Budismo.
www.nalanda.org.br. Doutor Mettanando.
Traduzido por Aristein Woo. Centro de Estudos Budistas Nalanda. COMO O BUDHA
MORREU. No Dia de Vesak, informam-nos que esse é também o dia em que Buddha
atingiu o Parinibbāna. Mas nem todos sabem como o Buddha morreu. Textos antigos
misturam dois relatos acerca da morte do Senhor Buddha. Ela foi planejada e
desejada pelo Buddha ou foi devido a uma intoxicação alimentar, ou algo
completamente diferente? Eis aqui uma breve análise: O Mahāparinibbāna Sutta,
dos Discursos Longos do Tipiṭaka em pāli, é, sem dúvida, a
fonte mais confiável de detalhes da morte de Siddhattha Gotama (563-483 a.C.),
o Senhor Buddha. Ele é redigido em estilo narrativo, que permite que os
leitores acompanhem a história dos últimos dias de Buddha, a partir de alguns
meses antes de sua morte. Porém, entender o que realmente aconteceu ao Buddha
não é coisa simples. O sutta, ou discurso, descreve duas personalidades
conflitantes de Buddha, cada uma ocupando o lugar da outra ao longo do texto. A
primeira personalidade é de alguém que fazia milagres, que transportou a si
mesmo e sua comitiva de monges pelo rio Ganges (D II, 89), que tinha uma visão
divina da distribuição dos deuses na terra (D II, 87), que poderia viver até o
fim do mundo desde que alguém o pedisse (D II, 103), que determinou o momento
da própria morte (D II, 105), e cuja morte foi glorificada por uma chuva de
flores celestiais, pó de sândalo e música divina (D II, 138). A outra
personalidade é a de um idoso com a saúde decadente (D II, 120), que tinha
quase perdido a vida por uma dor intensa durante seu último retiro em Vesali (D
II, 100), e que foi forçado a aceitar os termos de uma doença inesperada e
morrer depois de ingerir uma iguaria oferecida por um anfitrião generoso. Essas
duas personalidades aparecem alternadamente em diferentes partes da narrativa.
Elas parecem representar duas explicações da causa da morte de Buddha. Uma é
que Buddha morreu porque seu auxiliar, Ānanda, falhou em convidá-lo para viver
por toda a existência do mundo, ou até por mais tempo do que isso (D II, 117).
A outra é que ele morreu por uma doença aguda que teve início após ter ingerido
algo com o nome de “sukaramaddava” (D II, 127-157). O primeiro relato é,
provavelmente, uma lenda, ou o resultado de disputas políticas dentro da
comunidade buddhista durante um período de transição. Já o segundo relato
parece, mais realista e acurado em descrever um evento real que aconteceu nos
últimos dias de Buddha. Alguns estudos focam nas qualidades desse alimento
especial que o Buddha teria ingerido na sua última refeição e que teria sido o
agente de sua morte. Contudo, há também uma outra abordagem baseada na
descrição dos sinais e sintomas apresentada no sutta, para os quais o
conhecimento médico moderno pode lançar alguma luz. O que sabemos. No
Mahāparinibbāna Sutta, é relatado que o Buddha adoeceu subitamente após comer
uma iguaria denominada sukaramaddava, literalmente “porco macio”,
que foi preparada pelo seu generoso anfitrião, Cunda Kammaraputta. O nome dessa
iguaria atraiu a atenção de muitos estudiosos, e é o foco de pesquisas
acadêmicas sobre a natureza dos ingredientes usados em seu preparo. O próprio
sutta apresenta detalhes dos sinais e sintomas da doença do Buddha, além de
informações fidedignas sobre as suas condições nos quatro meses anteriores, e
esses detalhes também são significativos para a medicina. O sutta começa com o
plano do rei Ajatasattu de conquistar um estado rival, Vajji. O Buddha tinha
viajado a Vajji para iniciar seu último retiro da estação chuvosa. Foi durante
esse retiro que ele adoeceu. O sintoma da doença era dor súbita e intensa. O
sutta, porém, não descreve a localização ou características dessa dor. Ele
menciona brevemente a doença, dizendo que a dor era intensa e quase o matou. Em
seguida, o Buddha foi visitado por Māra, o Deus da Morte, que o convida a
morrer. O Buddha não aceitou o convite imediatamente. Somente após seu auxiliar
Ānanda fracassar em perceber a indicação de que deveria fazer um convite para
que permanecesse, foi que Buddha morreu. Esse trecho da mensagem, apesar de
envolto em mito e no sobrenatural, fornece algumas informações significativas
do ponto de vista médico. Quando o sutta foi composto, seu autor estava
convencido de que o Buddha morrera, não por causa da iguaria que tinha comido,
mas porque já tinha uma doença subjacente, aguda e severa, e já apresentava os
mesmos sintomas da patologia que finalmente o mataria. A Cronologia. A
tradição buddhista Theravāda apoia a suposição de que o Buddha histórico
faleceu durante a noite de lua cheia no mês lunar do Visakha (entre maio e
junho). Mas isso contradiz a informação do sutta, que diz claramente que o
Buddha morreu logo após o retiro da estação chuvosa, mais provavelmente durante
o outono ou meio do inverno, isto é, entre novembro e janeiro. Outono e
inverno, porém, não são estações favoráveis ao crescimento de cogumelos, que
alguns estudiosos acreditam ser a fonte da intoxicação do Buddha na sua última
refeição. Diagnóstico. O sutta nos diz que o Buddha adoeceu imediatamente após comer
o sukaramaddava. Uma vez que não sabemos nada sobre a natureza
dessa iguaria, é difícil atribuir a ela a causa direta da doença do Buddha.
Mas, a partir da descrição feita, sabemos que o início do mal-estar foi súbito.
Enquanto estava comendo, ele sentiu haver algo errado com a comida e pediu que
o anfitrião a enterrasse. Logo depois, ele apresentou forte dor abdominal e
sangramento retal. Podemos presumir que o mal-estar começou enquanto ele se
alimentava, fazendo com que ele imaginasse haver algo errado com aquela iguaria
exótica. E por sua compaixão pelos demais, fez com que ela fosse enterrada.
Seria a intoxicação alimentar a causa da doença? Parece improvável. Os sintomas
descritos não indicam intoxicação alimentar, que pode ser bastante aguda, mas
dificilmente provocaria diarreia com sangue. Habitualmente, a intoxicação
bacteriana não se manifesta imediatamente, mas apenas após um período de
incubação que dura de duas a doze horas, com diarreia e vômitos, mas sem
hemorragia. Outra possibilidade é a intoxicação química, que também se
manifesta imediatamente. Mas é pouco usual uma intoxicação química causar
hemorragia intestinal grave. Intoxicação alimentar química com hemorragia
digestiva aguda só pode ser provocada por substâncias corrosivas como ácidos
fortes, que podem facilmente desencadear um quadro clínico imediato. Porém,
substâncias corrosivas teriam causado hemorragia no trato digestivo alto,
levando a hematêmese [1]. Esse sintoma não é mencionado no texto. A
doença ulcerosa péptica pode ser descartada da lista de prováveis diagnósticos
também. Apesar do seu início ser imediato, raramente é acompanhada de fezes com
sangue vivo. A úlcera gástrica com sangramento intestinal produz fezes
enegrecidas quando lesa um vaso sanguíneo [2]. Uma úlcera num nível ainda mais alto do
trato digestivo apresentaria, mais provavelmente, vômitos de sangue, e não
diarreia com hemorragia. Outra evidência contra essa possibilidade é que um
paciente com uma úlcera gástrica extensa habitualmente não tem apetite. Mas, ao
aceitar o convite para almoçar com o anfitrião, presumimos que o Buddha estava
se sentindo tão saudável quanto qualquer homem nos seus oitenta e poucos anos
poderia se sentir. Considerando sua idade, não podemos descartar a
possibilidade de o Buddha ter uma doença crônica, como câncer ou tuberculose,
ou, ainda, uma infecção tropical, como a febre tifóide, comum na época do
Buddha. Essas doenças podem provocar sangramento digestivo baixo, dependendo de
sua localização. Também são coerentes com a história de adoecimento anterior
durante o retiro. Mas elas também podem ser descartadas, já que habitualmente
são acompanhadas por outros sintomas, como letargia, diminuição do apetite,
perda de peso, tumoração abdominal. Nenhum desses sintomas é mencionado no
sutta. Uma hemorroida volumosa pode causar sangramento retal em grande
quantidade. Mas é improvável que uma hemorroida possa causar dor abdominal
intensa, a menos que fique estrangulada. Mas então haveria grande perturbação
no caminhar do Buddha até a casa do seu anfitrião, e raramente um sangramento
hemorroidário é desencadeado por uma refeição. Infarto
Mesentérico. Uma doença que é
compatível com os sintomas descritos – dor abdominal aguda, sangramento retal,
ocorrência frequente em pessoas idosas, e ser desencadeada por uma refeição – é
o infarto mesentérico, causado por uma oclusão nos vasos sanguíneos do
mesentério. E é uma situação letal. Isquemia mesentérica aguda (redução da
irrigação sanguínea para o mesentério) é uma condição grave com alto índice de
mortalidade. O mesentério é uma parte da parede intestinal que liga todo o
trato intestinal à cavidade abdominal [3]. Um infarto nos vasos do mesentério
normalmente provoca a morte tecidual numa grande porção do intestino, levando a
uma laceração da parede intestinal. Isso normalmente provoca dor abdominal
intensa e sangramento. O paciente habitualmente morre por hemorragia aguda.
Essa situação condiz com a informação do sutta. Também é corroborada mais
tarde, quando o Buddha pede a Ānanda para trazer-lhe água para beber, indicando
sede intensa. Conforme é relatado, Ānanda nega esse pedido, já que ele não
encontra fonte de água limpa. Ele argumenta com o Buddha que o riacho próximo
está lamacento por ter sido atravessado por uma grande caravana de carroças.
Mas o Buddha insiste para que ele traga água de qualquer jeito. Uma questão
surge nesse ponto: Por que o Buddha não foi sozinho até a fonte de água, em vez
de pressionar um auxiliar de má vontade a fazê-lo? A resposta é simples. O
Buddha estava sofrendo de choque hipovolêmico causado pela hemorragia intensa.
Ele não podia mais andar, e daí até o seu leito de morte, ele deve ter sido
carregado numa padiola. Se era essa a situação de fato, o sutta mantém silêncio
sobre o deslocamento do Buddha até o seu leito de morte, possivelmente porque o
autor sentiu que seria embaraçoso para o Buddha. Geograficamente, sabemos que a
distância entre o local onde se acredita ser a casa de Cunda, e o lugar onde o
Buddha morreu é de cerca de 15 a 20 quilômetros. Não é possível para um
paciente com tão grave doença andar toda essa distância. Mais provavelmente, o
que aconteceu foi que o Buddha foi carregado numa padiola por um grupo de
monges até Kusinagara (Kushinagara). Permanece como uma questão aberta se o
Buddha realmente determinou falecer nessa cidade, presumivelmente não muito
maior que uma vila. Pelas indicações da viagem do Buddha, informadas no sutta,
ele estava indo para um lugar ao norte de Rājagaha. E possível que ele não
pretendia morrer ali, mas na cidade onde havia nascido, que ainda ficava a uma distância
de três meses de viagem. A partir do sutta, fica claro que o Buddha não estava
prevendo sua doença súbita, caso contrário ele não teria aceito o convite do
seu anfitriâo. Kusinara era, provavelmente, a cidade mais próxima onde ele
poderia encontrar um médico para atendê-lo. Não é difícil imaginar um grupo de
monges carregando apressadamente o Buddha numa padiola para a cidade mais
próxima a fim de salvar a sua vida. Evolução
da doença. O infarto mesentérico
é uma doença comumente encontrada em pessoas idosas, provocada pela obstrução
da artéria que leva sangue para o trato intestinal médio – o intestino delgado.
A causa mais comum da obstrução é a degeneração da parede de um vaso sanguíneo,
a artéria mesentérica superior, provocando dor abdominal intensa, também
conhecida como angina abdominal. Habitualmente, a dor é desencadeada por uma
refeição abundante, que demanda um fluxo maior de sangue para o trato
digestivo. Conforme a obstrução persiste, o intestino é privado do suprimento
sanguíneo, o que leva a um infarto, ou gangrena, de uma porção do trato
intestinal. Isso, por sua vez, resulta em uma laceração da parede do intestino,
sangramento profuso e diarreia sanguinolenta. A doença progride à medida que
líquido e conteúdo intestinal extravasa para a cavidade peritoneal, causando
peritonite ou inflamação da parede abdominal. Já é, então, uma condição letal
para o paciente, que frequentemente morre em decorrência da perda de sangue e
outros fluidos. Se a situação não é corrigida por cirurgia, o quadro evolui
para choque séptico devido a infiltração de toxinas bacterianas na corrente
sanguínea. Análise Retrospectiva. Do diagnóstico apresentado acima, podemos ter
como quase certo, que o Buddha sofreu um infarto mesentérico causado por uma
oclusão da artéria mesentérica superior. Essa foi a causa da dor que quase o
matara poucos meses antes, durante o seu último retiro da estação das chuvas.
Com a evolução da doença, o revestimento mucoso do intestino desprendeu-se, e
essa área tornou-se a origem do sangramento. Arteriosclerose, o endurecimento
das paredes dos vasos decorrente do envelhecimento, foi a causa da oclusão
arterial, uma pequena obstrução que não resultou em diarreia sanguinolenta, mas
manifestou um sintoma, conhecido como angina abdominal. Ele apresentou uma
segunda crise enquanto comia o sukaramaddava. A dor provavelmente
não foi intensa no início, mas fez com que ele sentisse que havia algo errado.
Suspeitando da iguaria, pediu ao anfitrião que enterrasse tudo, a fim de que
outros não passassem mal por ela. Logo depois, o Buddha percebeu que sua doença
era séria, com sangramento retal e piora da dor abdominal. Em decorrência da
hemorragia, ele entrou em choque. O grau de desidratação era tão grave que ele
não pôde aguentar por mais tempo e precisou abrigar-se em uma árvore ao longo
do caminho. Sentindo-se sedento e exausto, ele pediu a Ānanda que buscasse água
para beber, apesar de ficar sabendo que a água estava lamacenta. Foi então que
ele entrou em colapso, e sua comitiva o levou até a cidade mais próxima,
Kusinara, onde haveria chance de encontrar um médico ou uma pousada onde
poderia se recuperar. É provavelmente verdadeiro que o Buddha. sentiu-se melhor
após beber algo e repor sua perda hídrica, e descansar na padiola. A
experiência anterior com os mesmos sintomas fazia-o saber que esse mal-estar
era a segunda crise de uma doença já em curso. Ele diz a Ānanda que a refeição
não tinha sido a causa da sua doença, e que não se deveria culpar Cunda. Um
paciente em choque, desidratado e com hemorragia profusa geralmente sente muito
frio. Essa foi a razão pela qual ele pediu ao seu auxiliar para preparar uma
cama com quatro camadas de ‘sanghati’. De acordo com a disciplina monástica
buddhista, um ‘sanghati’ é um manto, uma peça de pano bem grande, do tamanho de
um lençol, que Buddha havia permitido aos monges e monjas usar durante o
inverno. Isso informa quanto frio o Buddha sentiu devido a sua perda de sangue.
Do ponto de vista médico, não se permite a um paciente em choque e intensa dor
abdominal, possivelmente peritonite, palidez e calafrios, ser atendido numa
consulta de rotina. Provavelmente o Buddha foi acolhido em uma pousada, onde
foi cuidado e aquecido, na cidade de Kusinara. Isso é confirmado pela descrição
de Ānanda que chora, desfalece e se apoia na porta da pousada após ficar
sabendo que o Buddha tinha morrido. Sem tratamento adequado, um paciente com
infarto mesentérico pode viver de 10 a 20 horas. A partir do sutta, sabemos que
o Buddha morreu cerca de 15 a 18 horas após o início da crise. Durante esse
tempo, seus auxiliares fizeram o melhor possível para deixá-lo confortável, por
exemplo, aquecendo o cômodo onde ele estava descansando, ou gotejando água em
sua boca para saciar sua sede persistente, ou oferecendo-lhe preparados
medicinais. Mas é muito improvável que um paciente com calafrios precisaria de
alguém para abaná-lo como descrito no sutta. Por momentos, ele pode ter se
recuperado temporariamente da exaustão, permitindo-se continuar suas conversas
com algumas pessoas. A maior parte das suas últimas palavras devem ter sido
ditas como relatadas, elas foram memorizadas por gerações de monges até serem
finalmente transcritas. Mas, por fim, tarde da noite, o Buddha morreu durante
uma segunda onda de choque séptico. Sua doença decorreu de causas naturais
associadas à sua idade, como aconteceria com qualquer outro. Conclusão. A hipótese descrita
acima explica vários eventos na narrativa do sutta, nomeadamente a pressão para
que Ānanda trouxesse água, o pedido do Buddha para que sua cama tivesse quatro
camadas de cobertores, a ordem para que a comida fosse enterrada, e assim por
diante. Ela também apresenta outra possibilidade para o meio real de transporte
do Buddha para Kusinara e o local do seu leito de morte. Sukaramaddava,
seja o que contenha, dificilmente seria a causa direta de sua morte. O Buddha
não morreu por intoxicação alimentar. Em vez disso, foi o tamanho da refeição,
consideravelmente volumosa para o seu trato digestivo já comprometido, que
desencadeou a segunda crise de infarto mesentérico que levou ao fim da sua
vida. Doutor Mettanando. Bangkok – Tailândia. www.nalanda.org.br. Abraço. Davi.
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