terça-feira, 5 de julho de 2022

A ESTRUTURA DO MUNDO I

 

Religião Afro-brasileira. O Candomblé da Bahia – Rito Nago. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo III. A ESTRUTURA DO MUNDO I. Se existem sacerdotes diferentes desempenhando funções que não coincidem, embora complementares, e todas inteiramente necessárias, é forçosamente porque o mundo se divide em certo número de compartimentos, cada espécie de sacerdote presidindo a um ou outro desses domínios. A conclusão de nosso capítulo precedente era de que o social nunca era senão o reflexo do eterno. A sociedade sacerdotal não faz exceção à regra. Tudo isto nos dita, então, o método a seguir. Para compreender a concepção do mundo, formulada pelos descendentes de africanos na Bahia, é preciso partir do estudo do sacerdócio. Infelizmente como notamos em nosso primeiro capítulo, os diferentes autores só se têm interessado pela hierarquia que vai do babalorixá, ou da ialorixá, até às yauô, aos ogan e às ekedy, no que concerne ao sacerdócio do candomblé. Alude-se ainda a outra espécie de sacerdotes, os babalaô, mas sem insistir no papel que desempenham, na sua importância, no lugar que ocupam num conjunto estrutural particularmente coerente. Não há dúvida de que este modo de ver corresponde a fatos históricos seguros: os babalaô, que na África ocupam o primeiro lugar na classificação sacerdotal, diante da opinião pública perderam este lugar preponderante. O brilho das grandes festas anuais, a dramaturgia das possessões extáticas, a beleza dos ritmos dos tambores cortando as noites com suas músicas "bárbaras" chamam muito mais a atenção dos indivíduos do que os gestos, por assim dizer clandestinos, do babalaô trabalhando em salas fechadas, sem acompanhamento de instrumentos de música, de cânticos ou de danças, rodeados somente por algumas pessoas. Um Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1934) pode, em certo momento, desempenhar papel de prestígio devido à sua viagem à África, devido à sua ciência e cultura, tanto profana quanto africana; mas depois da morte dele, os babalaô parecem desaparecer do cenário. De fato, houve verdadeira guerra entre os babalorixá e os babalô, lutando para saber quem atingiria o mais alto status social, e é evidente que o conflito se liquidou historicamente com a vitória dos primeiros. Mas, como sempre, a estrutura é mais forte do que a história. Se existiam babalaô, era porque este grupo sacerdotal correspondia a uma função determinada, e tal função ainda continua a ser obrigatoriamente desempenhada, aconteça o que acontecer. Como veremos, o que se passou na realidade, e por razões que teremos de perscrutar, não foi tanto o desaparecimento de um grupo de sacerdotes e sim o fato de uma forma de adivinhação ter sido substituída por outra. Ou tender a ser substituída. O búzio venceu o colar de Ifa, salvo nova ofensiva e regresso sempre possíveis. Ao contrário do que se dizia, não foi o babalorixá que venceu o babalaô. Quando iniciamos nossos estudos sobre o mundo dos candomblés, orientamos logo de saída a pesquisa para o lado dos babalaô, pois tinham sido negligenciados pelos etnógrafos que nos tinham precedido. A princípio, foi simples curiosidade de africanista que não quer refazer, o que já foi feito, e bem feito, antes dele, mas que deseja desbravar terrenos virgens. Mas a. colheita de dados ia transformar a própria imagem que formávamos do mundo dos candomblés. Em primeiro lugar, notamos que a luta entre babalorixá e babalaô ainda não estava terminada; os babalaô, pelo contrário, tinham o sentimento de sua superioridade: "O babalorixá não se ocupa senão de um único candomblé, o babalorixá tem a seu cargo vários candomblés, e em todos eles nada pode ser feito sem que o babalaô tenha sido consultado". O mesmo informante me dizia também: "Formamos uma maçonaria, há trinta e três graus de babalaô, de um a trinta e três; sim, digo-lhe que nossa religião é realmente uma maçonaria". Nada afirmo sobre este número 33, que nunca pude verificar. Mas o que descobri mais tarde e que este babalaô era na realidade um colhedor de ervas. Por outro lado, os artigos de Protásio Frikel (912-1974) ligavam o culto dos mortos a uma das funções dos babalaô. Não há dúvida de que é preciso não confiar muito, nem nos informantes de Frikel, nem nas interpretações a que ele chega, baseado em falsas informações. Mas a respeito tivemos pelo menos confirmação indireta de tal ligação em velhos artigos de jornal, que contavam uma busca de polícia na casa dos mortos da ilha de Itaparica e a prisão de seu proprietário, chamado Alaba. Ora, esta designação é dada na África ao primeiro babalaô de Ife e "quando Alaba deixou esta vida, foi substituído. Todos os sucessores tiveram o título de Alaba". Não tínhamos, porém, senão um ponto de partida. À medida que a pesquisa prosseguia, descobríamos diversos Alaba, um como divindade (citado por João do Rio); outro como o segundo filho, depois do nascimento dos Gêmeos (citado por E. Carneiro) e é passível, por conseguinte, que os termos variem de acordo com a acentuação que tiverem. Por isso não podíamos confundir numa única "maçonaria" todos os sacerdotes existentes fora do candomblé. Pierre Verger (1902-1996) nos escreveu a esse respeito: "Existe Alagba, que significa um velho, termo de respeito muitas vezes dado ao Babalawo". Desse modo, prosseguindo nas pesquisas, acabamos achando que a função tríplice: adivinhação, colheita de ervas, culto dos antepassados, acarretava não apenas um, mas três sacerdócios, que se acrescentam ao sacerdócio do babalorixá. Falando do ritual de iniciação, dizia efetivamente um de nossos informantes: "Antes de começar a iniciação, é preciso consultar Ifa para saber qual o santo a que se pertence, e esta é a função do babalaô. Então a filha de santo entra no candomblé e é o babalorixá que a "faz". Mas, para fazê-la, precisa lavar a cabeça com as folhas da divindade, e é o babalosaim o encarregado da colheita, sendo também necessária a permissão dos antepassados, que é pedida pelo babaogê". E ajuntava mais: "O babalorixá necessita ao babalaô, do babalosaim e do babaogê; nada pode fazer sem eles. O babalorixá não é senão o chefe de um terreiro e de um grupo de filhas de santo". Tais palavras confirmavam as primeiras informações recolhidas. Elas traçavam o esquema sacerdotal dos africanos da Bahia, que ultrapassa os limites dos terreiros enquanto santuários autônomos. No entanto, nada nos dizem sobre a questão de constituírem as três espécies de sacerdotes, os que se ocupam da adivinhação, das folhas e dos Eguns, uma só e mesma sociedade, uma "maçonaria" hierarquizada, composta de estratos de funções superpostas. Teria o babalosaim que conhecemos (e que já morreu) sido levado a se inserir na hierarquia dos babalaô impelido pelo desejo de ficar acima dos babalorixá, procurando assim, na luta dos sacerdotes pelo status social mais alto, se apoiar no conjunto de todos os sacerdócios existentes fora dos terreiros, seguindo o ditame de que a união faz a força? Ou sua afirmação corresponderia a uma realidade sociológica? Efetivamente, os babalaô da África têm a seu lado assistentes encarregados da colheita das "folhas" indispensáveis aos sacrifícios de Fa e que entram, por isso, para o seu grupo sacerdotal. Não estamos atualmente em estado de responder a esta questão. Mas, formem ou não os outros sacerdotes existentes, além dos babalorixá, uma única "maçonaria", não deixa de ser verdade que na Bahia, do ponto de vista funcional, há quatro espécies de sacerdócios: os babalorixá (ou ialorixá) que presidem ao culto dos Orixá; os babalaô propriamente ditos, que presidem ao culto de Ifa; os babalosaim que presidem ao culto de Osaim, a "dona" das folhas; os babaogê que presidem ao culto dos Eguns. Tal sacerdócio quádruplo corresponde a uma estrutura quádrupla do mundo, deuses, homens, natureza, mortos. O objeto deste capítulo é analisar a estrutura em questão, partindo de sua imagem simbólica, isto é, dos sacerdotes que presidem a cada uma destas quatro secções do cosmos. 1 - OS BABALAÔ. Podem os Orixá de duas maneiras tomar conhecida dos homens sua vontade, ou pela possessão dos fiéis - e então lhes revelam o futuro no decorrer de seus transes - ou por meio de nozes, de búzios ou de outros processos de adivinhação. Poderíamos chamar estas duas maneiras de adivinhação subjetiva e adivinhação objetiva. A primeira não é possível senão através da celebração de um ritual especial que tem lugar durante o período de iniciação das yauô, ou logo em seguida à sua conclusão, e que tem o nome de "ritual de dar a palavra". Infelizmente, não temos nenhuma indicação sobre o modo pelo qual o dom de profecia em estado de transe é dado aos "cavalos de santo". Poderíamos citar muitas historietas em que tal dom se manifesta: ialorixá prevenida da perseguição da polícia e a quem se recomenda que esconda os objetos do culto; babalorixá que adivinha que a polícia vai entrar em seu terreiro e que recebe conselhos sobre o que deverá fazer então; ialorixá que é posta a par de um futuro movimento revolucionário, que se desencadeará na região, o que lhe permite guardar provisões para não sofrer fome em tal ocasião (...), etc. Esta adivinhação subjetiva concerne, bem entendido, aos membros do candomblé e nada tem que ver com os babalaô, os quais, ao contrário dos babalorixá e das ialorixá, não podem jamais "cair no santo", isto é, cair em estado de transe. Mas os Orixá só aparecem pessoalmente em casos muito graves. A cada instante, no entanto, é necessário saber o que desejam. E não se pode consultar constantemente o babalaô, principalmente quando se tem urgência de uma resposta. Existe, pois, um processo de adivinhação no interior dos candomblé, e nas páginas precedentes já vimos sua utilização pelo babalorixá ou um de seus assistentes, por exemplo no obori: é o processo que utiliza as nozes de kola ( obi, oubi ou orôbo), divididas em quatro pedaços. Depois de consagrada a sala e realizadas orações, jogam-se os quatro pedaços no chão. Se os quatro pedaços caem com a parte interna dirigida para cima, os deuses respondem “sim" à pergunta que lhes foi feita (alafia); se não há senão três fragmentos com a parte interna dirigida para cima, a resposta é "não" ( Etawa); se dois pedaços têm as partes internas voltadas para cima e os dois outros não, a resposta é favorável (ajiala Ketu). Se um só fragmento tem a parte interna voltada para cima, a resposta é desfavorável (Okanran). Finalmente, se todos os pedaços têm as partes internas voltadas para baixo, a resposta é desastrosa (Oyaku). Em caso de resposta negativa, repete-se o exercício três vezes. Pode acontecer que, com a promessa de sacrifício apropriado, o deus se acalme e acabe por aceitar o que primeiramente tinha recusado. Esta técnica de tirar a sorte é peculiar, pois, aos membros do candomblé; não interessa ao babalaô; mas também não pode dar grande quantidade de indicações. Os Orixá respondem somente por um "sim" ou "não", sem acrescentar nenhuma outra "palavra". O babalaô que no Brasil é também chamado às vezes "vidente" (Oluô) mas erradamente, pois Oluô é um título hierárquico de certos babalô e não uma designação geral, dispõe, entretanto, de dois processos que lhe permitem conhecer grande número de "palavras": o colar de Ifa ou kpelê (Opelê) e os búzios de Exu  ou Edulogun (edilogun).Como sacerdote Ifá, o babalaô é o único que tem o direito de tocar no opelê ou nos cocos de dendê. O mesmo não se dá com o edilogum. Com efeito, um mito recolhido na Bahia explica como Elegba, que é outro nome de Exú, deu às filhas de Oxun a possibilidade de, além do babalaô, também tirarem a sorte com os búzios. Ifa era um pobre pescador que vivia miseravelmente. Fez um dia contrato com Elegba, comprometendo-se a lhe servir de escravo devotado durante 16 anos. Elegba enviou-o à floresta buscar coquinhos de dendê e ensinou-o a prepará-los para a adivinhação. Mas chegava tanta gente para consultá-lo, que lfa teve necessidade de uma mulher que se ocupasse de sua casa; tomou uma apetebi, que não era outra senão Oxun. As pessoas que não conseguiam chegar a ver o próprio Ifa, pediam a Oxun que fizesse o favor de tirar a sorte para elas. Então Oxun se queixou ao marido de que não conhecia a arte de ler o futuro e, depois de muita insistência, Ifa tomou coquinhos, preparou-os e pediu a Elegba que respondesse por intermédio deles às perguntas feitas por Oxun. Elegba aceitou de má vontade; e se hoje realmente responde às questões das apetebi, em represália persegue os filhos de Oxun com mais furor ainda do que os filhos dos outros Orixá. Cada babalaô tem, então, perto de si uma mulher que é filha de Oxun, mas não de qualquer Oxun, pois cada divindade é múltipla; é preciso que seja da mais velha de todas as Oxun, Yaba Omi, só está é, que pode ser a apetebi do babalaô. Mas não nos enganemos. Trata-se de uma sacerdotisa, de uma espécie de babalaô feminino e não da mulher legítima do babalaô. Dizia-se mesmo antigamente que ela estava votada à castidade. Mas é evidente que a poligamia, que os negros conservaram no Brasil reinterpretando-a, naturalmente, em termos ocidentais de mulher legítima e de uma ou várias concubinas, pode tornar a apetebi uma das mulheres do adivinho. Certas apetebi e os babalaô de nível inferior utilizam somente quatro búzios, os quais, como os obi, podem responder apenas sim ou não. As apetebi e os babalaô de grau superior utilizam de 16 búzios. Finalmente, certos babalaôs têm um jogo de 32 búzios. Todavia, as apetebi não têm o direito de ultrapassar as 16 "letras", como se diz muitas vezes no meio africano. Embora existindo búzios nas praias do Brasil, não são empregados na adivinhação. Esta só pode ser praticada com caramujos vindos da África e que no mercado são vendidos a alto preço. Cada búzio tem uma das faces quebrada, de maneira a apresentar um lado aberto e outro fechado. O adivinho sacode os entre as duas mãos reunidas em concha e lança-os; segundo a maneira pela qual caem, lê-se a "palavra" formada. Página 143. Livro O Candomblé da Bahia. Abraço. Davi.

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