sexta-feira, 21 de julho de 2023

CRISTIANISMO O MÍNIMO DO MÍNIMO

 

Cristianismo. Livro CRISTIANISMO O MÍNIMO DO MÍNIMO. Escrito por Leonardo Boff (1938-  ). “Toda encarnação  do cristianismo nas culturas significa concreção, mas também limitação e redução. Reducionismo na filosofia é uma tendência que consiste em reduzir os fenômenos complexos e seus componentes mais simples. Considerando esses últimos como mais fundamentais que os fenômenos complexos observados. Um dos principais inimigos da liberdade, no homem, é o reducionismo. Qualquer tipo de reducionismo é frustrante, principalmente os que reduzem o homem a um produto. Quanto do sonho de Jesus, de sua prática, de sua mensagem e de sua ética suporta o paradigma grego romano ocidental? Ele incorporou o cristianismo dentro de suas possibilidades, mas à custa de notáveis limitações e lamentáveis reduções. Importa libertar a experiência originária de Jesus e diminuir a arrogância institucional da Igreja Católica Romana que pretende apresentar a integralidade da herança de Jesus sem nenhum reducionismo e sem relativismo, pior ainda, condenando os reducionismo dos outros sem se dar conta do seu próprio reducionismo. Por isso, precisamos proceder a uma reflexão crítica. A questão não é o reducionismo. Ele  pertence a todo processo de encarnação; não é defeito, mas marca da história. A questão é estar cego a tal fato e apresentar-se arrogantemente como quem nada reduziu, confundindo a parte com o todo, como o seu reducionismo real, mas inconsciente fosse a totalidade do Evangelho e do sonho de Jesus. Elenquemos alguns desses reducionismos, pois desta forma libertaremos o cristianismo desta patologia a fim de que possa desimpedidamente implementar outros ensaios encarnatórios futuros. O cristianismo romano católico, ao invés de pregar o Deus Trindade, ficou no monoteísmo vétero testamentário e pré trinitário. A doutrina de um só e único Deus, dominante nas pregações e na própria reflexão teológica, se adequava e se adequa melhor à cultura do poder autoritário e do pensamento único, reinante na cultura patriarcal. Ao invés de prolongar o sonho de Jesus, do Reino de Deus, anunciou a Igreja fora da qual não há salvação, não raro aliada aos poderosos e distanciada dos pobres e oprimidos. Ao invés de pregar a ressurreição como o evento maior da história, um verdadeiro tremendum na linguagem do Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), preferiu o anúncio da imortalidade da alma, crença platônica vastamente popularizada na cultura romana, grega e ocidental até os dias de hoje.  Ao invés de apresentar o Jesus real, histórico, preferiu um Jesus definido em termos filosóficos e teológicos dos Concílios de Niceia (325), de Constantinopla (381), de Éfeso (431) e de Calcedônia (451) como aparece no atual credo. Nele é professado como “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, engendrado, não criado, da mesma natureza que o Pai”. E logo se diz que “se fez homem e por nossa salvação foi crucificado sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi sepultado”. Nada se diz de sua vida, mensagem, obra e por que o mataram. No fundo apenas se diz que “nasceu e morreu”. Portanto, um reducionismo que esvazia totalmente a realidade humana de Jesus, aquela que realmente importa, sem perceber o altíssimo risco de esvaziar o Mistério da Encarnação. Ao invés de reforçar a comunidade, na qual todos participavam de tudo, introduziu a hierarquia de pessoas e a divisão das funções, criando dois corpos nas igrejas, o corpo clerical (religiosos, teólogos e oficiantes dos ritos) que tudo sabe e tudo pode e o corpo laical (o povo participante em geral) ao qual cabe apenas ouvir e executar. Ao invés da comunhão dos bens, apanágio das comunidades cristãs primitivas, atestadas pelos Atos dos Apóstolos (capítulos 2 e 4), prevaleceu o espírito individualista pelo qual cada um vive para si e cuida de salvar a sua alma. Mas há ainda um outro tipo de reducionismo, este ainda mais profundo, que atingiu a substância da novidade trazida por Jesus. Assim, a experiência do cristianismo de experimentar Deus como Trindade de Pessoas, sempre em pericórese (é a relação entre a Santíssima Trindade, Triunidade; Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo), comunhão de vida e de amor mútuos, não logrou impor-se historicamente. Esta intuição fundamental e original face às demais religiões foi logo capturada por polêmicas derivadas do paradigma grego de pensamento. Este se caracteriza, com raras exceções, por uma visão substancialista, identitária e não processual da vida e da história, pouco adequada a pensar a Trindade como jogo de relações entre as três divinas Pessoas. Esta, por sua própria natureza, demanda um outro paradigma que vê a realidade em permanente processo de realização e de emergência como é próprio do Mistério, como o temos meditado anteriormente, e típico de fenômenos como a vida, a natureza e o espírito. A maioria dos pensadores cristãos, incapaz de captar a singularidade do modo cristão de dizer Deus, fez com que o discurso pastoral das igrejas se mantivesse no clássico monoteísmo pré trinitário, comum ao judaísmo e às religiões do mundo. A Santíssima Trindade ficou sendo o símbolo do Mistério dos Mistérios e, por isso, tido como inacessível à razão humana e objeto de pura fé. Os intentos de aprofundamento, nos quadros do logos grego, produziram intrincadas discussões com inúmeras heresias, o que isolou mais ainda esta verdade da vida e da prática dos cristãos. Restou sua presença na liturgia mais de forma ritual do que existencial. Outro reducionismo diz respeito ao eclipse da figura do Pai como Pai do Filho. No Credo se professa que Ele é “Pai Todo Poderoso, criador do céu e da Terra”, onisciente e juiz supremo, Senhor absoluto da vida e da morte. Ao lado de tal Pai não resta lugar para um Filho, por isso não é vivido trinitariamente como o Pai do Filho, mas como o Criador de todas as coisas. Esta religião do Pai serviu e continua servindo de justificação ideológica a todo tipo de paternalismo e autoritarismo pelos quais as pessoas são mantidas na dependência e no servilismo. Um Pai no céu, Deus; um pai na Terra, o monarca ou o presidente; um pai na Igreja, o papa; um pai na comunidade, o chefe; e um pai na família; o pai como a autoridade máxima. Esta continua sendo a representação dominante. A exaltação excessiva da figura do Filho. O esquecimento da visão trinitária ocasionou uma concentração exacerbada da figura do Filho encarnado em Jesus Cristo. Surgiu o cristomonismo (predominância exclusiva de Cristo), como se Cristo fosse a única e exclusiva realidade e não houvesse junto com Ele o Pai e o Espírito Santo. Ele é visto como o único Salvador universal, um líder libertador, solitário, ornado com todos os símbolos do poder, sempre exaltado como Senhor e Cristocrator, tendo o cetro numa das mãos, o mundo na outra e uma coroa de ouro e joias na cabeça, coisa que o Jesus histórico, possivelmente, jamais teria visto com os próprios olhos e rejeitaria, indignado, ser ornado com semelhante parafernália. A figura do Servo Sofredor e companheiro na caminhada humana, o Cristo do casal de caminhantes de Emaús é assim poderosamente ofuscada. A exacerbação da figura do Cristo, cabeça invisível da Igreja visível,  reforça as figuras autoritárias e as instituições fundadas no poder centralizador. Este tipo de cristologia reducionista criou seu oposto compensatório que é a cristologia juvenil elaborada em função dos jovens. Ai Jesus aparece como um formoso e entusiasta líder e um herói vigoroso, como qu saído de alguma academia de ginástica, a ser seguido e exaltado. Mas esta imagem hollywoodiana é quase sempre desvinculada dos conflitos inerentes à vida  e à história. Ou então, romanticamente, emerge um Jesus da pastoral familiar, apresentado no meio de Maria e José ou como o doce Jesus de Nazaré, abençoando crianças, ou como o Bom Pastor, cercado de ovelhas em pastos verdejantes ou tristemente olhando para a cidade de Jerusalém que o rejeitou. Uma religião só do Filho se encapsula sobre si mesma como se nada mais existisse para além dela mesma. Torna-se incapaz de ver a presença do Espírito e valores do Reino em outros caminhos espirituais que não nos cristãos, e está a um passo do exclusivismo e do fundamentalismo com referência a revelação e a salvação. O terceiro reducionismo concerne ao esquecimento da figura do Espírito Santo. Tardiamente, na reflexão teológica, o Espírito Santo foi admitido como terceira Pessoa da Trindade, ficando refém das disputas teológicas entre a Ortodoxia e a Igreja Latina com referência ao filioque, quer dizer, a relação de origem do Espírito. Ele é espirado unicamente pelo Pai, assim como o Filho é gerado (Ortodoxia), ou é espirado pelo Pai e pelo Filho ou através do Filho (o filioque da Igreja latina). Esta discussão teológica que parece, no fundo, irrelevante, oculta, na verdade, disputas de poder entre os dois  polos da Cristandade, o Ocidente e o Oriente, cindiu as duas igrejas fundamentais até os dias de hoje. Tal fato produziu um deslocamento: no lugar do Espírito entraram as igrejas. Ele acabou tendo uma função lateral e secundária. Quer queiram as igrejas ou não, o Espírito é fonte de criatividade e de inovação, sopra onde quer, antecipa-se ao missionário, pois se faz presente nos povos pelo amor, pelo perdão e pela convivência solidária. As instituições, no entanto, o veem como fator de perturbação da ordem estabelecida e, por isso, marginalizado e até esquecido. Em razão desta compreensão conservadora e reducionista, os homens e mulheres do Espírito, os místicos e fundadores de novos caminhos espirituais, tiveram sempre dificuldade de reconhecimento por parte da instituição eclesiástica que os manteve e ainda os mantém sob severa vigilância, quando não os marginaliza e até condena. Esquecem a severa advertência de Paulo: “não afogueis o Espírito” (I Ts 5:19). Uma comunidade eclesial sem a presença consciente do Espírito, geralmente é dominada por autoridades eclesiástica, ávidas de ordem e de poder, enrijecidas e burocratizadas. Por outra parte, os movimentos carismáticos, que buscam alimentar uma experiência pessoal de Deus, encontraram no Espírito Santo a sua fonte de inspiração. Dai se explica a proliferação de igrejas carismáticas populares, sejam evangélicas, sejam católicas, mas com formas muito afins de piedade e de organização. Esta expressão carismática ajudou a socializar a palavra na Igreja, reservada somente à hierarquia, abrindo espaço para a criatividade ritual e simbólica, antes negada pela rigidez canônica da liturgia oficial. Mas ela padece de clara insuficiência ao não articular os temas da injustiça, dos pobres e da transformação social, como o Evangelho e com a criatividade própria do Espírito. Por isso, uma religião só do Espírito facilmente cai no sentimentalismo, no entusiasmo juvenil e na alienação face à conflitividade da vida e até no fanatismo e na anarquia espiritual. A Cristandade não encontrou até hoje um ponto de equilíbrio quanto a assunção das divinas Pessoas como o verdadeiro Deus da experiência cristã. Distanciou-se de sua identidade originária de um Deus comunhão amor que deveria se expressar na história, por comportamentos e iniciativas que incentivassem o caráter comunitário, a participação igualitária de todos e a compreensão da cristianismo como uma realidade sempre aberta a novas manifestações e encarnações nas mais diferentes culturas, mas não foi o que predominou. Na Igreja Romana católica ocorreu uma inversão hilária: aquilo que na doutrina da Trindade é verdade (a ausência de hierarquia, pois todas as Divinas Pessoas são igualmente eternas, infinitas e onipotentes) se torna heresia na Igreja (não há igualdade entre os cristãos, mas uma hierarquia só de homens, pretensamente querida por Deus e uma diferença essencial entre clérigos e leigos). Do Livro Cristianismo o Mínimo do Mínimo. Abraço. Davi.

 

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