Budismo. www.budismohoje.org.br. Texto de Monge
Chodo. Monge Zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen. SANGHA: LUGAR DE
HARMONIA E TRANSFORMAÇÃO. A espécie humana tem apenas algumas centenas de
milhares de anos e desde muito cedo tivemos que nos associar a outros seres
humanos, mas a vida em grupo não é somente uma experiência humana, muitos
animais vivem em bandos e algumas destas sociedades, como a dos insetos, são
muito complexas. Para esses animais, assim como para nós humanos, se associar a
outros grupos é uma maneira eficaz de manter a sobrevivência. Porém, com o
processo de urbanização que passa a ocorrer a partir do século XVIII e a
consequente sensação de segurança que o ambiente controlado nos sugere, a
pergunta que fica é se isso ainda é necessário? Ainda temos a necessidade de
pertencer a um grupo? Para muitos especialistas em comportamento a resposta é:
sim; sobretudo nesse momento que vivemos. Muitas práticas religiosas procuraram
– e ainda o fazem – reunir seus membros em comunidades. Segundo Zygmunt Bauman
(1925-2017) a palavra comunidade nos remete a algo bom, uma sensação de
aconchego, um local onde nos sentimos seguros, um lugar onde podemos descansar
e refletir. Para Bauman a comunidade é um campo de possibilidade para a
afirmação de uma identidade e da autoafirmação do indivíduo em conviver entre
seus iguais. Quando uma pessoa resolve tornar-se “oficialmente” um budista, uma
das etapas da cerimônia é o refúgio nas três Joias, o Buda, o Dharma e a Sangha. Sangha é a comunidade. Tomar refúgio na Sangha significa unir-se aos companheiros de prática,
compartilhando alegrias e tristezas, se fortalecendo e tornando-se uno no
caminho. A própria palavra companheiro tem um forte significado de união, na
Idade Média a tripulação dos barcos se chamava “companha” que deriva do Latim
“Cum” que significa “com” + “Panis” que é “pão”. Literalmente companheiro é
alguém com quem se reparte o pão, alguém com quem se anda junto. Este conceito
de companheirismo está quase em oposição ao momento em que vivemos, a chamada pós-modernidade.
Passados alguns meses após o início da pandemia, alguns psicólogos e sociólogos
diziam que as pessoas haviam de tornado mais empáticas e compassivas com o
sofrimento do outro. Que a morte, sempre nossa companheira mais íntima, havia
exposto nossa fragilidade e que isso nos havia tornado mais humanos e próximos
uns dos outros. Porém, bastou um único dia de paralização dos caminhoneiros, para
que as pessoas se esquecessem dos outros e corressem para os postos para encher
os tanques de seus carros e um movimento, embora pequeno, ocorreu também em
relação aos mercados, assim como no início da pandemia. Em tempos de relações
fluídas a ideia de não engajamento, ou de um comprometimento que permita uma
mudança rápida, caso a relação não seja mais vantajosa, é cada vez mais
frequente. Como consequência vamos experienciando momentos de fragmentação que
nos dão constantemente a sensação de fracasso. A partir dos anos 60 e 70
aconteceram alguns movimentos que enfraqueceram as instituições que foram
importantes para a construção de nossa identidade. As crenças religiosas, a
família e a escola. Com o aumento da valorização da competitividade o indivíduo
perdeu suas referências externas e passou a conviver numa sociedade onde tudo é
permitido. Esse processo de individualização traz responsabilidade total sobre
nossos atos, mas segundo Sartre, vem acompanhado de angústia e desconforto. A
mudança da sociedade de produção para a sociedade do consumo mudou o foco das
pessoas para o imediatismo, hedonismo e a individualização, e isso passou a
relacionar o consumo com felicidade. Para o buscador espiritual que também faz
parte desse contexto social líquido onde não existem certezas e a informação
muda na velocidade de um clique, encontrar um lugar que o sustente em sua
investigação é crucial. A Sangha Budista é hoje muito diferente da Sangha
Monástica dos tempos de Buda e é exatamente essa diferença que pode nos
propiciar uma prática mais forte. No Zen a Sangha é formada por
praticantes monges, monjas, leigas e leigos, e isso é bastante acolhedor para
aqueles que desejam conhecer o Dharma de
Buda sem se comprometer com a vida monástica, pois hoje os leigos não apenas
sustentam a Sangha, eles participam de todas as atividades dos monges como zazen, samu e
cerimônias. Muito além dos ensinamentos sobre o Buda e o Dharma, a Sangha promove o encontro com outros praticantes
que estejam no mesmo caminho. É muito comum escutarmos relatos de pessoas que
dizem não conseguir ter disciplina em sua prática pessoal em casa, sozinhos, e
que quando em comunidades, seus companheiros os apoiam. O símbolo da Sôtô Shu, uma folha de pinheiro, é muito emblemático, pois
o pinheiro que cresce afastado de outros pinheiros invariavelmente cresce
torto, enquanto o que cresce em meio a floresta de pinheiros cresce reto,
apoiando-se uns nos outros. O mestre vietnamita Thich Nhat Hanh (1926-2022) diz
que Sanghakaya, o corpo da Sangha, é nosso próprio corpo e tomar refúgio na Sangha é viver como um tecido no organismo vivo que é
a Sangha. Isso não é um ato de fé, mas
sim a própria prática. Como escrevi no começo, algumas comunidades de insetos
são incrivelmente complexas e uma abelha operária, por exemplo, vive em média
um mês. Porém fora de sua colmeia ela sobrevive por algumas horas, talvez um
dia. Na colmeia ela possui objetivos específicos como colher néctar e nutrir as
larvas. Não sobra tempo para levantes, revoltas ou brigas com outras operarias.
Ela vive pelo bem de sua comunidade e de suas companheiras. A colmeia é o corpo
da abelha, assim como a Sangha é
nosso corpo. O que os insetos nos ensinam é que viver numa dimensão maior que a
pessoal é possível. Nossa geração foi moldada em uma sociedade individualista,
desigual, de educação precária, e de altos índices de violência urbana, fatores
agora somados a incertezas, medo de contaminação, isolamento social e ruptura
das rotinas provocadas pela pandemia nos colocam numa situação de solidão e
medo. Como praticantes budistas e membros de alguma Sangha temos
a oportunidade de realizar o entendimento de que nossos atos, quaisquer que
sejam, influenciam o Todo, não existe no Cosmos um único grão de areia fora do
lugar. Precisamos mudar o conceito errôneo de que minha liberdade termina onde
começa a do outro, minha liberdade termina onde termina a do outro. Nesse
sentido não posso ser livre enquanto houver em qualquer canto da Terra qualquer
tipo de dominação ou controle. Não posso ser feliz se existe no planeta alguém
passando fome. Não sou saudável onde existe qualquer tipo de doença. Como disse
Jidu Krishnamurti “Não é medida de saúde estar bem
ajustado a uma sociedade profundamente doente”.Frequentando uma Sangha, estudando o Dharma de
Buda, nos apoiando, buscando o esclarecimento e a sabedoria podemos transpor os
obstáculos, sejam eles reais ou construídos, que nos obscurecem a visão de uma
existência integral. Devemos nos esforçar não somente para praticar, mas também
para manter a Sangha contribuindo
de alguma maneira para sua preservação e até mesmo expansão, pois muitos podem
ser os beneficiados. Em tempos de pandemia se evidenciou ainda mais o conceito
já antigo de que um Dôjô ou
uma Sangha não são somente os
espaços físicos, mas são formados por pessoas e estas se fazem através de suas
relações. Somos feitos de encontros e vamos nos estruturando na jornada.
Ninguém nasce pronto e vai se gastando, isso acontece com coisas, com objetos.
Pessoas nascem não prontas e vão se construindo. Portanto, não sou minha versão
mais velha, isso era quando tinha 15 ou 16 anos. Sou uma versão mais nova de
mim mesmo, renovada pelas experiências e trocas com cada cenário que encontrei
no caminho, e parte importante desse passeio foi vivido na Sangha. Pertencer a uma Sangha nos
faz membros de uma grande família, faz de todos os praticantes nossos irmãos e
irmãs, e para que a Sangha seja um local de transformação se faz necessário que
na Comunidade impere o espírito de harmonia, compaixão e equanimidade. Esse
deve ser nosso maior propósito como praticantes Zen Budistas. Texto de Monge
Chudô, Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen. www.budismohoje.org.br. Abraço. Davi
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