Religião
Afro-brasileira. O Candomblé da Bahia – Rito Nago. Tradução de Maria Isaura
Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo III. A ESTRUTURA DO MUNDO I. Se
existem sacerdotes diferentes desempenhando funções que não coincidem, embora
complementares, e todas inteiramente necessárias, é forçosamente porque o mundo
se divide em certo número de compartimentos, cada espécie de sacerdote
presidindo a um ou outro desses domínios. A conclusão de nosso capítulo
precedente era de que o social nunca era senão o reflexo do eterno. A
sociedade sacerdotal não faz exceção à regra. Tudo isto nos dita, então, o
método a seguir. Para compreender a concepção do mundo, formulada pelos
descendentes de africanos na Bahia, é preciso partir do estudo do sacerdócio.
Infelizmente como notamos em nosso primeiro capítulo, os diferentes autores só
se têm interessado pela hierarquia que vai do babalorixá, ou da ialorixá, até
às yauô, aos ogan e às ekedy, no que concerne ao sacerdócio do candomblé.
Alude-se ainda a outra espécie de sacerdotes, os babalaô, mas sem insistir no
papel que desempenham, na sua importância, no lugar que ocupam num conjunto
estrutural particularmente coerente. Não há dúvida de que este modo de ver
corresponde a fatos históricos seguros: os babalaô, que na África ocupam o
primeiro lugar na classificação sacerdotal, diante da opinião pública perderam
este lugar preponderante. O brilho das grandes festas anuais, a dramaturgia das
possessões extáticas, a beleza dos ritmos dos tambores cortando as noites com
suas músicas "bárbaras" chamam muito mais a atenção dos indivíduos do
que os gestos, por assim dizer clandestinos, do babalaô trabalhando em salas
fechadas, sem acompanhamento de instrumentos de música, de cânticos ou de
danças, rodeados somente por algumas pessoas. Um Martiniano Eliseu do Bonfim
(1859-1934) pode, em certo momento, desempenhar papel de prestígio devido à sua
viagem à África, devido à sua ciência e cultura, tanto profana quanto africana;
mas depois da morte dele, os babalaô parecem desaparecer do cenário. De fato,
houve verdadeira guerra entre os babalorixá e os babalô, lutando para saber
quem atingiria o mais alto status social, e é evidente que o conflito se
liquidou historicamente com a vitória dos primeiros. Mas, como sempre, a
estrutura é mais forte do que a história. Se existiam babalaô, era porque este
grupo sacerdotal correspondia a uma função determinada, e tal função ainda
continua a ser obrigatoriamente desempenhada, aconteça o que acontecer. Como
veremos, o que se passou na realidade, e por razões que teremos de perscrutar,
não foi tanto o desaparecimento de um grupo de sacerdotes e sim o fato de uma
forma de adivinhação ter sido substituída por outra. Ou tender a ser
substituída. O búzio venceu o colar de Ifa, salvo nova ofensiva e regresso
sempre possíveis. Ao contrário do que se dizia, não foi o babalorixá que venceu
o babalaô. Quando iniciamos nossos estudos sobre o mundo dos candomblés,
orientamos logo de saída a pesquisa para o lado dos babalaô, pois tinham sido
negligenciados pelos etnógrafos que nos tinham precedido. A princípio, foi
simples curiosidade de africanista que não quer refazer, o que já foi feito, e
bem feito, antes dele, mas que deseja desbravar terrenos virgens. Mas a.
colheita de dados ia transformar a própria imagem que formávamos do mundo dos
candomblés. Em primeiro lugar, notamos que a luta entre babalorixá e babalaô
ainda não estava terminada; os babalaô, pelo contrário, tinham o sentimento de
sua superioridade: "O babalorixá não se ocupa senão de um único candomblé,
o babalorixá tem a seu cargo vários candomblés, e em todos eles nada pode ser
feito sem que o babalaô tenha sido consultado". O mesmo informante me
dizia também: "Formamos uma maçonaria, há trinta e três graus de babalaô,
de um a trinta e três; sim, digo-lhe que nossa religião é realmente uma
maçonaria". Nada afirmo sobre este número 33, que nunca pude verificar.
Mas o que descobri mais tarde e que este babalaô era na realidade um colhedor
de ervas. Por outro lado, os artigos de Protásio Frikel (912-1974) ligavam o
culto dos mortos a uma das funções dos babalaô. Não há dúvida de que é preciso
não confiar muito, nem nos informantes de Frikel, nem nas interpretações a que
ele chega, baseado em falsas informações. Mas a respeito tivemos pelo menos
confirmação indireta de tal ligação em velhos artigos de jornal, que contavam
uma busca de polícia na casa dos mortos da ilha de Itaparica e a prisão de seu
proprietário, chamado Alaba. Ora, esta designação é dada na África ao primeiro
babalaô de Ife e "quando Alaba deixou esta vida, foi substituído. Todos os
sucessores tiveram o título de Alaba". Não tínhamos, porém, senão um ponto
de partida. À medida que a pesquisa prosseguia, descobríamos diversos Alaba, um
como divindade (citado por João do Rio); outro como o segundo filho, depois do
nascimento dos Gêmeos (citado por E. Carneiro) e é passível, por conseguinte, que
os termos variem de acordo com a acentuação que tiverem. Por isso não podíamos
confundir numa única "maçonaria" todos os sacerdotes existentes fora
do candomblé. Pierre Verger (1902-1996) nos escreveu a esse respeito:
"Existe Alagba, que significa um velho, termo de respeito muitas vezes
dado ao Babalawo". Desse modo, prosseguindo nas pesquisas, acabamos
achando que a função tríplice: adivinhação, colheita de ervas, culto dos
antepassados, acarretava não apenas um, mas três sacerdócios, que se acrescentam
ao sacerdócio do babalorixá. Falando do ritual de iniciação, dizia efetivamente
um de nossos informantes: "Antes de começar a iniciação, é preciso
consultar Ifa para saber qual o santo a que se pertence, e esta é a função do
babalaô. Então a filha de santo entra no candomblé e é o babalorixá que a
"faz". Mas, para fazê-la, precisa lavar a cabeça com as folhas da
divindade, e é o babalosaim o encarregado da colheita, sendo também necessária
a permissão dos antepassados, que é pedida pelo babaogê". E ajuntava mais:
"O babalorixá necessita ao babalaô, do babalosaim e do babaogê; nada pode
fazer sem eles. O babalorixá não é senão o chefe de um terreiro e de um grupo
de filhas de santo". Tais palavras confirmavam as primeiras informações
recolhidas. Elas traçavam o esquema sacerdotal dos africanos da Bahia, que
ultrapassa os limites dos terreiros enquanto santuários autônomos. No entanto,
nada nos dizem sobre a questão de constituírem as três espécies de sacerdotes,
os que se ocupam da adivinhação, das folhas e dos Eguns, uma só e mesma
sociedade, uma "maçonaria" hierarquizada, composta de estratos de
funções superpostas. Teria o babalosaim que conhecemos (e que já morreu) sido
levado a se inserir na hierarquia dos babalaô impelido pelo desejo de ficar acima
dos babalorixá, procurando assim, na luta dos sacerdotes pelo status social
mais alto, se apoiar no conjunto de todos os sacerdócios existentes fora dos
terreiros, seguindo o ditame de que a união faz a força? Ou sua afirmação
corresponderia a uma realidade sociológica? Efetivamente, os babalaô da África
têm a seu lado assistentes encarregados da colheita das "folhas"
indispensáveis aos sacrifícios de Fa e que entram, por isso, para o seu grupo
sacerdotal. Não estamos atualmente em estado de responder a esta questão. Mas,
formem ou não os outros sacerdotes existentes, além dos babalorixá, uma única
"maçonaria", não deixa de ser verdade que na Bahia, do ponto de vista
funcional, há quatro espécies de sacerdócios: os babalorixá (ou ialorixá) que
presidem ao culto dos Orixá; os babalaô propriamente ditos, que presidem ao
culto de Ifa; os babalosaim que presidem ao culto de Osaim, a "dona"
das folhas; os babaogê que presidem ao culto dos Eguns. Tal sacerdócio
quádruplo corresponde a uma estrutura quádrupla do mundo, deuses, homens,
natureza, mortos. O objeto deste capítulo é analisar a estrutura em questão,
partindo de sua imagem simbólica, isto é, dos sacerdotes que presidem a cada
uma destas quatro secções do cosmos. 1 - OS BABALAÔ. Podem os Orixá de duas
maneiras tomar conhecida dos homens sua vontade, ou pela possessão dos fiéis -
e então lhes revelam o futuro no decorrer de seus transes - ou por meio de
nozes, de búzios ou de outros processos de adivinhação. Poderíamos chamar estas
duas maneiras de adivinhação subjetiva e adivinhação objetiva. A primeira não é
possível senão através da celebração de um ritual especial que tem lugar
durante o período de iniciação das yauô, ou logo em seguida à sua conclusão, e
que tem o nome de "ritual de dar a palavra". Infelizmente, não temos
nenhuma indicação sobre o modo pelo qual o dom de profecia em estado de transe
é dado aos "cavalos de santo". Poderíamos citar muitas historietas em
que tal dom se manifesta: ialorixá prevenida da perseguição da polícia e a quem
se recomenda que esconda os objetos do culto; babalorixá que adivinha que a
polícia vai entrar em seu terreiro e que recebe conselhos sobre o que deverá
fazer então; ialorixá que é posta a par de um futuro movimento revolucionário,
que se desencadeará na região, o que lhe permite guardar provisões para não
sofrer fome em tal ocasião (...), etc. Esta adivinhação subjetiva concerne, bem
entendido, aos membros do candomblé e nada tem que ver com os babalaô, os
quais, ao contrário dos babalorixá e das ialorixá, não podem jamais "cair
no santo", isto é, cair em estado de transe. Mas os Orixá só aparecem
pessoalmente em casos muito graves. A cada instante, no entanto, é necessário
saber o que desejam. E não se pode consultar constantemente o babalaô,
principalmente quando se tem urgência de uma resposta. Existe, pois, um
processo de adivinhação no interior dos candomblé, e nas páginas precedentes já
vimos sua utilização pelo babalorixá ou um de seus assistentes, por exemplo no
obori: é o processo que utiliza as nozes de kola ( obi, oubi ou orôbo),
divididas em quatro pedaços. Depois de consagrada a sala e realizadas orações,
jogam-se os quatro pedaços no chão. Se os quatro pedaços caem com a parte
interna dirigida para cima, os deuses respondem “sim" à pergunta que lhes
foi feita (alafia); se não há senão três fragmentos com a parte interna
dirigida para cima, a resposta é "não" ( Etawa); se dois pedaços têm
as partes internas voltadas para cima e os dois outros não, a resposta é
favorável (ajiala Ketu). Se um só fragmento tem a parte interna voltada para
cima, a resposta é desfavorável (Okanran). Finalmente, se todos os pedaços têm
as partes internas voltadas para baixo, a resposta é desastrosa (Oyaku). Em
caso de resposta negativa, repete-se o exercício três vezes. Pode acontecer que,
com a promessa de sacrifício apropriado, o deus se acalme e acabe por aceitar o
que primeiramente tinha recusado. Esta técnica de tirar a sorte é peculiar,
pois, aos membros do candomblé; não interessa ao babalaô; mas também não pode
dar grande quantidade de indicações. Os Orixá respondem somente por um
"sim" ou "não", sem acrescentar nenhuma outra
"palavra". O babalaô que no Brasil é também chamado às vezes
"vidente" (Oluô) mas erradamente, pois Oluô é um título hierárquico
de certos babalô e não uma designação geral, dispõe, entretanto, de dois
processos que lhe permitem conhecer grande número de "palavras": o
colar de Ifa ou kpelê (Opelê) e os búzios de Exu ou Edulogun (edilogun).Como sacerdote Ifá, o
babalaô é o único que tem o direito de tocar no opelê ou nos cocos de dendê. O
mesmo não se dá com o edilogum. Com efeito, um mito recolhido na Bahia explica
como Elegba, que é outro nome de Exú, deu às filhas de Oxun a possibilidade de,
além do babalaô, também tirarem a sorte com os búzios. Ifa era um pobre
pescador que vivia miseravelmente. Fez um dia contrato com Elegba,
comprometendo-se a lhe servir de escravo devotado durante 16 anos. Elegba
enviou-o à floresta buscar coquinhos de dendê e ensinou-o a prepará-los para a
adivinhação. Mas chegava tanta gente para consultá-lo, que lfa teve necessidade
de uma mulher que se ocupasse de sua casa; tomou uma apetebi, que não era outra
senão Oxun. As pessoas que não conseguiam chegar a ver o próprio Ifa, pediam a
Oxun que fizesse o favor de tirar a sorte para elas. Então Oxun se queixou ao
marido de que não conhecia a arte de ler o futuro e, depois de muita
insistência, Ifa tomou coquinhos, preparou-os e pediu a Elegba que respondesse
por intermédio deles às perguntas feitas por Oxun. Elegba aceitou de má vontade;
e se hoje realmente responde às questões das apetebi, em represália persegue os
filhos de Oxun com mais furor ainda do que os filhos dos outros Orixá. Cada
babalaô tem, então, perto de si uma mulher que é filha de Oxun, mas não de
qualquer Oxun, pois cada divindade é múltipla; é preciso que seja da mais velha
de todas as Oxun, Yaba Omi, só está é, que pode ser a apetebi do babalaô. Mas
não nos enganemos. Trata-se de uma sacerdotisa, de uma espécie de babalaô
feminino e não da mulher legítima do babalaô. Dizia-se mesmo antigamente que
ela estava votada à castidade. Mas é evidente que a poligamia, que os negros
conservaram no Brasil reinterpretando-a, naturalmente, em termos ocidentais de
mulher legítima e de uma ou várias concubinas, pode tornar a apetebi uma das
mulheres do adivinho. Certas apetebi e os babalaô de nível inferior utilizam
somente quatro búzios, os quais, como os obi, podem responder apenas sim ou
não. As apetebi e os babalaô de grau superior utilizam de 16 búzios.
Finalmente, certos babalaôs têm um jogo de 32 búzios. Todavia, as apetebi não
têm o direito de ultrapassar as 16 "letras", como se diz muitas vezes
no meio africano. Embora existindo búzios nas praias do Brasil, não são
empregados na adivinhação. Esta só pode ser praticada com caramujos vindos da
África e que no mercado são vendidos a alto preço. Cada búzio tem uma das faces
quebrada, de maneira a apresentar um lado aberto e outro fechado. O adivinho
sacode os entre as duas mãos reunidas em concha e lança-os; segundo a maneira
pela qual caem, lê-se a "palavra" formada. Página 143. Livro O
Candomblé da Bahia. Abraço. Davi.
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