Introdução
ao Budismo. Uma visão da doutrina Budista através dos textos. Este é um
trabalho de seleção e ordenação de vários autores e mestres Budista. Por Darma
Tenpa Darghye. Vivendo Bhuda, de Zuymyo Joshin Sensei. Falarei sobre a vida do Budha (563 AC 483).
O que me interessa é a vida do ser humano, como vocês e eu. Nós sabemos que ele
nasceu há 25 séculos, num pequeno reino ao norte do Nepal, onde seu pai era um
rei. E sabemos que sua mãe morreu uma semana após o seu nascimento. De acordo
com o horóscopo, ele poderia se tornar um grande rei, que conquistaria o mundo,
ou então o Salvador de todos os seres. Seu pai preferiu acreditar na primeira
hipótese, pois sendo um rei, queria um sucessor. Ele pertencia à classe dos
guerreiros e queria um filho também guerreiro. Então, deu-lhe o nome de
Sidarta, "o vencedor". Um dia, veio à corte um velho mestre que
confirmou a predição: Ele iria salvar todos os seres da vida e da morte. O rei
começou a ficar muito preocupado e decidiu criar Sidarta dentro de um castelo,
de forma que ele tivesse tudo que a vida pudesse lhe oferecer e, ao mesmo
tempo, que ignorasse as coisas piores dela. Mas, com a idade de sete anos,
Sidarta iria cumprir a primeira etapa de sua vida de meditação. Era primavera.
Segundo o costume local e da época, o senhor das terras foi fazer o primeiro
corte na terra com o arado. Sidarta viu insetos e minhocas cortados pelo ferro
do arado e como aqueles que ficavam feridos eram comidos por pássaros e animais
predadores. Foi o primeiro encontro de Sidarta com a vida e a morte, misturados
com a alegria e tristeza ao mesmo tempo. Diz o texto que ele foi sentar-se sob
uma árvore e, mesmo sem saber, entrou em meditação. Isso apenas aumentou a
inquietude do rei, que decidiu casar seu filho ainda bastante jovem, pensando
que uma mulher e um filho o ligariam à vida leiga e isso evitaria que ele
renunciasse ao mundo. Assim, aos 16 anos Sidarta casou-se com uma moça de um
reino vizinho. Foram instalados pelo rei num pequeno palácio com todas as
comodidades necessárias para uma vida tranquila. Sua esposa deu à luz um filho
que se chamou Raúla, que significa "a ligação". É nesse momento que
acontece o episódio chamado "Os quatro encontros de Budha". Um
dia, Sidarta partiu com seus servidores para visitar a cidade e encontrou no
caminho um homem agonizando, com o corpo deformado pela dor, e perguntou o que
vinha a ser aquilo. "Não é nada de extraordinário, é um homem doente.
Todas as pessoas adoecem", respondeu-lhe o servo. Sidarta retornou ao
palácio muito pensativo. Na próxima vez que foi à cidade, encontrou no caminho
um velho fraco que tinha perdido a visão. Perguntou ao servo o que era aquilo e
o servo disse: "Nada de extraordinário. É um velho. Todas as pessoas serão
velhas". Mais uma vez, Sidarta voltou ao palácio pensativo. Na sua
terceira visita viu passar um cortejo, onde as pessoas choravam. Eram os
funerais de uma criança que iria ser cremada, e Sidarta perguntou, "O que
é isso?" E o servo disse, "Nada de extraordinário, são os funerais de
uma criança. Todas as pessoas morrem um dia". Finalmente, na sua última
visita, ele passou por um monge errante que pedia esmolas. Sua face refletia um
espírito tranquilo. Ele caminhava com graça, sem medo e sem orgulho. Sidarta
então percebeu que assim era quando se quebravam todos os elos e se compreendia
o sofrimento. Resolver o problema da vida e da morte seria útil a si e a todos
os outros. Penso que essas são etapas que todas as crianças e todos os jovens
atravessam. O encontro com a morte. O desejo dos pais de proteger os filhos do
sofrimento. Sidarta teve todas essas lembranças e todos esses sofrimentos
atenuados. O rei, sabendo dessa consciência de seu filho, resolveu fazer mais e
mais festas para que ele pudesse se alegrar. Uma noite, ao fim de uma festa com
muitos músicos, dançarinas, cantores, Sidarta atravessou o salão onde as
mulheres dormiam pelas almofadas e nos cantos da sala. Diante desses corpos
fatigados, diante dessa evidência de vida e morte, decidiu deixar o palácio.
Decidiu buscar o caminho que levasse ao fim do sofrimento. Ele tinha 29 anos.
Anunciou sua partida ao pai e, pela última vez, foi ver sua esposa e filho que
dormiam. Partiu com seu cavalo e um servo até a fronteira do reino de seu pai.
Lá chegando, desceu do cavalo, cortou os próprios cabelos com a espada, retirou
todas as suas joias e armas, trocando também suas roupas com as de um caçador
e, sem olhar para trás, entrou na floresta. Ele sempre tinha vivido como um
príncipe, de maneira extremamente comportada, e agora aprendera a viver fora, a
dormir na chuva, a comer pouco. Uniu-se a um grupo de discípulos que faziam
meditação. Ali ele aprendeu a fechar as portas da percepção do corpo e a entrar
em estados profundos de concentração. Contudo, percebeu que ao sair da
concentração o sofrimento continuava. Durante 3 anos ele visitou diferentes
mestres e começou a dominar métodos de meditação cada vez mais profundos. Mas,
sempre que terminavam os períodos de meditação, ele descobria que o sofrimento
da vida e da morte permanecia. Com seus outros cinco alunos, saiu em busca de
umas cavernas onde passaram a viver em extremo ascetismo. Meditavam dia e
noite, comendo apenas sete grãos de arroz por dia. Tentavam abandonar as
necessidades físicas, pensando que se o corpo fosse livre o espírito se
libertaria. A imagem de Budha desta época é mostrada como um verdadeiro
esqueleto, mas ele sentia o sofrimento ainda presente. Um dia, meditando à
beira de um rio, se deu conta de que havia perdido a alegria. A alegria da
meditação, do vento que refrescava, do canto dos pássaros. Então percebeu que
corpo e espírito eram um, e que torturando o corpo estava torturando o
espírito. Decidiu buscar outro caminho. Na manhã seguinte, tomou banho no rio e
caminhou para a vila. Mas estava muito fraco. Deitou-se na estrada, sendo
encontrado por uma jovem da vila que ia cuidar dos búfalos. Esta jovem deu-lhe
um pouco de leite que acabara de tirar. Um menino que passava, deu ao Budha
um punhado de ervas que colhera para os animais. Budha então tomou essas
ervas e, usando-as como almofada, sentou-se sob uma árvore. Foi o local da
iluminação. Os amigos de Budha, vendo que ele tinha abandonado a vida
ascética, resolveram partir. Sidarta, no entanto, pensava não ser necessário
abandonar o mundo dos fenômenos. Não era preciso fechar-se na meditação,
enquanto ao seu redor as árvores, as folhas, a natureza, enfim, o mundo eram a
própria meditação. Então, o futuro Buda, o futuro "desperto", decidiu
continuar sua procura só, ao pé da árvore, ou morrer ali mesmo. Depois de 30
dias e 30 noites de meditação, ele entrou num estado mais profundo do que os
que experimentara até ali. Na primeira parte da noite, ele reviu todas as suas
vidas passadas. Elas somavam milhões e milhões de vidas. Neste processo, ele
sentiu todas as dores, todas as penas, todas as alegrias de todos os homens. Na
segunda parte da noite, viu universos incontáveis que surgiam, passavam e
desapareciam. Percebeu, então, que a morte e a vida são a mesma coisa:
aparências. Como o mar e as ondas. Milhares de vagas que se elevam e caem sem
cessar. Mas qual a diferença entre as ondas e o mar? Durante a lua cheia da
primavera, quando a última das estrelas pastoras apareceu, ele atingiu o
despertar completo, incomparável, compreendendo que havia experienciado a
verdadeira natureza do nascimento e da morte. Assim, estendeu seu braço
esquerdo em direção à terra até tocá-la e, invocando seu testemunho, disse:
"Os muros desta prisão estão derrubados. Por inumeráveis vidas estive preso,
mas doravante estes muros não mais serão erguidos. Eu não mais morrerei ou
renascerei". Após a Iluminação, Budha continuou mais sete semanas
sob aquela árvore, sabendo que atingiria sua meta e que não fora por nada que
largara tudo. Sabia também que o caminho que encontrara seria muito difícil de
ensinar, de ouvir, de compreender e de praticar. Hesitou em ensiná-lo e foi
refletir diante de um lago onde se viam flores de lótus. Algumas dessas flores
estavam sob a água, outras na superfície e outras acima da superfície. Pensou,
então, que a compreensão dos seres humanos era semelhante a essa imagem: há os
que estão prisioneiros das ilusões, os que procuram a verdade e os que
encontraram o caminho. E então, resolveu voltar a Benares para ensinar. Mas,
quando seus amigos o viram, disseram, "Lá vem Sidarta, que traiu, que
rompeu os seus votos. Não vamos cumprimentá-lo, não vamos fazer nenhuma
homenagem à sua chegada". Ao se aproximar, porém, a figura de Sidarta era
tão radiante, sua aparência tão majestosa, que eles não puderam se impedir de
levantar e oferecer-lhe uma bebida. Budha disse-lhes: "Não mais me
chamem Sidarta, sou o Budha, o desperto". Daria aí seu primeiro
ensinamento, que se chamou a "primeira volta do Dharma". Qual
é esse ensinamento, qual é a dificuldade nesse ensinamento, qual significado
pode ter para nós agora, depois de 25 séculos? Até aqui é como uma história.
Uma história de contato. De contato com a vida, com o sofrimento e a morte.
Todas as crianças passam por isso e, em seguida, todas as pessoas se tornam
"sérias". Não se tem mais tempo para questionamentos, para pesquisas
científicas. Passa-se a ter responsabilidades. É preciso ganhar dinheiro,
avançar na vida social, ocupar-se da família. É o que chamamos de senso de
responsabilidade e seriedade. Eu penso que Budha tinha um grande senso
de responsabilidade, mais amplo que o nosso. Era um senso não limitado ao seu
reino, às suas coisas, à sua mulher e filho. Seu senso de responsabilidade
considerava todos os seres. O ponto central era a compreensão de nascimento e
morte. Ele observava exatamente aquilo que tentamos não ver: que nascemos e
vamos morrer. Nada do que fizemos ou temos, nenhuma das pessoas que amamos
poderá nos seguir depois da nossa morte. Durante toda a vida construímos, mas
sobre o vazio, pois tudo está em permanente mudança. As civilizações, as eras,
nós mesmos, tudo é impermanente. Nosso rosto, nossos amores e paixões mudam.
Externamente, vemos alternância de saúde, doença, guerra e paz. Tentamos
construir um refúgio, mas não é possível, pois a morte já está em nós mesmos.
Mas isto não quer dizer que se vá viver irresponsavelmente: "Bom, se é
assim, nada tem importância". Pelo contrário, reconhecer isso é reconhecer
que todos os seres humanos vivem as mesmas experiências. Repartimos as mesmas
condições. A vida é breve, as coisas mudam e desejamos ser felizes. Não importa
a que raça pertençamos, não importa em que tempo estamos. Sempre procuramos a
felicidade e fugimos do sofrimento. Este é nosso ponto básico. Mas aí as coisas
se complicam porque para alcançar minha felicidade, talvez eu seja obrigada a
empurrar ou derrubar alguém de seu lugar. E, em seguida, serei alvo de
retaliação. Logo, não sendo assim tão simples, o que é essa felicidade? O
primeiro discurso do Buda se chama "As Quatro Nobres Verdades". A
primeira delas é a verdade do sofrimento. Todos conhecem o sofrimento. O
sofrimento físico, a doença, a velhice, o sofrimento psicológico. Mas o texto
diz que um dos sofrimentos também é "estar perto de quem não amamos e
longe das pessoas que amamos". Há um sofrimento ainda mais sutil, que é
aquele ligado à mudança, à impermanência. Se as coisas externas mudam e nós
mudamos, nada é permanente. Nada tem continuidade, nem o nosso sentimento, nem
aquilo que procuramos: há sempre uma ligeira inquietude. Ainda que estejamos
completamente felizes e a situação se apresente como a melhor possível, sempre
há, no fundo, a ideia de que tudo pode mudar... como um pequeno ponto negro
numa grande superfície branca. Então, tentamos bloquear as coisas. Tentamos
alcançar segurança, mesmo sabendo que é provisória. Há uma outra forma de
sofrimento. O sofrimento da frustração. Imaginem que desejamos muito alguma
coisa, algo material, uma situação ou uma pessoa. Se não pudermos obter isso,
vem a frustração. Porém, se há possibilidade de conseguirmos, então vivemos de
esperanças. Quando não se tem o desejado, pensamos que, se o tivéssemos, tudo
ficaria perfeito e seríamos felizes. Finalmente, quando vemos nosso desejo
realizado, em geral perde-se o encanto e o objeto do nosso desejo torna-se
menos belo e brilhante que quando estava distante. Aquilo parecia ouro, agora é
como uma pedra amarelada. Por outro lado, outras situações também trazem
sofrimento, como pensar que se obtivermos o que queremos tudo ficará perfeito.
E assim vamos nos repetindo. Essa é a nossa procura por felicidade. Isto não
quer dizer que simplesmente exista sofrimento no mundo, mas que nossa própria
forma de buscar a felicidade cria sofrimento. Estar sempre correndo atrás de
nossos desejos e fugindo de algo que possa nos alcançar pelas costas é muito
estressante. É uma grande perda de energia. Então, qual a origem desse
sofrimento? Buda conseguiu distinguir três causas: a avidez, a raiva e a
ignorância. Vocês já viram um bebê quando está mamando? Ele o faz com uma
avidez extraordinária, e é preciso que assim seja. Se não fosse assim, ele não
poderia sobreviver. A dificuldade é que isso continua. O "eu quero, eu
quero" conduz à luta contra outras pessoas que querem a mesma coisa. Então
surge a raiva. Se não temos aquilo que queremos, se há recusa, nossa cólera vai
longe, desde palavras ásperas até a guerra. Mas a raiz de tudo é a ignorância,
a ignorância da interdependência. Imaginamos um "eu" que quer obter
alguma coisa e os "outros" que também desejam a mesma coisa, e então
nos separamos. E quando nos separamos, criamos um território para nós mesmos.
Passamos a defendê-lo e os outros tornam-se inimigos potenciais. Então, vamos
enfileirando muros cada vez mais espessos e altos para nos proteger, de tal
forma que nem sol nem vento conseguem penetrar. Vestimos uma armadura para a
guerra de todos os dias. Contudo, com o peso cada vez maior desta armadura, em
breve não conseguimos mais nos mover. Já não se pode dançar com a vida, com as
coisas que chegam. Temos medo de nós mesmos. Temos medo uns dos outros, das
nossas emoções e do nosso interior. O medo passa a ser o centro de nossa vida.
A ignorância é isto. É estar cortado, separado dos outros e de si mesmo.
Perdemos a unidade profunda com o mundo exterior e conosco mesmo. A
prática é esta: É estar aqui. É voltarmos ao primeiro instante, quando podíamos
estar completamente aqui. Antes de fugirmos para as lembranças, os projetos,
etc. Estar tranquilamente no centro de tudo que existe, sem véus, sem
separações com respeito à felicidade e ao sofrimento. A isto nós chamamos
não ego, não sofrimento. Não que o sofrimento exterior não exista. É que
aceitamos o que existe. Então, o que é ser livre? É fazer ou ter tudo que
queremos em nossa avidez? Ou é estar livre destas ilusões que nos atacam sem
cessar? Compreender essa unidade, essa interdependência, é reconhecer que os
outros desejam as mesmas coisas que nós. Eles têm a percepção de felicidade.
Sofrem pela mesma razão que nós. Este é o início da compaixão. Há uma história
sobre a interdependência. É a história de uma pessoa que obteve autorização
para visitar o inferno e o paraíso. Chegando no inferno, ela viu pequenos seres
com pequenas cabeças e corpos enormes, e que tinham ligadas às mãos varinhas
como as que os chineses usam para comer. Todos se debatiam para alcançar a
comida, mas não conseguiam levá-la à boca, pois as varinhas eram muito
compridas. O visitante viu então a avidez, o desejo pela comida na face
daquelas pessoas. Em seguida, foi ao paraíso e lá encontrou as mesmas pessoas,
com as mesmas cabecinhas e grandes corpos, com as mesmas varinhas ligadas nas
mãos. Porém, cada uma utilizava a sua varinha para alimentar a pessoa à sua
frente, e todas as faces estavam tranquilas. Isto é a interdependência entre as
pessoas. Às vezes eu me pergunto quantos minutos por dia é possível viver sem
estar em relação com os outros. Nós estamos em relação com muitas pessoas que
estão mortas, através do que nos deixaram. Também estamos em relação com muitas
outras coisas, como a eletricidade, o microfone, os automóveis, as
profissões... Eu seria completamente incapaz de inventar a eletricidade, mas
posso utilizá-la quando preciso. Neste momento, no meu templo, há uma horta e
nela trabalham pessoas que necessitam obter seu alimento. Eu poderia pensar que
com algum dinheiro poderia comprar legumes, mas como não sei plantar, se não
fossem essas pessoas talvez eu não tivesse nenhum alimento pois não posso comer
dinheiro. Não sei se realmente poderíamos viver um só minuto sem essa
dependência. Em todo planeta necessitamos do ar, do sol, do vento e da chuva.
Na França, há um mestre zen vietnamita que diz que se você é poeta,
nesta folha de papel poderá ver todo o universo. Aqui nesta folha de papel há o
sol, que fez nascer e crescer as árvores, o vento, a chuva, o lenhador que
cortou a árvore, a comida que este lenhador comeu, todas as pessoas que
prepararam esta comida, todas as pessoas que trabalharam para fazer este papel,
os que o venderam na livraria. Todo o universo está na folha de papel. É isto a
interdependência. Nós chamamos isto, nos textos, de a rede de Budha.
Como na rede de pesca, onde cada linha está interligada uma com a outra, quando
se corta uma parte, toda a rede se desfaz. Compreender isso é encontrar a
origem de nosso sofrimento. Perceber que quando machucamos alguém é a nós
mesmos que estamos machucando. Mestre Dogen, fundador da Escola Soto
Zen, escreveu que apenas os loucos pensam que é necessário colocar antes de
tudo as suas próprias necessidades. O sábio vê que não há diferença entre ele e
os outros. Mas, é claro, os outros são sempre o problema. Quando se está só
tudo vai bem. Quando se está só é fácil pensar que somos as pessoas mais gentis
e maravilhosas do mundo. Os outros nos atrapalham o tempo todo. São obstáculos
entre nós e o que gostaríamos de ter. De modo geral, é assim que pensamos. Há a
história de um eremita que estava numa caverna sentado por anos e anos. Lá ele
atingiu um Samadi muito profundo, e um dia, por alguma razão, teve de ir
à cidade. Quando chegou lá, havia muita gente e alguém pisou no seu pé. Ele
ficou furioso. É isso, sempre são os outros que atrapalham nossa prática,
interferindo em nosso caminho espiritual. É justamente a compreensão de nosso
sofrimento que está exposta nas Quatro Nobres Verdades. A terceira nobre
verdade fala sobre a possibilidade de colocar um fim no sofrimento. Não é
impossível. Não é uma meta idealizada. Muitas vezes o Budha foi
comparado a um médico, comparado a quem conhece a doença, que descreve os
sintomas e que dá o remédio para curá-la. Como ser justo na vida cotidiana? É
importante nesse caminho a adequada utilização da palavra, porque penso que
intuitivamente sabemos quando algo é ou não é justo. Muitas vezes isso fica
muito claro, por exemplo, quando vocês estão com amigos e dizem algo
inconveniente, que talvez fosse melhor não ter dito. Naquele momento pareceu
mais interessante chamar a atenção, aparentar saber mais que os outros ou ser o
primeiro a dizer aquilo, mas, no fundo, sabíamos que não era a melhor coisa a
ser dita. Não era justo. Justo significa adaptado à situação. Uma maneira de
manter a atenção sobre a nossa vida a cada momento. Sobre como ela é e não como
gostaríamos que fosse. Há, então, um tipo de manipulação interessante. Tentamos
empurrar as pessoas e as coisas para exercer o nosso desejo. Então dizemos:
"Ah, se essa pessoa pudesse fazer assim ou assado, se pudesse ser mais
gentil..." mas se ela não age como desejamos, ficamos enraivecidos. E
certamente os outros estão fazendo o mesmo conosco... O estudo das Quatro
Nobres Verdades pode nos fazer compreender comportamentos de nossa vida
cotidiana. Porém, isso é teórico, uma elaboração mental. Muitas vezes
compreendemos que deveríamos mudar em alguns aspectos. Nosso caráter, nossa
maneira de ser. É muito difícil mudar. É por isso que a prática budista
está baseada na meditação. Sidarta é o exemplo. Há muitas falsas ideias sobre a
meditação. Primeiro, vou lhes dizer o que a meditação não é. Não é um refúgio
para nos apartar dos outros, do mundo. Não é alcançar um pequeno paraíso com
nuvenzinhas e pequenos anjos que pulam por todo lado. Não é sentar para olhar o
próprio umbigo, nem para fazer um estudo psicológico de si mesmo, nem para ter
tempo de cuidar de tudo que deve ser feito durante o dia. Não é relaxamento.
Praticar meditação é estar preparado para olhar aquilo que está dentro de nós,
nossa cólera, medo e frustração. Tudo o que fechou nosso coração a nós mesmos e
aos outros. Meditar é um longo trabalho, física e moralmente doloroso. Pode ser
mesmo aborrecido, mas é absolutamente necessário. às vezes utilizamos uma
comparação: Não podemos ver através de um copo com água lamacenta, devido às
impurezas em suspensão. Se colocarmos o copo tranquilamente sobre a mesa, aos
poucos as impurezas vão decantando e a água vai ficando límpida, pura e
transparente. Da mesma forma, nossa mente está constantemente agitada com
projetos, desejos, contentamentos, descontentamentos e recordações. É
impressionante nossa primeira meditação, quando vemos tudo isso em nossa
cabeça. Nos textos clássicos, a mente é comparada a um macaco. O macaco é muito
interessante de ser observado. Ele pega um objeto, olha, larga, pega um outro,
larga... Está sempre em movimento, nunca para. Pode ser lúdico observá-lo
assim, mas se imaginarmos o macaco conosco durante as 24 horas do dia, seria
muito cansativo. Contudo, nós fazemos a mesma coisa. Nossa mente não repousa.
Aí está a importância da meditação. É preciso prestar atenção, pois começamos,
evidentemente, com a ideia de nos tornarmos uma pessoa melhor. Vamos deixar de
sofrer, vamos estar em harmonia com as demais pessoas. Começamos logo por
nossos desejos. Não são desejos materiais, são desejos espirituais. Além disso,
temos a consciência tranquila, pois dizemos: "Ah, que pessoa maravilhosa,
que ser espiritual estou me tornando". Mas a meditação, o Zazen,
não é isso. É apenas estar lá, sentado. Mesmo sendo desagradável. Só quando
estamos enraizados em nós mesmos é que podemos formar uma relação apropriada
conosco e com os outros. Uma relação direta, não afetada por nossos sonhos e
ilusões. É como uma roda. É necessário um ponto fixo para que a roda possa
girar. Todas as vias espirituais oferecem um caminho. É preciso fazer uma
escolha e segui-lo com determinação. Não é necessário para isso tornar-se
monge. Não é necessário seguir o ensinamento búdico a ponto de deixar a
família, os bens, mas será necessário abandonar muitas coisas no caminho, para
que possamos avançar mais levemente, sem transportarmos tanto "peso".
[...]. Fonte: Shunya. Grupo de Estudo e Prática Budista. Abraço. Davi.
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