Espiritualidade. Livro O Interesse Humano. Texto de N. Sri Ram (1889-1973). O PONTO DE VISTA DOS OUTROS. Esse tema é
especialmente pertinente às condições existentes em toda parte atualmente. Podemos
ver quanto do problema, entre nação e nação, raça e raça, comunitário, social e
pessoal, deve-se à nossa incapacidade de tratar o ponto de vista dos outros de
forma justa. E, frequentemente, quando nos tornamos perceptivos do problema,
tratamos com pouca cortesia ou o sujeitamos ao ressentimento e ao desdém. Esta
é uma época que se orgulha de direitos e liberdade, mas no exercício da
liberdade, tendemos a estabelecer o direito exclusivo e pessoal. Parece
pensarmos que o homem tem menos direito a seus pontos de vista do que a seus
pertences mais tangíveis. Não compreendemos que ele não pode deixá-los mesmo se
quisesse. Essas observações parecem por demais impetuosas? O espírito a que se
referem é por demais comum. A diferença em sua prevalência é apenas de grau. A
tolerância não é uma virtude difundida, porque é uma virtude da maturidade, e
ainda não deixamos o estágio primitivo muito atrás de nós. A aparência de nossa
civilização moderna mal oculta as paixões e instintos que, em outras épocas,
tinham livre expressão de maneiras diferentes e talvez menos sofisticadas. O
outro homem, cujo ponto de vista estou discutindo, pode ser um homem ou mulher
de outra raça, nacionalidade ou comunidade; pode ser um rival, um empregador ou
empregado, um estranho que por acaso entra num compartimento do trem (metro)
que você ocupa, alguém que pisa no seu pé na rua, o vizinho barulhento; ou pode
até mesmo ser o seu irmão ou amigo. Ele está em toda parte e continua forçando
seu ponto de vista sobre você de todos os lados. A vida em si parece
empenhar-se em fazer com que você a entenda. Sendo assim, é uma prática útil
nos colocarmos em imaginação na posição do outro e ver como nós próprios
sentiríamos em seu lugar. Muitas irritações menores seriam cortadas pela raiz,
e muita divergência seria rápida e pacificamente acertada. Se pudéssemos ser um
pouco gentis quando buscamos ajustar nossas diferenças, ajudaria muito a
lubrificar as engrenagens da vida diária. Devemos lembrar, também, que nosso
próprio ponto de vista não é necessariamente certo. Pode ter raízes no
preconceito. Nossa razão, que estamos prontos a afirmar que é infalível,
normalmente se move sobre a superfície escorregadia de nossos gestos e
aversões, mesmo se evita a ladeira da paixão precipitada. Quando dizemos: Este
é o meu ponto de vista não dissemos a última palavra em sua justificação.
Podemos estar meramente assumindo posição no topo da presunção do qual não
desejamos ser desalojados, porque, talvez, nos permita desfrutar um senso de
superioridade solitária. Nossa inflexibilidade pode de fato não surgir da
presunção, mas pode estar baseada num princípio que buscamos defender; isso não
assegura que veremos as coisas numa perspectiva correta ou em seu aspecto
próprio; vemos os outros através de uma névoa de preconceito, que tem origem em
nossas peculiaridades de temperamento, nossa formação ou circunstâncias. Mesmo
que nosso princípio esteja certo, a aplicação pode estar errada. O modo como
aplicamos o princípio num determinado conjunto de circunstâncias é tanto um teste
de retidão quanto o próprio princípio em abstração. É muito raro encontrar uma
pessoa que tenha uma visão tão clara que veja cada coisa como ela é, em sua
própria objetividade divina. Quando somos feridos, quando sentimos raiva, ou
trabalhamos sob condições de estresse emocional é difícil vermos qualquer outro
ponto de vista diferente do nosso. Mas, quando as condições normais retornam,
geralmente podemos ver que por causa de nossa visão confusa estivemos aquém
daquela pessoa em nosso julgamento final ou em nossa ação. Reciprocamente, se
pudermos treinar a nós mesmos para considerar cada situação, à medida que
surge, do ponto de vista da outra pessoa além do nosso, evitaremos muita emoção
desnecessária e as consequências que surgem do julgamento impulsivo. A regra de
ouro. "Faz aos outros o que gostarias que fizessem a ti", é para você
se pôr no lugar do outro antes de agir. Quando estamos na situação do outro, é
bem provável que vejamos como ele vê, e queiramos o que ele queira. Um ponto de
vista pode ser atraente para nós ou repulsivo; mas se é sincero na pessoa com
quem temos de lidar, vale a pena nossa consideração. Muitas vezes isso nos
torna apreensivos justamente porque é estranho e não estamos acostumados a ele.
Mas se nos aproximarmos mais e se o estudarmos, poderemos encontrar por trás
dele (tanto quanto do nosso) aquele "toque da Natureza que torna todo o
mundo uma família". É tolice implicar com um ponto de vista sem
examiná-lo. Mesmo que ele lance uma sombra sobre nós ou sobre os outros, o único
meio eficaz de dissipá-lo é lançar sobre ele a luz de nossa compreensão. Estar
entrincheirado no próprio ponto de vista é ser um prisioneiro. Estamos nesta
posição principalmente por causa da falta de imaginação, e não por falta de
bondade inata. Ainda somos seres humanos apesar de nossa estupidez, de nossa
paixão e do nosso modo errado de pensar. Existe em cada um de nós uma centelha
de indelével bondade que, apesar de nossa imersão na vida diária, permanece
intocada. A compreensão é algo que pode ser cultivado, e em sua perfeição ela
dá o poder de sintonizar, com a mais perfeita exatidão, com as necessidades e
circunstâncias dos outros. A experiência de cada um de nós deve ter-nos
ensinado que nosso crescimento sempre foi acompanhado pela mudança, que, à
medida que galgávamos o lado da montanha, nossas visões mudavam e se alteravam.
Sendo assim, não há razão para supor que devamos aferrar-nos aos nossos pontos
de vistas atuais com uma lealdade que poderia ser dedicada a uma causa melhor.
Afinal, para a maioria das questões há dois lados ou mais; vivemos num mundo
multidimensional, embora vejamos apenas um pouco de cada vez. Antes que
possamos atingir a plenitude de compreensão, parece-me necessário ter
experimentado a verdade em princípios aparentemente conflitantes. Socialismo e
individualismo, santidade e humanidade, liberdade e disciplina e todos os
opostos desse tipo devem encontrar reconciliação numa verdade que transcende,
mas que expressa todos eles. O ponto de vista da outra pessoa pode desvela-nos
profundezas de conhecimento que, de outro modo, estariam ocultas a nós. É desse
ponto de vista que ela reage a vida, e suas reações podem expressar qualidades
que não possuímos. O ponto de vista de um gênio pode ser o ponto de
concentração de todo um esquema filosófico - o topo, por assim dizer, de um
sistema de pensamento abrangente em seu escopo. A verdade pode ser encontrada
em muitos desses pontos de vista, pois cada um acrescenta algo à totalidade da
verdade, e é suficientemente certo até onde vai. Toda a essência ou semente de
uma filosofia jaz, muitas vezes, não tanto em uma ideia que é concreta e
limitada, mas em um ponto de vista que abrange uma perspectiva de pensamento
amplo. Às vezes, mesmo uma pessoa simplória pode mostrar-nos um valor que em nossa
sofisticação elaborada podemos não ter percebido. Um ponto de vista pode estar
baseado numa atitude ou numa opinião. A atitude importa muito mais do que a
opinião. Eu me arrisco a pensar que a maioria de nossas opiniões importa
comparativamente pouco, porque nelas existe pouco permanência; em qualquer
caso, a verdade tem mais valor do que nossas opiniões. Mas a atitude mental com
a qual vivemos faz toda a diferença para a felicidade da sociedade e de nós
mesmos. Tendo em conta uma atitude de franqueza, podemos ajudar os outros e a nós
mesmos. Essa ajuda demanda compreensão, pois sem compreensão nossos melhores
esforços para ajudar apenas atrapalharão; eles não podem obter êxito a não ser
que estejamos preparados para considerar favoravelmente o ponto de vista da outra
pessoa. A compreensão da mente dos outros não precisa tornar-nos menos capazes
de tomar nossas próprias decisões. Nem uma admissão da verdade do ponto de
vista de outra pessoa enfraquece a validade do nosso. Tolerância jamais deve significar
indiferença ao que é errado, e sim a compreensão de sua causa. O que é preciso
é sentir com a pessoa por trás do ponto de vista; se fizermos isso, poderemos
viver plena e alegremente, permitindo que os outros discordem de nós, não nos
importando pelo fato de serem diferentes. Aliviamos a pressão sobre nós mesmos
quando deixamos os outros viverem. A era atual tem sido diferentemente descrita
segundo o ponto de vista do qual seu desenvolvimento tem sido visto.
Politicamente se acredita que sua característica mais marcante é a evolução da
democracia. Embora este princípio tenha está sujeito, em certos lugares, a
graves desafios, ele possui um apelo suficientemente amplo para colorir a
perspectiva das pessoas de todas as partes do mundo. Mas a democracia, para que
seja bem-sucedida, precisa enfrentar certas condições essenciais. Uma delas é
que, a cada indivíduo que cumpra seus deveres de cidadania, deve ser garantida
a mais plena liberdade compatível com o bem-estar público, viver sua vida
segundo suas próprias ideias e fazer sua própria contribuição ao estado. Ele
deve não apenas ser respeitado pelo que é em si, mas é necessário que lhe sejam
oferecidas oportunidades para desenvolver sua personalidade em todos os
estágios; é preciso haver reconhecimento tanto do valor quanto da necessidade
de seu estilo de vida e ponto de vista. Nossa busca deve ser por uma ordem onde
o ponto de vista de cada pessoa, representando sua experiência, tenha seu
lugar na soma total da vida social e nacional. O ponto de vista de cada pessoa
é amplamente o produto de sua experiência, e a vida é tão rica em experiência
que ninguém obtém exatamente a mesma porção que seu próximo, seja em qualidade
ou quantidade. Se o mundo humano não fosse um mundo de vida, e o problema da
harmonia social fosse um problema mecânico, seria impossível encaixar com
exatidão as diferentes peças do quebra-cabeça. Mas a vida é composta de seres
que reúnem um milhão de células de diferentes tipos em um todo perfeito. A
sociologia pode ser uma ciência tão verdadeira quanto a biologia, se começarmos
com a admissão dos fatos e fundamentá-la sobre princípios naturais. Para
consideração, eu sugiro o axioma de que o sucesso na vida coletiva deve
depender da medida da plenitude da vida individual. Temperamento, profissão,
relacionamentos, circunstâncias têm relação com o ponto de vista adotado por um
homem ou mulher a qualquer tempo. Todas essas coisas condicionam sua
mentalidade. Se tivéssemos o dom de penetrar a mente da outra pessoa e ver como
ela vê, estaríamos perceptivos de muitos aspectos da vida ocultos de nós no
presente, e assim nos elevaríamos àquele pináculo de onde esses aspectos são
percebidos. Infelizmente a maioria de nós se conhece tão pouco, e não
conhecemos sequer nossas limitações nem nossas capacidades. Religião e
nacionalidade são influências especializadas que criam distinção e separação.
Contudo, os resultados dessa especialização são enriquecimento e diversidade.
Deve chegar uma época - na verdade já chegou, com a derrubada das barreiras
materiais - em que haverá a junção dessas diversidades numa unidade. Nos dias
de hoje, quando todas as partes do mundo estão unidas, o ponto de vista do
outro exige mais atenção e respeito do que talvez estivéssemos preparados para
dar nos dias menos prementes do passado. A paz mundial em cada um de seus
aspectos - físico, mental e moral - e nosso próprio progresso dependem de lhes
darmos o lugar que merecem. Livro O Interesse Humano. Abraço. Davi.
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