Judaísmo. www.morasha.com.br. Tradução de L.
Waschsmann. SOBRE O ÓDIO AOS JUDEUS. Não há ódio que tenha história tão rica e
letal quanto o antissemitismo - "o mais prolongado dos ódios" - como
o intitulou o historiador Robert S. Wistrich (1945-2015). Com efeito,
encontrar-se uma causa única parece tarefa bastante desalentadora - a
incidência do antissemitismo é muito frequente, o espaço de tempo, muito amplo,
os lugares, muito numerosos, e as circunstâncias, muito variadas. Certamente, é
por isso que alguns estudiosos passaram a ver cada incidente antissemita como
essencialmente único, negando o fato de que se pode traçar uma linha reta desde
o antissemitismo da Antiguidade até o de nossos dias. Quer falemos do ataque
aos judeus de Alexandria, em 38 desta era, ou dos que ocorreram 200 anos antes,
na antiga Jerusalém; do caso Dreyfus, na França de 1890, ou da Kristallnacht,
na Alemanha do final da década de 1930 - cada um desses incidentes é visto como
o resultado de um mix específico de forças políticas, sociais, econômicas, culturais
e religiosas que excluem a possibilidade de uma causa mais profunda ou
recorrente. Uma versão menos extrema dessa mesma abordagem identifica certos padrões
de antissemitismo, mas apenas dentro de "eras" individuais ou
diferenciadas. Em particular, é feita uma distinção entre o ódio de fundo
religioso da Idade Média e o ódio de fundo racial dos tempos modernos. A
responsabilidade pelas ondas antissemitas que engoliram a Europa desde o tempo
de Constantino até o alvorecer do Iluminismo é depositada, em grande medida,
aos pés da Igreja e suas ramificações, ao passo que as convulsões que
irromperam durante o curso dos três séculos seguintes são vistas como um
subproduto da ascensão de um virulento nacionalismo. Obviamente, essa separação
em incidentes ou eras tem suas vantagens, pois permite que os pesquisadores se
concentrem mais intensamente em circunstâncias específicas e examinem irrupções
individuais, do começo ao fim. Porém, o que tais análises podem eventualmente
ganhar em termos de explicação mais pontual, sacrificam em abrangência.
Ademais, se cada um dos incidentes ou eras de antissemitismo diferem bastante
entre si, como explicar a ferocidade cumulativa do fenômeno? Como que
respondendo a essa questão, alguns estudiosos tentaram oferecer explicações
mais amplas, trans históricas. Talvez as duas mais conhecidas sejam a teoria do
"bode expiatório", segundo a qual as tensões dentro da sociedade são
regulamentadas e liberadas ao se culpar um grupo mais fraco, geralmente os
judeus, pelo que quer que esteja incomodando a maioria; e a teoria da
"demonização", segundo a qual os judeus foram lançados ao papel de
"o outro", em virtude da necessidade, aparentemente perene de
rejeitar aqueles que são étnica, religiosa ou racialmente diferentes.
Claramente, nessa abordagem sociológica, o antissemitismo emerge como um
fenômeno judeu apenas no nome. Ao invés disso, é apenas uma das variantes de
uma família de ódios que incluem o racismo e a xenofobia, entre outros.
Portanto, a violência especificamente anti judaica da Rússia, na virada do
século 20, tem tanto em comum com a limpeza étnica na Bósnia, na virada do
século 21, como o tem com os massacres de judeus na Ucrânia, em meados do
século 17. Levada à sua conclusão lógica, esta teoria redefiniria o Holocausto -
nas mãos de alguns eruditos, de fato redefiniu o Holocausto - como sendo o mais
destrutivo ato de racismo da humanidade e não como a campanha mais assassina
jamais dirigida contra os judeus. Há meio século, reagindo a essas tendências
universalizantes, Hannah Arendt (1906-1975) citou parte de um diálogo de
"uma anedota contada após a 1ª.Guerra Mundial": "Um antissemita
alegava que os judeus haviam causado a guerra. Ao que um outro, retrucava:
'Sim, os judeus e os ciclistas'. Aí o antissemita perguntava: 'Por que os
ciclistas?' Ao que rebatia o outro: 'E por que os judeus?". George Orwell
(1903-1950) fez uma observação semelhante, em 1944: "Por mais verdadeira
que seja, em termos gerais, a teoria do "bode expiatório", ela não
explica por que os judeus e não outro grupo minoritário qualquer são os
escolhidos, nem tampouco deixa claro o que eles estariam expiando (...)." Quaisquer que sejam as falhas dessas
abordagens, devo admitir que meu próprio histórico, como teórico, não é melhor.
Há três décadas, como jovem dissidente na União Soviética, compilei relatórios
secretos sobre o antissemitismo para jornalistas estrangeiros e diplomatas do
Ocidente. À época, eu acreditava piamente que a causa da "doença" era
o totalitarismo e que a democracia era a maneira de a curar. Uma vez
substituído o regime soviético pelo democrático, imaginava eu, o antissemitismo
estaria fadado a desaparecer. Em seu empenho atrás desse objetivo, o mundo
livre, que, na esteira do Holocausto, parecia ter-se vacinado contra a
reincidência do ódio assassino anti judaico, era nosso aliado natural, era a
única entidade política que tinha os meios e a vontade de combater o grande
mal. Hoje, sei um pouco mais
sobre o assunto. Este ano, após a publicação de um relatório por um fórum do
governo israelense encarregado de tratar da questão do antissemitismo, convidei
a vir ao meu escritório os embaixadores dos dois países que tinham superado os
demais na frequência e intensidade de ataques anti judaicos dentro de suas
fronteiras. Os representantes eram da França e da Bélgica - duas democracias
maduras, no coração da Europa Ocidental. Era justamente nesses ostensivos
baluartes do esclarecimento e da tolerância que os cemitérios judeus estavam
sendo violados; as crianças, atacadas; as sinagogas, devastadas. Que não haja dúvida: o antissemitismo que hoje
permeia a Europa Ocidental é muito diferente do antissemitismo com o qual
convivi, há uma geração, na União Soviética. Este último era alimentado por uma
sistemática discriminação contra os judeus, imposta pelo governo. O atual tem
sido amplamente condenado e criticado pelos governos do mundo (apesar de que
isto se dê de forma muitíssimo menos vigilante do que deveria). Isto, porém,
apenas torna mais perturbador o antissemitismo nas democracias, destruindo a
ilusão - que obviamente não era só minha - de que um governo representativo
fosse um antídoto infalível para o ódio vivo aos judeus. Há uma outra ilusão despedaçada ainda mais
pertinente à nossa busca. Chocado pelo antissemitismo visceral que testemunhara
no julgamento Dreyfus, na supostamente esclarecida França, Theodor Herzl
(1860-1904), fundador do moderno Sionismo, convenceu-se de que a causa primária
do antissemitismo era a condição anômala dos judeus: um povo sem Estado
próprio. Em sua obra seminal, O Estado Judeu (1896), publicada dois anos após o
julgamento, Herzl tinha a visão da criação de um tal Estado, prevendo que uma
maciça leva imigratória de judeus europeus para esse estado significaria o fim
do antissemitismo. Apesar de seu tratado político, aparentemente utópico,
ter-se tornado um dos livros mais previdentes do século 20, nesse ponto a
história não foi amável com Herzl. Nenhuma pessoa séria argumentaria, hoje, que
o antissemitismo se viu interrompido com a fundação do Estado de Israel. Pelo
contrário, esta ilusão fechou um círculo completo, voltando ao ponto de
partida: enquanto Herzl e a maioria dos sionistas que o sucederam acreditavam
que o surgimento de um estado judeu poria fim ao antissemitismo, hoje, um
número cada vez maior de pessoas, entre as quais alguns judeus, estão
convencidos de que o antissemitismo somente acabará com o desaparecimento do
Estado judeu. Deparei-me pela primeira vez
com essa ideia há bastante tempo, ainda na União Soviética. Durante a Guerra
dos 6 Dias, de junho de 1967, bem como no período que a antecedeu e sucedeu -
época em que eu e muitos outros vivenciávamos um impetuoso renascer de nossa
identidade judaica - a mídia soviética estava tomada por ataques mordazes a
Israel e ao Sionismo , tendo-se desencadeado uma deliberada campanha de
antissemitismo oficial para sustentá-los. E, para um número considerável de
judeus soviéticos que vinham tentando, de todas as formas, diluir-se na vida
soviética, eis que, de repente, Israel se torna um desagradável lembrete de seu
verdadeiro status no "paraíso dos 'operários'": a condição de presos
na armadilha de um mundo onde não eram livres para viver abertamente como
judeus nem tampouco para escapar do estigma de serem judeus. Para eles, Israel
parecia ser parte do problema e não - como o era para mim e para outros - parte
da solução. Expressando o que era, com certeza, um sentimento de muitos, um
parente distante gracejou: "Se, ao menos, Israel não existisse, tudo
estaria bem (...)". De lá para cá, e
especialmente nos últimos três anos, a noção de que Israel é uma das causas
primárias do antissemitismo, senão "a" causa primária, ganhou aceitação
muito mais ampla. O mundo, dizem-nos os amigos e os inimigos, odeia cada vez
mais os judeus pelo fato de odiar, cada vez mais, Israel. Certamente era isso
que o embaixador belga tinha em mente quando me informou, durante sua visita,
que o antissemitismo em seu país cessaria quando os belgas não mais tivessem
que ver, pela televisão, imagens de judeus israelenses oprimindo os árabes
palestinos. Obviamente, o Estado de Israel não pode ser a causa de um fenômeno
que o antecede em mais de 2.000 anos. Mas, seria apropriado vê-lo como a causa
do antissemitismo contemporâneo? O certo é que, em todas as partes, o Estado
judeu parece estar no centro da tempestade antissemita - e, mais do que em
nenhum outro lugar, isto é válido para o Oriente Médio. O aumento das matérias de vil conteúdo
antissemita divulgadas em toda a mídia estatal árabe é assustador e tem sido
intensamente documentado. Os marqueteiros, jornalistas e acadêmicos árabes que,
hoje, usam regularmente os métodos e o vocabulário em voga durante séculos para
"demonizar" os judeus europeus - chamando-os de assassinos de Jesus,
culpando-os de envenenar os não-judeus, inventando libelos de sangue e coisas
do gênero. Numa região em que a fé cristã tem poucos adeptos, um antissemitismo
cristão, sombrio e erodido pelo tempo, alardeia um enorme cortejo de
seguidores. Tomemos apenas um único exemplo: em fevereiro de 2003, o governo
egípcio, formalmente em paz com Israel, achou por bem transmitir em sua
televisão estatal uma série de 41 capítulos baseada na infame armação czarista
acerca de uma suposta conspiração mundial judaica que pretendia dominar o
mundo, os Protocolos dos Sábios de Sion. Para garantir altos índices, a série
primeiro foi ao ar em horário nobre, exatamente na hora em que milhões de famílias
árabes quebravam o seu tradicional jejum do Ramadã. Posteriormente, a televisão
árabe via satélite retransmitiu o seriado para outras dezenas de milhões de
pessoas mais, em todo o Oriente Médio. Na Europa, a ligação entre Israel e o antissemitismo é igualmente
evidente. Basta observar que o timing e a natureza dos ataques aos judeus
europeus, quer físicos quer verbais, revolveram sempre sobre Israel. A própria
onda antissemita, iniciada logo após o lançamento da campanha terrorista
palestina contra o Estado judeu, em setembro de 2000, tinha chegado a um pico
(até então) quando Israel deslanchou a sua Operação "Escudo da
Defesa", no final de março de 2002 - mês em que 125 israelenses tinham
sido mortos por terroristas. Apesar de a maioria dos
ataques físicos na Europa terem sido perpetrados por muçulmanos, a maioria dos
ataques verbais e culturais vieram das elites europeias. Por exemplo, o jornal
italiano La Stampa publicou uma charge de um menino Jesus, aos pés de um tanque
israelense, a implorar: "Não me venha dizer que eles querem me matar de
novo (...)". As frequentes e infelizes comparações - entre Ariel Sharon
(1928-2014) e Adolf Hitler (1889-1945), entre israelenses e nazistas e entre
palestinos e as vítimas judias do Holocausto - não foram arte de vândalos que
grafitaram com tinta spray as paredes de uma sinagoga, mas de professores
universitários e sofisticados colunistas. Aí está para todos lerem a declaração
do Prêmio Nobel, escritor José Saramago, sobre o tratamento dado por Israel aos
palestinos: "Podemos compará-lo ao que ocorreu em Auschwitz". A centralidade de Israel para a revitalização
de um antissemitismo mais generalizado faz-se também evidente na arena
internacional. Praticamente um ano depois de iniciada a atual rodada de
violência palestina e depois de terem sido mortos centenas de israelenses em
ônibus, discotecas e pizzarias, foi realizada uma assim-chamada
"Conferência Mundial contra o Racismo", em Durban, na África do Sul.
Esta foi logo transformada em um circo antissemita, no qual o Estado judeu era
acusado de tudo, de racismo e apartheid a crimes contra a humanidade e
genocídio. Nesse teatro do absurdo, os próprios judeus foram transformados em
perpetradores de antissemitismo, enquanto Israel era denunciado por "suas
práticas sionistas contra o semitismo" - ou seja, o semitismo dos árabes
palestinos. Naturalmente, ao se buscar,
então, a "causa raiz" do antissemitismo, o Estado judeu aparentava
ser o principal suspeito. Mas, que fique bem claro, Israel não tem culpa. O
Estado judeu não é, nem mais nem menos, a causa do antissemitismo, hoje, do que
o era a ausência de um Estado judeu, há um século. Para entender o porquê, primeiro temos que ver
que a sempre enganosa linha entre o anti sionismo e o antissemitismo se tornou,
agora, totalmente embaçada: Israel, de fato, se transformou no "judeu do
mundo", ou seja, no que o judeu representa para o mundo. Das mesquitas do
Oriente Médio o grito que se ouve, fazendo gelar o sangue, não é "morte
aos israelenses" - mas "morte aos judeus!" Em círculos mais
civilizados, um colunista do Observer, de Londres, anunciou, orgulhoso, que ele
não lê as cartas em apoio a Israel assinadas por judeus. (O fato de que a
comissão que analisa as queixas contra a imprensa britânica não tenha
encontrado nada de errado nessa declaração serve, apenas, para mostrar o quanto
as coisas mudaram, na Grã-Bretanha, desde que Orwell, em 1945, escreveu que
"não existe a possibilidade de, no presente, o anti semitismo se tornar
respeitável) Quando, nos elegantes banquetes europeus, o assunto passa para o
Oriente Médio - contam-nos fontes confiáveis - o ar chega a ficar azulado de
tanto ranço antissemita (...). Não menos revelador é o que
poderia ser chamado de 'a mecânica da discussão'. Durante séculos, um sinal
claro do impulso antissemita em vigor foi o uso de dois pesos e duas medidas:
hábitos sociais que, nos outros, passariam desapercebidos ou mereceriam um
simples comentário, tornam-se pretexto para uma denúncia grupal, generalizada,
quando exibidos por judeus. E esse mesmo tipo de reação diferenciada é hoje
empregado, impunemente, ao Estado judeu. É ao democrático Israel - e não às
dezenas de tiranias representadas na Assembleia Geral das Nações Unidas - que
esse organismo escolhe para condenar em mais de duas dezenas de resoluções, a
cada ano. É contra Israel - e não contra Cuba, Coréia do Norte, China ou Irã -
que a comissão de direitos humanos da ONU, recentemente presidida pela
"pura e virginal" Líbia, direciona cerca de um terço de sua ira
oficial. Foi de Israel o alegado "comportamento inadequado" que
provocou a única sessão conjunta jamais realizada pelos signatários da
Convenção de Genebra. É Israel, solitário entre as nações, quem tem sido
ultimamente alvo das campanhas ocidentais de retirada de investimentos. É apenas
ao Maguen David Adom de Israel, solitário entre os serviços de socorro e
resgate, no mundo, que tem sido negada a filiação à Cruz Vermelha
Internacional. Somente aos acadêmicos israelenses, solitários entre os
acadêmicos do mundo, tem sido vetada a concessão de bolsas e a publicação de
seus artigos na literatura acadêmica de prestígio. E esta lista continua,
indefinidamente... A ideia de que Israel se
tornou o que o judeu é para o mundo, ou seja, 'o judeu do mundo", e o anti
sionismo um substituto para o antissemitismo, certamente não é novidade. Anos
atrás, Norman Podhoretz (1930- ) observou que o Estado judeu
"tinha-se tornado a pedra de toque de atitudes relacionadas ao povo judeu,
enquanto que o anti sionismo se tinha tornado a forma mais relevante de
antissemitismo". E bem antes disso, o Dr. Martin Luther King Jr.
(1929-1968) tinha sido ainda mais inequívoco: "O amigo declara não odiar
os judeus, mas apenas ser "antissionista". E eu lhe digo: deixe a
verdade ecoar do alto das montanhas, deixe-a ecoar pelos verdes vales desta
terra Divina; quando as pessoas criticam o Sionismo, têm em mente os judeus -
esta é a verdade de D'us". Mas, se Israel nada mais é do que o judeu do
mundo, dizer-se, então, que o mundo, a cada dia, odeia mais os judeus pelo fato
de, a cada dia, odiar mais Israel, significa a mesmíssima coisa que dizer que o
mundo odeia os judeus pelo fato de odiar os judeus. De qualquer maneira, ainda
há que se saber por quê? Este talvez seja o ponto
certo para deixar que os antissemitas falem por si sós. Vejamos a razão
invocada por Haman, infame vice-rei da Pérsia no livro bíblico de Esther, para
convencer seu rei a ordenar a aniquilação dos judeus: "Há um determinado
povo espalhado e disperso entre as nações, em todas as províncias de vosso reino,
e suas leis são diferentes das dos outros povos, e não seguem os decretos
reais, não havendo, portanto, benefício algum para Vossa Majestade em
tolerá-los. Se for do vosso agrado, que seja decretada a sua destruição!" Não se pode dizer que esta seja a única fonte
antiga que aponta para a incorrigível auto separação dos judeus ou para o seu
desprezo pelos costumes e conceitos morais majoritários como razão para a
hostilidade contra eles. Séculos após a disseminação geral dos valores
helenísticos para além do Mediterrâneo, o historiador romano Tácito dissera:
"Para os judeus, é profano tudo o que consideramos sagrado; por outro
lado, lhes parece permissível tudo o que, para nós, é imoral (...). Afrontam o
resto do mundo com o ódio reservado aos inimigos. Não alimentam nem se casam
com os gentios... Introduziram a circuncisão para mostrar que diferem dos
demais... Para eles, constitui crime matar qualquer recém-nascido". Filostrato, escritor grego que viveu um século
mais tarde, ofereceu análise semelhante: "Pois que, há muito, estão os
judeus em luta não apenas contra os romanos, mas contra a humanidade; é uma
raça que construiu sua vida de forma separada e irreconciliável; que não pode
compartilhar com o restante da humanidade os prazeres da mesa nem se unir em
libação ou oração ou sacrifício; tem a separá-la de nós um golfo muito maior do
que o que nos separa, seja Sura ou Bactra, das mais distantes Índias". Será que os judeus, de fato, rejeitaram os
valores que predominavam na Antiguidade, ou teria sido apenas uma fantasia de
seus inimigos? Embora fossem espúrias muitas das alegações contra os judeus -
em seus rituais jamais matam não-judeus, como afirmou o escritor grego, Apion -
algumas de fato se baseavam em fatos verídicos. Os judeus se opunham ao casamento
misto. Negavam-se a oferecer sacrifícios a deuses estranhos. E, com toda a
ênfase possível, consideravam crime matar um recém-nascido. Naquele então, alguns ou talvez muitos judeus tenham
optado por engrossar a [sedutora] corrente do helenismo; a maioria não o fez.
Ainda mais importante, os judeus foram o único povo a seriamente desafiar o
sistema moral dos gregos. Não eram "um outro" no mundo antigo; eram
"o outro". Eram ademais, inabaláveis em sua convicção de que o
Judaísmo representava não apenas uma forma diferente de vida mas, em uma só
palavra, a verdade. A tradição judaica alega que Abraham foi eleito o patriarca
do que viria a ser a Nação Judaica somente depois de ter destruído os ídolos da
casa de seu pai. Seus descendentes continuariam a se opor ao mundo pagão
circundante, defendendo a ideia de um único D´us e, diferentemente de outros
povos da Antiguidade, recusando-se a sujeitar sua crença à de seus
conquistadores. A percepção (correta, de modo geral) de que os judeus rejeitam
o sistema de valores do mundo antigo dificilmente justificaria o antissemitismo
que é dirigido contra eles; tira, porém, o anti semitismo do reino da fantasia,
transformando-o em um genuíno conflito de ideais e valores. Com a entrada do
Cristianismo no palco mundial, esse mesmo conflito - novamente fundamentado na
alegação de rejeicionismo judaico - ver-se-ia aumentado em mais de mil vezes. A
recusa por parte do povo do "pacto ancestral" em aceitar o "novo
pacto" foi, então, considerada uma ameaça à própria legitimidade do Cristianismo
- ameaça esta que exigia uma resposta mobilizada. Estigmatizando os judeus como
"assassinos de Jesus" e "filhos dos demônios", a Igreja
deslanchou uma campanha sistemática para denegrir a religião que dera à luz o
Cristianismo, bem como seus seguidores. Ao longo dos anos seriam agregadas
acusações de violação da hóstia, assassinato ritual e envenenamento dos poços
d'água, aumentando ainda mais o barril de pólvora do ódio. Com o crescente
poder da Igreja e a disseminação global da cristandade, tais sentimentos
potencialmente explosivos foram levados aos pontos mais longínquos do mundo,
fazendo chegar o antissemitismo a lugares onde jamais tocara o solo um pé
judeu. Segundo alguns pensadores
cristãos, a perseguição aos impotentes judeus era justificada como o
"troco" que recebiam dos Céus por terem rejeitado Jesus. Este carimbo
celestial de aprovação seria invocado inúmeras vezes ao longo dos séculos,
especialmente por aqueles que tinham tentado - em vão - convencer os judeus a
admitir a verdade superior do Cristianismo. O caso mais famoso pode ter sido o
de Martinho Lutero (1483-1546): de início, extremamente amigo dos judeus -
quando jovem ele se queixara do mau tratamento que a Igreja lhes dava - Lutero
tornou-se um de seus inimigos mais ferozes assim que percebeu que os seus
esforços para atraí-los à sua nova forma de Cristianismo jamais dariam frutos. Nem tampouco era exclusivo da religião cristã
tal padrão. Maomé, também, tivera esperanças de atrair as comunidades judaicas
da Arábia, tendo, a princípio, incorporado elementos do Judaísmo à sua nova fé
(orar em direção a Jerusalém, jejuar no Yom Kipur e outros do gênero). Mas,
quando os judeus se recusaram a aceitar seu código de leis, Maomé avançou,
vingativo, sobre eles, amaldiçoando-os com palavras que eram uma assombrosa
reminiscência dos patriarcas dos primórdios da Igreja: "Humilhação e
desgraça estavam estampadas em seu rosto, e foram visitados pela ira de Alá.
Isto por terem desacreditado na revelação de Alá e maldosamente destorcido as
palavras dos profetas". Nas situações acima, também,
poderíamos perguntar se foi acertada a percepção do rejeicionismo judaico.
Naturalmente, os judeus nunca drenaram o sangue de criancinhas, nunca
envenenaram os poços, não tentaram mutilar o corpo de Jesus, nem cometeram
nenhum dos crimes bestiais dos quais a Igreja os acusava. Além disso, como
muitos dos ensinamentos do Cristianismo e do Islamismo se originavam
diretamente dos do Judaísmo, mal se podia dizer que os judeus os tivessem
negado. Mas, se a rejeição ao mundo cristão ou islâmico significava rejeição ao
credo cristão ou islâmico, os judeus que se agarravam à sua própria fé e
maneira de vida, distintas, eram, com certeza, rejeicionistas. Isto nos leva a um ponto de aparente diferença
entre o antissemitismo pré-moderno e o moderno. Para muitos judeus, ao longo de
dois milênios, havia, ao menos em teoria, uma maneira de escapar da
discriminação e perseguição institucionalizadas: os mundos greco-romano,
cristão ou muçulmano ficavam extremamente felizes de receber em seu seio os que
se convertiam ao seu modus vivendi. Na era moderna, essa opção sempre se
mostrou ilusória. Tanto os judeus assimilados quanto os não assimilados,
religiosos e seculares, foram igualmente vítima de pogroms, perseguições e
genocídio. De fato, os atos de terror contra os judeus assimilados da Europa
Ocidental levaram à conclusão de que longe de acabar com o antissemitismo, a
assimilação, em verdade, contribuía para o despertar. O que justificava isso?
No mundo pré-moderno, os judeus e gentios estavam quase sempre de acordo quanto
ao que definia o rejeicionismo judaico e, portanto, quanto ao que poderia
constituir um alívio temporário para o mesmo: era, a bem dizer, uma questão de
crenças e conceitos morais e do comportamento social decorrente dos mesmos. No
mundo moderno, apesar de continuar sendo relevante a questão de um judeu comer
a comida ou adorar o D'us de seus vizinhos, era, sem dúvida, menos relevante do
que antes. Em vez disso, o judeu moderno era visto como tendo nascido em uma
nação ou raça judaica, cujos valores coletivos estavam profundamente arraigados
na própria essência de seu ser. A assimilação, com ou sem conversão à fé
majoritária, poderia ter algum sucesso em mascarar seus matizes naturais;
jamais, no entanto, obliterá-los, definitivamente. Apesar de tais ideias não serem completamente
inexistentes em períodos anteriores, o ônus da prova enfrentado pelo judeu
moderno para convencer os outros de que ele poderia transcender sua
"judeidade" era muito maior do que o enfrentado por seus
antepassados. Apesar do crescente secularismo e abertura da sociedade europeia,
que deveriam ter acalmado as perspectivas de assimilação, muitos judeus
modernos achariam mais difícil se tornar franceses ou alemães "de
verdade" do que, para seus ancestrais, teria sido tornarem-se gregos ou
romanos, cristãos ou muçulmanos. A novidade do antissemitismo, portanto, não é o fato de que os judeus
eram vistos como inimigos da humanidade. Em verdade, o comentário de Hitler, no
Mein Kampf (Minha Luta), de que "onde quer que eu fosse, começava a
ver judeus, e, quanto mais os via, mais nitidamente eles se distinguiam, a meus
olhos, do restante da humanidade", não soa em nada diferente do que o
registrado por Filostrato, 1.700 anos antes. Não, a novidade do antissemitismo
moderno é apenas o fato de que, para o judeu, era muito mais difícil - às
vezes, até impossível - deixar de ser inimigo da humanidade. Num exame mais atento, então, o moderno
antissemitismo começa a aparecer como uma continuidade do antissemitismo
pré-moderno - só que pior. Talvez os judeus modernos não acreditassem estar
rejeitando a ordem prevalente em seu redor, mas isso não significava,
necessariamente, que seus inimigos estivessem de acordo com eles. Quando se
tratava do judeu, o nacionalismo europeu, do tipo sangue-e-território,
conseguia apenas adicionar uma outra camada de ódio, ainda mais assassina, aos
alicerces sedimentados por um ancestral preconceito religioso. Como no mundo
antigo, os judeus do mundo moderno continuavam sendo "o outro" -
rejeicionistas inveterados, não importa quão separados ou quão assimilados
fossem. Haveria algum núcleo de
verdade factual nessa alegação? É degradante ter que assinalar o fato de que
sempre que lhes foi dada a oportunidade, a maioria dos judeus modernos
esforçaram-se para ser cidadãos-modelo, demonstrando, acima de tudo, um talento
exemplar para a aculturação; a ideia de que, por força de seu nascimento, raça
ou religião, eram inimigos implacáveis do estado ou da nação lhes era
ridiculamente absurda. Isto se aplica, da mesma forma, a outros libelos
modernos dirigidos contra os judeus, todos com tanto ou tão pouco de verdade em
seu seio quanto os antigos. Os judeus não controlam nem nunca controlaram os
bancos. Não controlam nem nunca controlaram as comunicações. Não controlam nem
nunca controlaram os governos. E não estão tramando assumir o controle de
absolutamente nada! O que, de fato, alguns
fizeram, em várias partes e sob circunstâncias específicas, foi demonstrar -
com ardor e tenacidade que talvez remetam à sua longa experiência nacional - um
apego a grandes causas, de um matiz ou de outro, inclusive, às vezes, até mesmo
a causa de seu próprio povo. Isso teve o efeito [obviamente, não em toda parte,
mas notadamente em sociedades altamente estratificadas e/ou intolerantes] de
colocá-los em posição visivelmente adversária aos valores e ideologias
prevalentes, e, desse modo, despertar o sempre alerta dragão do antissemitismo.
A esse respeito, é particularmente instrutivo o caso do judaísmo soviético. O que o torna instrutivo é - em grande parte -
o fato de que o propósito confesso do comunismo era abolir todas as nações,
povos e religiões - todos grandes vetores da exclusão - a caminho da construção
de um novo mundo e de um novo ser humano. Como se sabe, um número razoável de
judeus, contando emancipar a humanidade e "normalizar" a sua própria
condição no decorrer do processo, atrelaram seu destino a essa ideologia e aos
movimentos a ela associados. Após a revolução bolchevista, esses judeus mostraram
estar entre os servos mais devotos do regime soviético. No entanto, mais uma vez a percepção de um
inextirpável sentimento judaico de ser "o outro" mostrou ser letal.
Aos olhos de Stalin e seus carrascos, os judeus, a começar pelos fiéis
comunistas entre eles, sempre foram suspeitos - "imigrantes
ideológicos", expressão que fala por si só. Mas a animosidade foi bem além
dos comunistas judeus. O regime soviético declarou guerra contra as mais de cem
nacionalidades e religiões que viviam sob sua mão de ferro; povos inteiros
foram deportados, classes inteiras destruídas, milhões de pessoas dizimadas
pela inanição enquanto outras dezenas de milhões eram mortas. Sofriam todos,
não apenas os judeus. No entanto, décadas mais tarde, muito depois de a
repressão staliniana ter cedido lugar ao "degelo" de Nikita Krushchev
(1894-1971), apenas um idioma nacional - o hebraico - continuava banido na
União Soviética; apenas a um único grupo - o dos judeus - era vedada a
construção de escolas para seus filhos; apenas no caso de um grupo - o dos
judeus - o termo "quinta linha", referindo-se ao espaço reservado
para a nacionalidade nos documentos de identificação dos cidadãos soviéticos,
tornou-se o código para a discriminação oficialmente permitida. Estava claro,
pois, que, na União Soviética, nenhum outro grupo era tão suspeito quanto o dos
judeus. Por mais que estes tentassem se igualar aos demais, acabavam percebendo
que engrossar as fileiras da humanidade pela via da grande causa socialista do
Leste não era mais fácil do que se filiar ao estado-nação do Ocidente. Mas,
isto nem mesmo era a história completa. Reduzir o que restava da mesma, não
apenas seria cometer uma injustiça com os judeus soviéticos enquanto atores
históricos, mas também seria deixar escapar algo essencial sobre o
antissemitismo, que, mesmo funcionando segundo suas próprias definições
destorcidas e sua própria lógica insana, provém, quase sempre, de alguma
qualidade genuína nas vítimas que escolhe. Como sói ocorrer, apesar de os judeus terem representação
desproporcional nas fileiras dos primeiros bolchevistas, a maioria dos judeus
russos estavam longe de ser bolchevistas - e nem mesmo simpatizantes. Mais
importante, ainda, foi o fato de que os judeus, com o tempo, iriam desempenhar
um papel fora de proporção no ocaso do comunismo. Em meados da década de 1960,
época em que sua participação na população do país havia encolhido
drasticamente, os judeus soviéticos constituíam um elemento significativo na
"oposição democrática". Um visitante do Gulag, naqueles anos, teria
descoberto que os judeus também eram proeminentes entre os dissidentes
políticos e aqueles condenados pelos chamados "crimes econômicos".
Ainda mais revelador é o fato de que, na década de 1970, os judeus foram os
primeiros a desafiar o regime soviético enquanto grupo nacional e a fazê-lo
publicamente, em massa; eram dezenas de milhares de pessoas que exigiam
abandonar para sempre esse regime totalitário Sob essa óptica, então, não
era totalmente infundada a alegação dos antissemitas soviéticos de que "o
pensamento judaico" e os "valores judaicos" opunham-se às normas
prevalecentes. E, por essa mesma óptica, o antissemitismo soviético professava
a mesma característica essencial de qualquer outra forma de antissemitismo. Dificilmente
isto serve para atenuar a sua monstruosidade. Novamente, apenas o retira do
reino da fantasia. Eis-nos pois, de volta aos dias de hoje e ao ódio que tem
por alvo o Estado de Israel. Esse estado - que é o judeu do mundo - tem a
distinção de desafiar, simultaneamente, duas ordens político-morais: a ordem do
Oriente Médio árabe e muçulmano e a ordem que prevalece na Europa Ocidental. O
caso meso oriental é o mais fácil de se perceber; o europeu ocidental talvez
seja o mais agourento. Os valores em alta no
Oriente Médio de hoje são moldados por duas forças: o fundamentalismo islâmico
e o autoritarismo estatal. Aos olhos do primeiro qualquer potência soberana,
não muçulmana, na região - a bem dizer, qualquer potência muçulmana secular - é
um anátema. Especialmente exasperadora é a soberania judaica numa área
delineada como sendo "dar-al-Islam", o local onde o Islamismo está
destinado a desfrutar de domínio exclusivo. Uma tal violação não pode ser
comprometida; nada bastará a não ser a sua extirpação. Aos olhos dos regimes árabes seculares, os
judeus de Israel igualmente são uma afronta, nem tanto no aspecto ideológico
quanto no da sociedade que construíram: livre, produtiva, democrática, uma
reprovação vívida aos regimes corruptos e autocráticos que a cercam. Em resumo,
o Estado judeu é o derradeiro guerreiro da liberdade - a personificação das
liberdades subversivas que ameaçam igualmente a civilização islâmica e o
domínio autocrático árabe. Por esta razão tanto na mídia árabe, controlada pelo
estado, quanto nas mesquitas, os judeus foram transformados em símbolos de tudo
o que há de ameaçador no Ocidente, democrático e materialista, como um todo, e
são considerados uma força insidiosa que manipula os Estados Unidos para se
confrontar com o Islamismo. A dinâmica específica do antissemitismo
na órbita do Oriente Médio, hoje, talvez ajude a explicar por que - de modo
diferente, como veremos adiante, do que ocorre na Europa - não houve queda no
nível de incitação anti judaica na região após o início do processo de paz de
Oslo. Muito pelo contrário. E a razão é simples: na medida em que Oslo deveria
ter tido êxito em promover uma verdadeira reconciliação com Israel ou em
facilitar a disseminação da liberdade política, nessa mesma medida teria
frustrado o objetivo supremo de erradicar o "mal" judaico do coração
do Oriente Médio e/ou de preservar o poder autocrático dos regimes árabes. Assim sendo, enquanto na década de 1990 o
mundo democrático, inclusive a democrática sociedade israelense, celebrava a
promessa de um novo amanhecer [ilusoriamente, como se viu a posteriori no
Oriente Médio, as escolas em Gaza, os livros-texto em Ramallah, os jornais no
Egito e os canais de televisão na Arábia Saudita projetavam um retrato mais
verdadeiro do estado de espírito no mundo árabe. Portanto, não devia ser
surpresa o fato de que, no Egito, tenham sido impressas cópias-pirata do livro
"Um Novo Oriente Médio", de Shimon Peres, que anuncia uma era
messiânica de livres mercados e livres ideias, com uma introdução, em árabe,
explicando que esta bíblia da paz no Oriente Médio comprovava, na verdade, tudo
o que fora escrito em Os Protocolos dos Sábios de Sion sobre um plano judaico
de governar o mundo. Já na Europa Ocidental, a reputação de Israel e dos judeus
passou por uma infinidade de altos e baixos, com o decorrer das décadas. Antes
de 1967, a sombra do Holocausto e a percepção de Israel como um país pequeno em
luta por sua existência face à agressão árabe, funcionaram, juntas, para
assegurar, senão o favor das classes políticas europeias, pelo menos a dispensa
da crítica ferrenha. Mas, tudo isso mudou, em
junho de 1967, quando o Estado judeu conseguiu uma vitória aparentemente
milagrosa, contra seus inimigos árabes, na Guerra dos 6 Dias, e a vítima por
excelência foi transformada, da noite para o dia, em agressor. Uma história,
provavelmente apócrifa, sobre Jean-Paul Sartre resume a mudança no mundo
europeu. Antes da guerra, enquanto Israel jazia isolado, diplomaticamente, e os
líderes árabes já trombeteavam sua morte certa, o famoso filósofo francês assinou
uma declaração de apoio ao Estado judeu. Após a guerra, ele teria repreendido o
homem que lhe solicitara a assinatura: "Mas você me garantiu que Israel
sairia perdedor (...)." Décadas antes de
"ocupação" se tornar uma palavra corriqueira, o mundo nas
chancelarias europeias e nas fileiras da esquerda se tornara declaradamente
hostil. Certamente havia interesses venais em jogo, desde a necessidade
percebida de carrear favores junto aos países produtores de petróleo do mundo
árabe até, anos mais tarde, a necessidade percebida de se prestar atenção
especial às crescentes populações muçulmanas dentro da própria Europa. No
entanto, havia também outras correntes em jogo na medida em que sentimento anti
"imperialistas", pacifistas e pró-liberacionistas, acalentados e,
muitas vezes, subsidiados pela URSS, apossavam-se da avançada cultura política
da Europa e da diplomacia internacional. Por trás da nova hostilidade contra
Israel jazia a nova ortodoxia ideológica, segundo a qual o Estado judeu
emergira no cenário mundial com as credenciais de potência
"colonialista" e imperialista", "hegemonizadora" e
"opressora". Antes de 1967, as resoluções
antissionistas nas Nações Unidas, apadrinhadas pelos árabes e seus patronos
soviéticos conquistaram pouco ou nenhum apoio entre as democracias. Após 1967,
um número cada vez maior de países ocidentais unia-se ao coro que clamava por
punição. Em 1974, Yasser Arafat, cuja organização abertamente abraçava o
terrorismo e a destruição de um estado-membro da ONU, foi convidado a falar
perante a Assembleia Geral. No ano seguinte, o mesmo organismo aprovou a infame
resolução que equiparava o sionismo ao racismo. Em 1981, o ataque israelense ao
reator nuclear do Iraque foi condenado pelo mundo inteiro, inclusive os Estados
Unidos. E, na década de 1990, as coisas começaram novamente a mudar. A despeito
do fluxo constante de resoluções preconceituosas da ONU, a despeito da
continuidade prática do sistema de dois pesos e duas medidas, registraram-se,
também, algumas ocorrências positivas: a resolução "sionismo é
racismo" foi invalidada e mais de 65 estados-membros estabeleceram ou
reataram relações diplomáticas com Israel. O que teria acontecido: secara o petróleo árabe? Teriam os muçulmanos
subitamente se tornado uma força política menos potente, no continente europeu?
Pouco provável. O que mudara tinha sido o fato de, em Madri e Oslo, Israel ter
concordado, a princípio com relutância e, a seguir, com otimismo autoinduzido a
se adaptar ao caráter, em alta, da política internacional. Ao estender a mão a
uma organização terrorista ainda comprometida com sua destruição, Israel
concordava com a criação de um regime ditatorial e repressivo, bem na porta de
casa, para assim sustentar o seu compromisso com o chamado processo de paz, sem
levar em conta quantos israelenses inocentes estavam sendo mortos e feridos em
nome de sua causa fraudulenta. A recompensa por assim se
conformar ao modelo dos moralistas do mundo - cosméticos e temporários como se
tinham comprovado - fluiu, como era de se esperar, não apenas para Israel mas
para o povo judeu todo. Obviamente, os índices mundiais de antissemitismo na
década de 1990 caíram a seu nível mais baixo, desde o Holocausto. Enquanto os
judeus do mundo se beneficiavam da crescente tolerância que era estendida ao
"judeu do mundo", as organizações ocidentais especializadas em
combater o flagelo do antissemitismo puseram-se, cautelosamente, a cantar
vitória e a redirecionar o seu enfoque a outras partes da pauta comunal
judaica. Mas, naturalmente, tal
situação não duraria muito tempo. No verão de 2000, em Camp David, Ehud Barak
(1947- ) ofereceu aos palestinos praticamente tudo o que se supunha sua
liderança estivesse exigindo. A oferta foi sumariamente recusada, Arafat
iniciou o seu "levante", Israel assumiu a sua própria defesa - e a
Europa parou de aplaudir. Para muitos judeus, à época, isso parecia
extremamente incompreensível: não teria Israel dado todos os passos que
faltavam, em direção à paz? Mas tudo era compreensível até demais. A Europa se
mantinha fiel à forma: o judeu do mundo, ao se recusar a aceitar sua parcela de
culpa pelo "ciclo de violência", era quem estava fora da linha (...).
E assim o estavam, também, os judeus do mundo, que, por definição e quer
apoiassem Israel ou não, eram prontamente associados com o Estado judeu em sua
audácia e desfaçatez. Para os americanos, o
processo que estou descrevendo pode soar assustadoramente familiar. E deveria.
Eles, também, tiveram inúmeras oportunidade, em anos recentes, de ver seu país
no banco dos réus da opinião mundial pelo crime de rejeitarem os valores da
assim-chamada comunidade internacional e, mais do que nunca, durante a histeria
generalizada que saudou o anúncio do plano do Presidente George W. Bush
(1924- ) de desmantelar o tirânico regime de Saddam Hussein (1937-2006).
Em dezenas de países, os manifestantes enchiam as ruas vocalizando sua fúria
por essa recusa dos Estados Unidos de se conformar ao molde que
"todos" esperavam que seguisse. A julgar pelos cartazes empunhados
nesses protestos, o Presidente Bush, líder do mundo livre, era pior como
inimigo da humanidade do que o açougueiro de Bagdá (...). À primeira vista, também isso deve ter
parecido incompreensível. Saddam Hussein era um dos ditadores mais brutais do
mundo, um homem que levara seus próprios conterrâneos a mortíferas câmeras de
gás, invadira o território de seus vizinhos, desafiara as resoluções do
Conselho de Segurança e era amplamente tido como possuidor de armas de
destruição em massa. Mas nada disso importava: os protestos tinham menos a ver
com a virtude iraquiana do que com o vício americano; e as queixas vociferadas
por um sortimento de anticapitalistas, antiglobalização, ambientalistas
radicais, pretensos anti-imperialistas e muitos outros que se agrupavam para
vituperar contra a guerra, tinham muito pouco a ver com as eventuais
desvantagens de uma operação militar no Iraque. Tinham, pelo contrário, muito a
ver com um genuíno conflito de valores. Na medida em que o conflito era entre os Estados Unidos e a Europa -
pois que há, também, um grande contingente de opinião "europeia"
dentro dos Estados Unidos - este foi bem diagnosticado por Robert Kagan
(1958- ) em seu best-seller, Of Paradise and Power. Para os propósitos de
nossa análise, basta observar o quão rapidamente o debate inicial sobre
"por que eles nos odeiam", na esteira dos acontecimentos de 11 de
setembro, enfocando o sentimento antiamericano existente no mundo muçulmano,
foi suplantado por um outro debate sobre "por que eles nos odeiam",
centrado dessa vez no sentimento antiamericano na "Velha Europa". De modo geral, viu-se que os dois ódios
emanavam de impulsos divergentes: em um caso, da percepção da ameaça que as
democracias ocidentais representavam para a civilização islâmica e, no outro,
da percepção da ameaça que uma América confiante e poderosa representava para a
ideia europeia pós-moderna de um mundo regulamentado não pela força, mas pela
razão, pela concessão e pela ausência de ideias pré concebidas. Na Europa de
hoje - declaradamente pacifista, pós-nacionalista, anti hegemônica - uma
expressão como "Eixo do Mal" não conquista muitos amigos e a ideia de
um confronto real com esse eixo, ainda menos. Contudo, apesar das diferenças
entre eles, o antiamericanismo do mundo islâmico e o antiamericanismo da Europa
estão, de fato, interligados, tendo, ambos, uma sinistra semelhança com o
antissemitismo. Pois, afinal de contas, há certa dose de razão para os Estados
Unidos serem detestados e temidos por déspotas e fundamentalistas do mundo
islâmico, bem como por muitos europeus. Assim como Israel, mas de forma muito
mais poderosa, a América personifica uma idéia diferente - não-conformista - do
bem e se recusa terminantemente a abandonar sua transparência moral acerca do
valor objetivo dessa ideia ou dos hábitos e instituições livres aos quais deu
vida. Pelo contrário: ao empreender sua guerra contra o flagelo do terrorismo,
o povo americano demonstrou sua determinação não apenas de lutar para preservar
as bênçãos da liberdade para si próprios e seus descendentes, mas para levá-las
a regiões do mundo que se mostravam mais resistentes à sua influência benigna. Neste sentido, também positivo, Israel e o
povo judeu compartilham algo muito essencial com os Estados Unidos. Afinal de
contas, os judeus vêm dizendo, há muito, que foram escolhidos para desempenhar
um papel especial na história, o de ser aquilo que seus profetas chamaram de
"uma luz entre as nações". O significado preciso da frase tem dado
margem a discussão e eu seria a última pessoa a negar a maldade causada, em
certas ocasiões, mesmo em nome do mais sincero interesse judaico, por pessoas
que usaram este moto como sua bandeira. Mesmo assim, ao longo de quatro
milênios, a visão universal e os preceitos morais dos judeus serviram não
apenas para assegurar a sobrevivência do próprio povo judeu, mas constituíram
uma força poderosa em favor do bem, no mundo, inspirando milhares e milhares a
lutar pelo que era certo ainda que em outras pessoas tivessem despertado
rivalidade, inimizade e um ressentimento implacável. Ocorre algo semelhante com os Estados Unidos -
uma nação que, há muito, se sente incumbida de uma missão de ser aquilo que
John Winthrop chamou, no século 17, de uma "cidade numa colina" e que
Ronald Reagan, no século 20, interpretou como uma "brilhante cidade numa
colina" - ou seja, uma nação exemplar, nas alturas, em direção à qual os
olhos das outras se ergueriam, em busca de modelo. O que se depreende,
precisamente, dessa frase, também é tema de discussão, mas os americanos que
vêm seu país nesses termos, certamente entendem o avanço dos valores americanos
como primordial para o propósito americano. E, apesar de os Estados Unidos
ainda serem uma nação jovem, não pode haver controvérsia quanto ao fato de que
tais valores também constituíram uma imensa força para o bem no mundo - ainda
que tenham carreado para a América a inimizade e o ressentimento de muitos. Ao
resolver enfrentar a inimizade e o ódio, a lição que se tira contemplando o
exemplo de outros constitui importante fonte de força. De Sócrates a Wiston
Churchill (1874-1965) a Andrei Sakharov (1921-1989), houve indivíduos cujas
vozes e cujo heroísmo pessoal reforçaram nos outros a determinação de não
vacilar na defesa do bem. Mas a história, também, foi generosa o bastante de
oferecer, nos judeus, o exemplo de um povo ancestral inflamado pela mensagem da
liberdade dos homens neste mundo de D'us e, nos americanos, o exemplo de um
povo moderno que, apenas no século passado, agindo em lealdade com suas mais
íntimas convicções, confrontaram-se e venceram as maiores tiranias jamais
vistas pelo homem. Felizmente para a América -
e felizmente para o mundo - os Estados Unidos foram abençoados pela Providência
com o poder de fazer jus a seus ideais. O Estado judeu, em contraste, é uma
ilha minúscula perdida num mar excessivamente perigoso, e seus cidadãos irão
necessitar de todas as partículas de força que possam reunir para afrontar as
provações que têm pela frente. É a estarrecedora perseverança de seu próprio
povo, a despeito de séculos de sofrimento em mãos de diferentes credos,
ideologias, povos e indivíduos que os odiavam e se dispunham a liquidá-los, o
que nos inspira a confiança de que os judeus irão, uma vez mais, sobreviver a
seus inimigos. www.morasha.com.br. Abraço. Davi.
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