Filosofia e Cristianismo.
Livro – Ensaios de Teodiceia Sobre a Bondade de Deus a Liberdade do Homem e a
Origem do Mal. Por G. W. Leibniz (1646-1716). PREFÁCIO – PARTE II. Existem dois
famosos labirintos onde nossa razão se perde muitas vezes. Um diz respeito à
grande questão do livre e do necessário, sobretudo quanto à produção e quanto à
origem do mal. O outro consiste na discussão do contínuo e dos indivisíveis que
constituem seus elementos, e no qual deve entrar a consideração do infinito. O
primeiro embaraça praticamente todo o gênero humano, o outro influencia somente
os filósofos. Talvez eu tenha outra oportunidade para me explicar sobre o
segundo, e de fazer observar que na falta de conceber mais adequadamente a
natureza da substância e da matéria, assumiu-se falsas opiniões que levam a
dificuldades intransponíveis, cujo verdadeiro uso deveria ser o inverso dessas
mesmas opiniões. Mas se o conhecimento do contínuo é importante para a
especulação, o da necessidade não o é menor para a prática. E este será o
objeto deste tratado, com as questões que a ele estão ligadas, a saber, a
liberdade do homem e a justiça de Deus. Os homens de quase todos os tempos
foram perturbados por um sofisma que os antigos chamavam de raciocínio
preguiçoso, porque ele levava a fazer nada ou, no mínimo, a não se preocupar
com nada, e a não seguir senão a inclinação para os prazeres presentes. Pois,
diziam, se o futuro é necessário, o que deve acontecer acontecerá
independentemente do que eu possa fazer. Acontece que o futuro, diziam, é
necessário, seja porque a divindade prevê tudo e mesmo o preestabelece ao
governar todas as coisas do universo. Seja porque tudo acontece necessariamente
pelo encadeamento das causas, seja, enfim, pela própria natureza da verdade que
é determinada nas enunciações que podemos formar sobre os eventos que é
determinada nas enunciações que podemos formar sobre os eventos futuros. Como
ela o é em todas as outras enunciações. Visto que a enunciação sempre deve ser
verdadeira ou falsa nela mesma, ainda que não conheçamos sempre qual o seu valor
de verdade. E todos esses motivos de determinação que parecem diferentes
concorrem enfim como linhas para um mesmo centro: pois há uma verdade no evento
futuro, que é predeterminada pelas causas, e Deus a preestabelece ao
estabelecer as causas. A ideia da necessidade quando mal compreendida, sendo
empregada na prática, fez surgir o que denomino fatum mahumetanum, o destino a
maneira turca. Pois se atribui aos turcos o não evitar os perigos e até o não
abandonar os lugares infectados com alguma peste, com base em raciocínios
semelhantes àqueles que acabamos de relatar. Pois o que denominamos fatum
stoicum não era tão odioso quanto se pinta: ele não desviava os homens da
preocupação com os seus afazeres. Mas tendia a lhes oferecer a tranquilidade em
relação aos eventos, a partir da consideração da necessidade que torna nossas
preocupações e nossas tristezas inúteis. No que esses filósofos não se
distanciam inteiramente da doutrina do Nosso Senhor, que dissuade essas
preocupações em relação ao amanhã. Ao compará-las com os sofrimentos inúteis
que se daria um homem que trabalhasse para aumentar o seu porte. É verdade que
os ensinamentos dos estoicos, e talvez também de alguns filósofos célebres do
nosso tempo, se limitando a essa suposta
necessidade, não podem oferecer senão uma paciência forçada. Enquanto Nosso
Senhor inspira pensamentos mais sublimes, e até nos ensina o modo de adquirir
contentamento quando nos assegura que Deus, perfeitamente bom e sábio, tendo
cuidado de tudo, não negligenciando sequer um cabelo da nossa cabeça, conforme
Lucas 12,7, devemos confiar nele inteiramente. De modo que, se fôssemos capazes
de compreendê-lo, veríamos que não há de fato meio de desejar algo melhor,
tanto absolutamente como para nós, que aquilo que ele faz. É como se
disséssemos aos homens: façam o seu dever e fiquem contentes com o que vai
acontecer, não somente porque vocês não poderiam resistir à providência divina
ou à natureza das coisas, o que pode bastar para estar tranquilo, mas não para
estar contente. Porém também porque vocês têm obrigações para com um bom
mestre. E é isso que podemos denominar fatum christianum. Entretanto, acontece
que a maioria dos homens, e mesmo dos cristãos, incluem em sua prática alguma
mistura do destino à maneira turca, ainda que não o reconheçam. É verdade que
eles não ficam na inação e na negligência quando perigos evidentes ou
esperanças grandes e manifestas se apresentam. Pois não deixarão de sair de uma
casa que vai cair, e de se desviar de um precipício que veem em seu caminho. E
cavarão a terra para desenterrar um tesouro parcialmente à mostra, sem esperar
que o destino acabe de fazê-lo. Mas quando o bem ou o mal está distante e
incerto, e o remédio penoso, ou pouco conforme ao nosso gosto, o raciocínio
preguiçoso nos parece bom. Por exemplo, quando se trata de conservar sua saúde
e mesmo sua vida mediante um bom regime. As pessoas a quem damos conselhos a
esse respeito muito frequentemente respondem que nossos dias estão contados e
que nãos serve de nada querer lutar contra aquilo que Deus nos destina. Mas
essas mesmas pessoas correm para os remédios, até para os mais ridículos,
quando o mal que tinham negligenciado se aproxima. Pensamos quase da mesma
maneira quando a deliberação é um pouco espinhosa, como por exemplo, quando se
pergunta: que vida eu devo seguir? Que ocupação devemos escolher, quando temos
um casamento que se deve realizar, uma guerra que devemos empreender, uma
batalha que se deve dar, contudo nesses casos muitos erão levados a evitar o
trabalho da discussão e a se abandonarem à sorte. Ou à inclinação, como se a
razão só devesse ser empregada nos casos fáceis. Então, com bastante frequência
pensaremos à maneira turca, mesmo que inapropriadamente digamos que isso se
refere â Providência. O que propriamente tem lugar quando satisfazemos nosso
dever e empregamos o raciocínio preguiçoso, pensando a partir do destino ao
qual não se pode resistir. Para se isentar de raciocinar como é preciso, sem
considerar que esse raciocínio contra o uso da razão fosse bom, ele sempre
teria lugar, quer a deliberação fosse fácil ou não. É essa preguiça que em
parte é a fonte das práticas supersticiosas dos adivinhos às quais os homens se
entregam tão facilmente quanto à pedra filosofal, porque eles desejam os
caminhos mais curtos para se dirigir sem esforço à felicidade. Eu não falo aqui
daqueles que se entregaram à sorte, porque antes disso eles foram felizes, como
se existisse nisso algo seguro. Seu raciocínio do passado para o futuro é tão
pouco fundado quanto os princípios da astrologia e de outros sistemas
divinatórios. E não consideram que existe ordinariamente um fluxo e refluxo na
sorte,, uma maré, como os italianos têm costume de chamá-la jogando o bacará –
cartas. E nisso eles fazem observações particulares nas quais, entretanto, eu
não aconselharia a ninguém que confiasse demais. Contudo, essa confiança que se
tem em sua sorte serve frequentemente para dar coragem aos homens, sobretudo
aos soldados, e efetivamente lhes faz ter essa boa sorte que eles se atribuem.
Como as predições fazem com que frequentemente aconteça aquilo que foi predito,
assim como dizemos que a opinião que os maometanos têm do destino os torna
determinados. Dessa forma, algumas vezes até os erros têm a sua utilidade, mas
comumente servem para remediar outros erros e a verdade é preferível
absolutamente. Abraço. Davi
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