terça-feira, 16 de maio de 2023

I. DECLÍNIO E REGERNERAÇÃO DAS RELIGIÕES

 

Teosofia. Por Ricardo Lindemann. Livro A Ciência da Astrologia e as Escolas de Mistérios. Capítulo 25. I. DECLÍNIO E REGENERAÇÃO DAS RELIGIÕES. 1. Introdução. Este trabalho visa a investigar, inicialmente, se a Religião, enquanto fenômeno humano verificável, fundamenta-se numa experiência real de percepção ampliada da realidade, ou se, em verdade, é um meio de fuga projetado pela mente em busca de segurança e consolo. Para tanto, logo após ser feita uma breve introdução à temática com caracterização das correntes de pensamento, desenvolver-se-á uma análise de pressupostos e doutrinas comuns das religiões mais conhecidas, com ênfase particular no Cristianismo. O que facilitará a investigação histórica, devido à proximidade cultural e facilidade de obtenção de dados e evidências. A partir dessa análise histórica, tentar-se-á descobrir se há, realmente, evidências capazes de sustentar que alguma das hipóteses acima seja a mais provável. 2 Religião: Realidade ou Fuga? Podemos considerar que, do ponto de vista lógico clássico, há somente duas possibilidades: ou a Religião se refere a um fato ou a uma fantasia. As duas alternativas são mutuamente excludentes, incompatíveis, pois uma é a negação da outra. A primeira, de ênfase espiritualista, afirma que existe uma realidade maior referida nas diversas religiões. A segunda, de ênfase materialista, nega que exista essa realidade maior, afirmando que ela não existe de fato. Mas é uma criação mental, um sonho, uma fantasia, uma projeção psicológica de expectativas, enfim, um meio de fuga da realidade concreta que nos cerca, e que é frequentemente dolorosa. Ninguém nega, evidentemente, o fato sociológico e histórico que é a Religião, que assume proporções universais, pois todas as civilizações tiveram religiões, por mais diversas que fossem. Contudo, existem diversas tentativas de se explicar esse fato, esse fenômeno humano que é a Religião. Mesmo que existam esses diversos pensamentos, eles também podem ser classificados, sinteticamente, em duas correntes ou inclinações básicas, segundo sua ênfase. A primeira, que é a tese das Religiões Comparadas, tem uma ênfase espiritualista. A segunda, que é a tese das Mitologias Comparadas, tem uma ênfase materialista. Essas duas correntes investigaram a história das Religiões, pois elas se assemelham por seus grandes ensinamentos, pela nobreza de caráter dos seus fundadores, pelos símbolos que utilizam etc. Esse núcleo comum, que consideraremos a seguir, evidenciam mesmo uma origem comum. As duas correntes não divergem quanto a esses pontos, mas quanto à natureza dessa origem comum. A Mitologia Comparada afirma que a origem comum das religiões é a ignorância humana. A superstição comum seria a causa original tanto das religiões dos povos selvagens e bárbaros quanto das mais transcendentes e metafisicamente elaboradas religiões do mundo, que seriam apenas uma expressão mais aperfeiçoada daquelas. Segundo esse ponto de vista, as grandes religiões teriam surgido ao longo da história pelo aperfeiçoamento do animismo, do fetichismo, do culto da Natureza, do Sol etc. Os deuses são meras personificações das forças da Natureza, sendo um Krishna, um Buda ou um Cristo meros curandeiros sofisticados pela civilização. Que enganam o povo boquiaberto com exibições fraudulentas e nutrem as fantasias humanas com doutrinas consoladoras, que não passam de atraentes fugas da realidade dolorosa que nos cerca. Tudo se resume a dizer que morrer é o nosso destino, e qualquer sentido que se queira dar à vida é mera fantasia, elaboração mental consoladora. A Religião Comparada afirma, em contrapartida, que todas as religiões têm sua origem no ensinamento de “homens divinos”, de homens que tinham sua percepção aberta para uma realidade maior, transcendente aos cinco sentidos. E que, por meio do êxtase, conheciam a realidade dos mundos invisíveis, das leis condicionantes do destino da alma em vida e após a morte, da essência espiritual de todas as coisas. A origem comum das religiões seria, então, a sabedoria divina, sendo que as religiões selvagens, o animismo, o culto da Natureza etc. Seriam meras degenerescências que resultariam de um processo de declínio, “de uma longa decadência, modalidades desfiguradas de crenças religiosas verdadeiras”, como afirma Annie Wood Besant (1847-1933). Delimitado como está o problema nessa divergência quanto à natureza da origem das religiões, precisamos apenas investigar qual das duas hipóteses está mais bem fundada nos fatos históricos. 3 Pressupostos da Religião. Antes de iniciarmos diretamente uma investigação na história das religiões, parece importante que tenhamos em mente, com clareza, o que a própria Religião pressupõe. A palavra Religião, derivada do latim religio, que por sua vez é derivada do verbo ligare, significa, literalmente, reunião, religação. Portanto, a palavra Religião já pressupõe pelo menos duas coisas ou seres de certa forma separados, que são então reunidos, religados. É interessante citar que a palavra Yoga é derivada do radical sânscrito yuj, que significa unir, jungir, ligar por carga ou jugo (derivado do latim jugu, que lembra a raiz sânscrita yuj, da qual é provavelmente derivada). Assim, Yoga significa união, sendo definida como união ou reunião do Jivatma com o Paramatma, ou seja, da alma individual com a alma universal. Por esses exemplos, poderíamos talvez concluir que a Religião pressupõe uma religação ou reintegração da parte com o todo, quer se denomine a esses entes da alma individual e Deus, eu pessoal e Eu Universal, criatura e Criador etc. Conforme a época, nação, cultura e linguagem em que essas ideias de apresentarem ou nas quais forem revestidas. 3.1 Ensinamentos Comuns das Religiões. Como mencionamos anteriormente, é considerado com fato evidente e indiscutível, nos estudos antropológicos, históricos e psicológicos das religiões em geral, que estas possuem um núcleo ou base comum. Sobre esse tema já foram escritos inúmeros tratados, tanto na linha das Mitologias Comparadas quanto na das Religiões Comparadas. Por esse motivo, não é nossa intenção nos alongarmos sobre esse ponto. Porém, algumas deduções intuitivas poderão se mostrar interessantes. Se entendermos Religião como a reunião da alma individual com a Universal, da parte com o todo, isso pressupõe a existência de uma relação entre ambos, que inicialmente estão separados e posteriormente se reúnem. Ou talvez seja melhor dizer que eram inicialmente unidos, estão temporariamente separados, mas podem voltar a se unir: daí reunião. A lei que rege e harmoniza essa relação das partes com o todo e das partes entre si é conhecida no Oriente como lei do karma, ou lei de ação e reação, ou lei de causa e efeito. Nas escrituras cristãs, ela está muito bem sintetizada pelo apóstolo Paulo em Gálatas 6,7 “Não vos iludais, Deus não se deixa escarnecer: porque tudo o que o homem semear, isso também ele colherá”. Já temos, assim, três elementos básicos oriundos da nossa reflexão sobre a palavra Religião, a saber: 1º A alma individual, considerada imortal nas diversas religiões, porque não seria afetada pela transitoriedade da matéria. 2º A alma Universal, totalidade ou Deus, da qual a individual é uma parte e, por isso, persiste a possibilidade da reunião ou religião. 3º A lei que harmoniza essa relação da parte com o todo. Talvez encontremos esses três elementos básicos, mais poeticamente elaborados, no livro Luz no Caminho de Mabel Collins (1851-1927). Há três verdades que são absolutas e não podem ficar perdidas, mas podem permanecer em silêncio por falta de quem as proclame. I. A alma do homem é imortal e o seu futuro é o de algo cujo crescimento e esplendor não tem limites. II. O princípio que dá vida mora em nós e fora de nós. É imortal e eternamente benéfico, não é ouvido, nem visto, nem apreendido pelo olfato. Mas pode ser percebido pelo homem desejoso de o perceber. III. Cada homem é o seu absoluto legislador, o dispensador da glória ou das trevas para si próprio. É o decretador de sua vida, recompensa e punição. Estas verdades, grandes como a própria vida, são simples como a mente do mais simples dos homens. Alimentai com elas os famintos. O Cristianismo, particularmente, antropomorfizou muito a alma Universal ou “princípio que dá a vida”, mas se nos lembrarmos das palavras de Cristo em João 10,34: “Não está escrito na vossa escritura: Eu disse: Vós sois deuses?”. E que Cristo, como Segunda Pessoa da Trindade, é universal porque Ele é “o primogênito de toda criação, porque por Ele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na Terra, visíveis e invisíveis ...” Então nos lembraremos que Cristo está em nós, é o nosso íntimo que nos julga. Dessa forma, fica fácil compreender é a voz da nossa consciência que nos pune, é o próprio Cristo interno cujo “futuro é o de algo cujo crescimento e esplendor não têm limites”. Pois disse Paulo em Efésios 4,13 “Até que todos cheguemos ... a homem perfeito, à medida completa da estatura de Cristo”. Seja como for, com mais ênfase num ponto ou outro, podemos sempre encontrar, nos ensinamentos das diversas religiões, menção à alma imortal do homem, a uma alma Universal ou princípio que dá vida e a uma lei que rege a relação entre ambas, ou entre a parte e o todo, como se preferir. A ênfase maior ou menor em cada ponto parece estar ligada a condicionantes de passado cultural do povo em que aquela religião particular surgiu. 3.2 A Religião e o Êxtase. Um dos pontos mais misteriosos da Religião, se a entendermos como uma reunião ou reintegração da parte com o todo é o de que a parte já está dentro do todo! Pois, se tudo que existe é o todo, as partes que existirem só poderão existir dentro dele. Porém, então não poderia haver real separação entre a parte e o todo! Como poderemos, se isso for verdadeiro, entender uma reunião, uma Religião? Como pretenderemos reunir o que não está separado? Devemos, então, concluir que há uma contradição inerente na Religião, e, portanto, que ela está edificada sobre a pedra angular da ignorância humana, da superstição, como sustenta a Mitologia Comparada? Não necessariamente. Tal questionamento sobre a reunião da parte com o todo nos levaria a uma contradição, caso nos esquecêssemos de que o nosso consciente não está usualmente integrado harmonicamente com o nosso íntimo, que é a voz da consciência, o todo em nós. Aliás, os seres humanos estão frequentemente em conflito com o seu íntimo, não é verdade? Aí está justamente o núcleo dos conflitos psicológicos ... Porém, se assim entendermos a relação do homem com a divindade, o Cristo interno ou “em vós”, então a Religião passaria a ser, estritamente falando, uma religação consciente com Deus! E isso é exatamente o que os místicos têm chamado de êxtase, samadhi, satori etc. Seria uma ampliação da percepção direta desse “princípio que dá a vida” que “mora em nós e fora de nós”. Que não pode ser percebido pelos cinco sentidos. Mas que pode ser percebi pelo êxtase. A própria razão de ser da Religião seria a busca da superação desse estado de conflito, de vazio, que tanto pesa em nossa alma, pelo descobrimento da plenitude da totalidade em nosso interior, através do êxtase, da iluminação etc. Nesse sentido estrito, a Religião, ou reunião, é esse estado ampliado da consciência em que o eu pessoal se funde com o Eu Universal, mesmo que, em muitos casos, ele dure pouco tempo. Plotino (204-270), o neoplatônico alexandrino do século III, refere-se assim ao êxtase. “Quando um homem é arrebatado pela Divindade, ele perde a consciência de si mesmo. Quando contempla o divino espetáculo que possui dentro de si,, contempla a si mesmo e vê sua imagem embelezada. Por bela que seja, ele deve deixá-la de lado e concentrar-se na Unidade, sem fazer nela nenhuma divisão. Então ele se torna simultaneamente um e tudo com essa Divindade, a qual silenciosamente lhe concede a Sua presença. Então o homem é unido à Divindade, na medida de seu desejo e de sua capacidade. Se, conservando-se puro, ele voltar à dualidade, permanecerá tão perto quanto possível da Divindade e gozará da divina Presença tão logo se volte para Ela”. Sem o êxtase não há Religião, embora possa haver cultos, ritos, dogmas, escrituras sagradas, instituições religiosas etc. Como veremos, sem o êxtase as religiões entram em declínio. 4 O Fenômeno do Declínio. Como disse Van der Leew (1890-1950) “Quando cessa a experiência da verdade viva no interior da consciência do homem, ele é forçado a colocar sua fé na doutrina exterior, substituindo assim a Realidade íntima. A verdade não pode ser exteriorizada, não sendo algo de objetivo, não pode ser contida, mesmo parcialmente, numa declaração ou num livro, por sublime que seja. A verdade é a relação viva das coisas como são e só pode ser compreendida a partir do interior. Desde o momento em que o homem, despojado da inspiração que é a voz interior da verdade, celebra, e seu lugar, o ídolo falso que é o dogma, a luta entre o misticismo ou inspiração e a ortodoxia ou dogmatismo está iniciada”. O apostolo Paulo, que era um homem sábio, conhecia bem essas tendências dogmatizantes da mente humana, pois as sintetizou em uma única frase lapidar em II Coríntios 3,6 “A letra mata, mas o espírito vivifica”, como dizia Jiddu Krishnamurti (1895-1986) “A palavra não é a coisa. As ideias não são a verdade. A verdade é algo que tem de ser experimentado diretamente, de momento a momento”. Infelizmente, a verdade mística só pode ser alcançada pelo êxtase, e, como vimos ao citar Plotino existem condições de capacidade e pureza para que este seja alcançado. Só um homem puro e com enorme capacidade de concentração meditativa pode alcançar o estado máximo de percepção interior que é o êxtase. Só então o homem “é arrebatado pela Divindade”, perdendo “a consciência de si mesmo”, como Plotino referiu. Quando Nenhum adepto de uma certa religião consegue alcançar esse estado de percepção direta, os religiosos ficam restritos à letra e às descrições feitas pelo seu fundador e seus discípulos mais capazes. Ou seja, como disse o apóstolo, essa religião declinará ou morrendo pelo apego à letra, e pela falta de vida que só o êxtase espiritual pode produzir ou desvelar. Começam então as perseguições, o medo das heresias, a fragmentação da religião em uma infinidade de seitas com diferentes linhas de interpretação, o fanatismo etc. E esse é, infelizmente, o quadro de muitas religiões do mundo, fato histórico e atual. Poderíamos citar inúmeros exemplos, entre os quais está a guerra entre o Irã e o Iraque, decorrente da discordância entre os xiitas e os sunitas, que são seguidores de diferentes seitas do Islamismo etc. Preferiremos, contudo, citar um exemplo mais próximo de nossa cultura: o Cristianismo. 4.1. O Caso do Cristianismo. Ao invés de investigarmos os crimes que a Santa Inquisição fez em nome de Deus, ou das Cruzadas, que mataram um número ainda maior de pessoas também em nome do Altíssimo. Ou das lutas atuais na Irlanda entre protestantes e católicos, que seriam fonte de terríveis evidências do declínio do Cristianismo, e que devem fazer com que seu Sábio Fundador se compadeça dos seus ignorantes seguidores. Tentaremos demonstrar com uns poucos indícios, aos quais temos acesso, a grandeza espiritual de algumas linhas do Cristianismo primitivo. Há inúmeras passagens nos evangelhos em que Cristo faz referência aos Mistérios que ele revela somente aos seus discípulos escolhidos. Por exemplo: “E quando se achou só, os que estavam junto dele com os doze interrogaram-no acerca da parábola. E ele disse-lhes: a vós vos é dado conhecer os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas essas coisas se dizem por parábolas: para que, vendo vejam, e não percebam, e ouvindo, ouçam e não entendam ... Marcos 4,10-12”. “E com muitas parábolas tais lhes dirigia a palavra, segundo estavam aptos a ouvi-la. E sem parábolas nunca lhes falava; mas quando estavam a sós, ele expunha todas as coisas aos seus discípulos. Marcos 4,33-34”. Comparemos essas passagens com esta de Clemente de Alexandria (150-213), na Stromata: “A pureza não é mais que um estado passivo útil, principalmente com condição para adquirir o conhecimento. Aquele que foi purificado no batismo e logo iniciado nos Mistérios Menores adquiriu, por assim dizer, o hábito da reflexão e o domínio de si mesmo. E se encontra maduro para os Mistérios Maiores, para a Epopeia ou Gnosis, ou o conhecimento científico de Deus”. Lembrando que Clemente era Padre da Igreja Cristã de Alexandria, poderíamos perguntar quantos padre de hoje admitem que os Mistérios Cristãos tenham ao menos existidos? “Agora, em resposta a tais declarações, afirmamos que não é a mesma coisa convidar à cura os que estão doentes da alma e os que estão com saúde, ao conhecimento e estudo das coisas divinas. Nós, todavia,  mantendo sob nossas vistas ambas estas coisas, primeiro convidamos todos os homens a serem curados. E exortamos os que são pecadores a entregar-se à consideração das doutrinas que ensinam os homens a não pecar. E aos que são destituídos de entendimentos, aos que engendram sabedoria, e aos que são crianças. A elevar-se em pensamentos até a virilidade, e aos que são simplesmente desafortunados à boa fortuna ou – usando um termo mais apropriado – à bem-aventurança. E quando os que se voltaram para a virtude tiverem feito progresso, mostrando que foram purificados pelo Verbo e levando, tanto quanto puderem, uma vida melhor. E não antes, os convidaremos a participar de nossos Mistérios”. “Pois falamos sabiamente entre os que são perfeitos”. E diz mais: “Não à participação nos Mistérios, pois, e à comunhão na sabedoria oculta num Mistério, que Deus ordenou perante o mundo para a glória de seus santos, não a isso convidamos o homem mau e o ladrão e o arrombador e o envenenador e o que comete sacrilégio e o saqueador de mortos e todos aqueles que Celso possa enumerar, em seu estilo exagerado, mas a esses homens convidamos a que se curem”. Mas, por outro lado: “ ... quem quer que seja puro não só de toda mácula, mas do que é tido como transgressões menores, que seja ousadamente iniciado nos Mistérios de Jesus, os quais com propriedade, são dados a conhecer apenas aos santos e puros. Livro A Ciência da Astrologia e as Escolas de Mistérios. Abraço. Davi.

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