiada para cortar alguém; se a nossa intenção é ferir,
seremos um assassino. Isso leva a certos resultadoskármicos. Podemos executar
uma ação quase idêntica, usando uma faca afiada para cortar alguém, mas, se
somos um cirurgião, nossa intenção é curar e salvar uma vida. A ação é a mesma,
mas, no entanto, dependendo de seu propósito ou intenção, tanto poderá ser um
ato terrível quanto um gesto de compaixão. Na nossa vida cotidiana podemos
estudar o poder da intenção para criar o karma. Podemos
começar prestando atenção às nossas muitas ações que surgem ao longo do dia em
resposta aos problemas. De um modo automático, talvez ignoremos circunstâncias
difíceis ou respondamos de maneira crítica ou áspera. Talvez procuremos
proteger ou defender o nosso próprio interesse. Em todos esses casos, a
intenção no nosso coração estará associada à avidez, à aversão ou à ilusão,
criando no futuro um karma de sofrimento que irá nos trazer
uma resposta equivalente. Se, em vez disso, quando essas circunstâncias
difíceis surgem na nossa vida levarmos a elas o desejo de compreender, de
aprender, de libertar ou de trazer harmonia e criar paz, iremos falar e agir
com uma intenção inerente. Nossas ações talvez sejam bastante semelhantes,
nossas palavras talvez sejam semelhantes, mas, se a nossa intenção é criar paz
e trazer harmonia, essa intenção irá criar um tipo muito diferente de
resultado kármico. Isso é fácil de se verificar nos relacionamentos
íntimos, pessoais ou profissionais. Podemos dizer uma mesma frase ao nosso
parceiro ou amigo e, se o espírito tácito ao proferi-la for: "Eu amo você
e espero que nós dois entendamos o que está acontecendo", iremos obter um tipo
de resposta. Se pronunciarmos a mesma frase com uma atitude subjacente de
censura, defesa e crítica, em um tom sutil de: "O que há de errado com
você?", ela dará outro rumo ao nosso diálogo e poderá, facilmente,
converter-se em uma briga.(...) A intenção ou atitude que levamos a cada
situação da vida determina o tipo de karma que criamos. Dia a
dia, momento a momento, podemos começar a ver a criação dos padrões de karma baseados
nas intenções do nosso coração. Quando prestamos atenção, torna-se possível
conscientizar-nos mais das nossas intenções e do estado do nosso coração à
medida que elas emergem junto com as ações e palavras que são as nossas
respostas. Em geral, não temos consciência das nossas intenções. Por exemplo,
uma pessoa decide parar de fumar. Lá pelo meio do dia surge o desejo de fumar.
Ela coloca a mão no bolso, pega o maço, tira um cigarro do maço, leva-o à boca,
acende-o e começa a dar uma bela tragada. Nesse instante, ela acorda e lembra:
"Ah, eu ia parar de fumar!". Enquanto estava no piloto automático e
sem percepção consciente, essa pessoa realizou todos os movimentos habituais de
pegar um cigarro e acendê-lo. Não é possível mudar os padrões do nosso
comportamento ou criar novas condições kármicas até que
tenhamos nos tornado presentes e despertos no início da ação. Caso contrário, a
ação já aconteceu. Como diz o velho ditado: "É como fechar a porteira
depois que o cavalo fugiu do estábulo". O desenvolvimento da percepção
consciente nameditação permite que nos tornemos atentos ou conscientes o
suficiente para reconhecer nosso coração e nossas intenções à medida que
atravessamos o dia. Podemos estar conscientes dos diferentes estados de medo,
carência, confusão, ciúme e raiva. Podemos saber quando o perdão, o amor ou a generosidade
estão ligados às nossas ações. Quando sabemos qual é o estado do nosso coração,
podemos começar a escolher os padrões ou condições que iremos seguir, o tipo de
karma que criamos. Tente trabalhar com esse tipo de percepção consciente na sua
vida. Pratique-a com suas palavras. Preste a mais cuidadosa atenção e observe o
estado do seu coração; observe a intenção, quando você falar, mesmo sobre o
assunto mais insignificante. Sua intenção é ser protegido, obter coisas,
defender-se? Sua intenção é abrir-se com interesse, compaixão e amor?. Uma vez
observada a intenção, conscientize-se da resposta que vem à tona. Mesmo que
seja uma resposta difícil, continue com a intenção hábil por algum tempo e
observe os tipos de respostas que ela traz. Se a sua intenção era inábil ou
maldosa, tente mudá-la e ver o que acontece depois de algum tempo. De início, é
possível que você experimente apenas os resultados de sua atitude defensiva
anterior. Mas persista na sua boa intenção e observe os tipos de respostas que
ela finalmente irá evocar. Para compreender como o karma age,
basta olhar para os seus relacionamentos mais pessoais ou as suas interações
mais simples. Escolha um relacionamento ou local específicos e experimente.
Tente responder somente quando seu coração estiver receptivo e generoso. Quando
não se sentir assim, espere e deixe passar os sentimentos negativos. Como
instruiu Buda, deixe que suas palavras e ações aflorem suavemente, com um
intento generoso, no tempo devido, e para benefício delas próprias. À medida
que você cultiva uma intenção generosa e hábil, você poderá praticá-la no posto
de gasolina ou no supermercado, no lugar onde trabalha ou no trânsito. A
intenção que trazemos conosco cria o padrão que dela resulta. Ao tornar-nos
mais conscientes da nossa intenção e ação, o karma mostra-se a
nós com mais clareza. O fruto kármico parece amadurecer mais rápido, talvez
apenas porque nós o percebemos. Ao prestar atenção, o fruto de tudo aquilo que
fazemos, hábil ou inabilmente, parece manifestar-se mais depressa. À medida que
estudarmos essa lei de causa e efeito, iremos ver que toda vez que nós, ou o
outro, agimos de um modo baseado na avidez, no ódio, no preconceito, no
julgamento ou na ilusão, os resultados irão inevitavelmente causar algum
sofrimento. Começamos a ver como aqueles que nos ferem também criam um
inevitável sofrimento para si mesmos. A lei de causa e efeito nos faz querer
prestar mais atenção e, ao observá-la, podemos ver diretamente os estilos
hábeis e inábeis no nosso próprio coração. A atenção dada ao karmamostra-nos
como as vidas são moldadas pela intenção do coração. Quando lhe pediram para
explicar a lei do karma de um modo bem simples, Ruth Denison
(1922- ), conhecida instrutora de vipassana, assim se
expressou: "Karma quer dizer que você nunca escapa
impune". A cada dia, estamos semeando as sementes do karma.
Existe apenas um único local no qual podemos exercer alguma influência sobre
o karma: na intenção das nossas ações. Na verdade, existe apenas
um karma pessoal que podemos mudar no mundo todo, o nosso
próprio. Porém, aquilo que fazemos com o nosso coração afeta o mundo todo. Se
pudermos desfazer os nós kármicos do nosso coração, o fato de
sermos todos interligados irá, inevitavelmente, trazer a cura para o karma de
outra pessoa. Corno disse um ex-prisioneiro de guerra ao visitar um colega
sobrevivente: "Você já perdoou aqueles que o prenderam?". O
sobrevivente respondeu: "Não, não os perdoei. Nunca os perdoarei". E
o primeiro veterano disse: "Então, de algum modo, eles ainda conservam
você prisioneiro". Quando minha mulher e eu viajávamos pela Índia há
alguns anos, ela teve a visão muito dolorosa de um de seus irmãos morrendo. De
início, pensei que aquilo fosse parte de um processo de morte/renascimento na
sua meditação. No dia seguinte, ela teve uma segunda visão do irmão, agora como
guia espiritual, acompanhado de dois índios americanos e oferecendo a ela apoio
e orientação. Cerca de uma semana mais tarde, chegou um telegrama para o ashram onde
estávamos, em Monte Abu, no Ragistão, estado da Índia. Pesarosamente, minha mulher
erainformada de que seu irmão morrera, exatamente do modo como ela o vira
morrer. O telegrama fora enviado no dia em que ela teve a visão. Estando do
outro lado do mundo, como teria ela sido capaz de ver a morte do irmão? Isso
foi possível porque todos nós estamos interligados. E, porque é assim, mudar um
coração afeta todos os corações e o karma de todo o planeta.
Num retiro que dirigi há alguns anos, uma mulher lutava contra as consequências
dolorosas de abuso sofrido no início da sua vida. Ela sentira raiva, depressão
e dor durante muitos anos. Fizera terapia e meditação, atravessando um longo
processo para curar essas feridas. Finalmente, nesse retiro, ela chegou a um
estado de perdão para com o homem que havia abusado dela. Chorou com profundo
perdão, não pelo ato em si, que jamais pode ser justificado, mas porque ela não
queria mais carregar a amargura e o ódio no seu coração. Acabado o retiro, ela
voltou para casa e encontrou uma carta à sua espera na caixa de
correspondência. A carta havia sido escrita pelo homem que abusara dela e com o
qual não tivera contato por quinze anos. Embora, na maioria dos casos, as
pessoas que cometem abuso neguem veementemente suas ações apesar do perdão,
algo tinha mudado a mente daquele homem. Ele escreveu: "Por muitas razões,
sinto-me compelido a lhe escrever. Pensei muito em você esta semana. Sei que
lhe causei grande dano e sofrimento, e que também trouxe grande sofrimento para
mim. Mas quero apenas pedir o seu perdão. Não sei o que mais posso dizer".
E então ela olhou a data no alto da carta. Fora escrita no mesmo dia em que ela
completou seu trabalho interior de perdão. Existe uma famosa história hindu
sobre dois reinos que eram, ambos, governados em nome de Krishna.
Olhando lá do alto, dos céus,Krishna decidiu visitá-los e ver o que
estava sendo feito em seu nome. Desceu dos céus e surgiu diante da corte de um
dos reis. Esse rei era conhecido por ser depravado, cruel, avarento e
invejoso. Krishna surgiu em sua corte envolto no esplendor da
luz celestial. O rei prostrou-se diante dele e disse: "Deus Krishna,
vieste me visitar". Krishna respondeu: "Sim. Quero
confiar-te unia tarefa. Eu gostaria que viajasses por todas as províncias do
teu reino e tentasses encontrar para mim uma pessoa realmente boa". O rei
viajou por todas as províncias de seu reino, falando com as castas superiores e
com as inferiores, com religiosos e agricultores, com artesãos e curadores.
Finalmente, retornou à sala do trono e esperou pelo reaparecimento do
deus Krishna. QuandoKrishna surgiu, o rei prostrou-se e
disse: "Meu Senhor, cumpri tuas ordens. Viajei de alto a baixo por todo o
meu reino, mas não encontrei uma só pessoa boa. Embora algumas
delas tenham realizado algumas boas ações, quando as conhecia melhor eu via que
mesmo suas melhores ações acabavam sendo egoístas, interesseiras, coniventes ou
desonestas. Não consegui encontrar uma única pessoa boa". E então Krishna foi
à outra corte, governada por uma famosa rainha chamada Dhammaraja.
Essa rainha era conhecida por ser gentil, graciosa, dedicada e generosa. E, do
mesmo modo,Krishna deu-lhe uma tarefa. "Eu gostaria que
viajasses por todo o teu reino e encontrasses para mim uma pessoa realmente
má". E assim a rainha Dhammaraja percorreu todas as
províncias do seu reino, falando com as castas superiores e com as inferiores,
com agricultores, carpinteiros, enfermeiras e religiosos. Depois de longa
busca, a rainha retornou à sua corte eKrishna reapareceu. Ela
prostrou-se e disse: "Meu Senhor, fiz o que me pediste, mas falhei na
minha tarefa. Percorri todas as terras e vi muitas pessoas que se comportam
desastradamente, que são mal orientadas e agem de uma maneira que gera
sofrimento. No entanto, quando as ouvi de fato, não consegui encontrar nenhuma
pessoa verdadeiramente má, apenas pessoas mal orientadas. Suas ações sempre vêm
do medo, da ilusão e do equívoco". Em ambos os reinos, as circunstâncias
da vida eram governadas pelo espírito dos governantes, e o que eles encontraram
era um reflexo do seu próprio coração. À medida que prestarmos atenção e
compreendermos o nosso coração e desenvolvermos as respostas hábeis da
sabedoria e da compaixão, estaremos realizando nossa parte para pacificar toda
a Terra. Através do nosso trabalho e criatividade, podemos fazer surgir na
nossa vida circunstâncias exteriores benéficas. No entanto, a maioria das
coisas que nos acontecem, o local onde nascemos, quando morremos, as grandes
mudanças que arrastam nossa vida e o mundo à nossa volta são o resultado de padrões kármicos antigos
e influentes. Esses, não podemos mudar. Eles vêm à nós como o vento
e o mau tempo. A única previsão meteorológica que podemos garantir
é que essas condições continuarão a mudar. No processo de compreender o karma,
precisamos responder a uma pergunta simples: Como nos relacionamos com essas
condições mutáveis?. O tipo de universo que criamos, o que decidimos plantar, o
que fazemos nascer no jardim do nosso coração - isso irá criar o nosso futuro.
Buda começa os seus ensinamentos na grande Dhammapada dizendo:
Somos aquilo que
pensamos.
Tudo o que somos
nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso
pensamento, construímos o mundo.
Fale ou aja com uma
mente impura,
e os problemas o
seguirão como uma carroça, segue a parelha de bois.
Somos aquilo que
pensamos.
Tudo o que somos
nasce dos nossos pensamentos.
Com o nosso
pensamento construímos o mundo.
Fale ou aja com uma
mente pura.
E a felicidade o
seguirá
Como uma sombra,
inabalável.
A longo prazo, nada
possuímos nesta Terra, nem mesmo o nosso corpo. Mas, através das nossas
intenções, podemos moldar ou direcionar os padrões do nosso coração e mente.
Podemos plantar no nosso coração sementes que irão criar o tipo de reino que
será o mundo, seja ele depravado e mal ou bom e compassivo. Através da simples
percepção consciente da nossa intenção a cada momento, podemos plantar um
esplêndido jardim, criar padrões de bem-estar e felicidade que perdurarão muito
mais do que a nossa personalidade e a nossa vida limitada. Sylvia Boorstein
(1936- ), espiritualista oriental
americana, instrutora de vipassana, exemplifica esse poder com uma
história sobre um bom amigo seu, médico famoso que durante muitos anos foi
presidente da Associação Psiquiátrica Americana. Ele era conhecido como um
cavalheiro, um homem íntegro e gentil, que levava uma grande alegria a tudo na
sua vida. Ele sempre dedicava um respeito profundo aos pacientes e colegas.
Depois que se aposentou e envelheceu, começou a ficar senil. Perdeu a memória e
a capacidade de reconhecer as pessoas. Ainda vivia em casa e a esposa ajudava a
cuidar dele. Sendo amigos de longa data, Sylvia e Saymour, seu marido e também
psiquiatra, certa vez foram convidados a jantar em sua casa. Já fazia algum
tempo, que não o viam e imaginavam se a sua senilidade não teria aumentado.
Chegaram à porta com uma garrafa de vinho e tocaram a campainha. Ele abriu a
poria e olhou-os com uma expressão vazia que não mostrava nenhum reconhecimento
de quem eles seriam, embora tivessem sido amigos por muitos anos. E então sorriu
e disse: "Não sei quem são vocês, mas pouco importa, façam o favor de
entrar e fiquem à vontade na minha casa", oferecendo-lhes a mesma
amabilidade com que tinha vivido durante toda a sua vida. Os padrões kármicos que
criamos com o nosso coração transcendem as limitações do tempo e do espaço.
Despertar um coração compassivo e sábio em resposta a todas as circunstâncias é
tornar-se Buda. Quando despertamos o Buda dentro de nós, despertamos para a
força universal do espírito que pode trazer compaixão e compreensão ao mundo
como um todo. Mahatma Gandhi (1869-1948) chamava esse poder de
"força da alma". Ela traz força quando uma ação firme é necessária.
Traz imenso amor e perdão, embora também defenda e fale a verdade. É esse poder
do nosso coração que traz sabedoria e liberdade em qualquer circunstância, e
que faz viver o reino do espírito aqui na Terra. Para Gandhi, esse
espírito estava sempre ligado ao seu coração, sempre aberto para ouvir e pronto
para responder ao mundo, compartilhando as bênçãos da compaixão com todos os
seres: "Além da minha não cooperação, existe sempre o mais
entusiástico desejo de cooperar, ao menor pretexto, mesmo com o pior dos meus
opositores. Para mim, um mortal muito imperfeito está sempre necessitado da
graça de Deus, sempre necessitado do Dharma. Ninguém está além da
redenção". Um caminho com o coração. Por Jack Kornfield (1945- ). Shunya. Grupo de Estudo de Prática
Budista. Abraço. Davi.
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