Espiritismo.
www.fetnet.org.br. Texto de Allan
Kardec. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Capítulo III. O BEM E O MAL. Origem
do Bem e do Mal. O Instinto e a Inteligência. Destruição dos Seres Vivos uns
Pelos Outros. 1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo
sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo o que dele procede há de participar
dos seus atributos, porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom nada
pode produzir que seja irracional, mau e injusto. Logo, o mal que observamos
não pode ter nele a sua origem. 2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser
especial, quer se lhe chame Arimane,28 quer Satanás, de duas coisas uma: ou ele
seria igual a Deus e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de toda a
eternidade como Ele, ou lhe seria inferior. No primeiro caso haveria duas
potências rivais, incessantemente em luta, cada uma procurando desfazer o que
fizesse a outra, contrariando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com
a unidade de vistas que se revela no ordenamento do universo. No segundo caso,
sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria subordinado. Não podendo existir
de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se
foi criado, só o poderia ter sido por Deus. Este, então, teria criado o
Espírito do mal, o que seria a negação da bondade infinita. (Veja-se O céu e o
inferno. Primeira parte, capítulo IX, Os demônios.) 3. Entretanto, o mal existe
e tem uma causa. Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a
humanidade apresentam duas categorias que importa distinguir: a dos males que o
homem pode evitar e a dos que independem da sua vontade. Entre os últimos, é
preciso que se incluam os flagelos naturais. O homem, cujas faculdades são
limitadas, não pode penetrar nem abranger o conjunto dos desígnios do Criador;
julga as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses
artificiais e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na
ordem da natureza. É por isso que, muitas vezes, se lhe afigura mal e injusto
aquilo que consideraria justo e admirável se lhe conhecesse a causa, o
objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de
cada coisa, reconhecerá que tudo traz o selo da sabedoria infinita e se dobrará
a essa sabedoria, mesmo com relação às coisas que não compreende. 4. O homem
recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe é possível conjurar,
ou pelo menos atenuar muito os esforços de todos os flagelos naturais. Quanto
mais saber ele adquire e mais se adianta em civilização, tanto menos
desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização social sábia e
previdente, chegará mesmo a neutralizar as suas consequências, quando não
possam ser inteiramente evitados. Assim, mesmo com referência aos flagelos que
têm certa utilidade para a ordem geral da natureza e para o futuro, mas que
causam danos no presente, Deus facultou ao homem os meios de lhes paralisar os
efeitos. É assim que ele saneia as regiões insalubres, neutraliza os miasmas
pestíferos,29 fertiliza terras incultas e trabalha por preservá-las das
inundações; constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos
ventos, tão necessários à depuração da atmosfera, e se coloca ao abrigo das
intempéries. É assim, finalmente, que pouco a pouco a necessidade lhe faz
criar
as ciências, por meio das quais melhora as condições de habitabilidade do globo
e aumenta o seu próprio bem-estar. 5. Tendo o homem que progredir, os males aos
quais se acha exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência,
de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios
de evitá-los. Se nada tivesse a temer, nenhuma necessidade o induziria a
procurar o melhor; seu espírito se entorpeceria na inatividade; nada inventaria
nem descobriria. A dor é o aguilhão que impele o homem para frente, na senda do
progresso. 6. Porém, mais numerosos do que os males que o homem não pode evitar
são os que ele cria pelos seus próprios vícios, os que provêm do seu orgulho,
do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí se
encontra a causa das guerras e das calamidades que estas acarretam, das
dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, enfim, da maior
parte das doenças. Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria, tendo por único
objetivo o bem. O homem encontra em si mesmo tudo o que lhe é necessário para
cumpri-las. Sua rota está traçada na consciência, e a Lei divina está gravada
no coração. Além disso, Deus lhe lembra disso constantemente por intermédio de
seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão
de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, por uma
infinidade de Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte. Se o homem
se conformasse rigorosamente com as Leis divinas, certamente evitaria os males
mais agudos e viveria feliz na Terra. Se não o faz, é em virtude do seu
livre-arbítrio, sofrendo assim as consequências do seu proceder. (O evangelho
segundo o espiritismo, cap. V, itens 4, 5, 6 e seguintes.) 7. Entretanto, Deus,
cheio de bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio mal
saia o bem. Chega um momento em que o excesso do mal moral se torna intolerável
e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência,
ele se sente compelido a procurar no bem o remédio de que necessita, sempre por
efeito do seu livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e
porque reconheceu os inconvenientes do outro. A necessidade, pois, o constrange
a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu
a melhorar as condições materiais da sua existência (item 5). 8. Pode-se dizer
que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor. Assim como o frio
não é um fluido especial, também o mal não é um atributo distinto; um é a
antítese do outro. Onde não existe o bem, forçosamente existe o mal. Não
praticar o mal, já é um princípio do bem. Deus somente quer o bem; só do homem
procede o mal. Se na Criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia
evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em si mesmo, e tendo ao mesmo tempo o
livre-arbítrio e por guia as Leis divinas, evitá-lo-á sempre que o queira.
Tomemos um fato vulgar por termo de comparação. Um proprietário sabe que nos
confins de suas terras há um lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se
quem por lá se aventurasse. Que faz a fim de prevenir os acidentes? Manda
colocar perto um aviso, proibindo que prossigam os que ali passem, devido ao
perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar disso, um
imprudente desatende o aviso, ultrapassa o ponto permitido e sai-se mal, de
quem ele se pode queixar, senão de si mesmo? Dá-se a mesma coisa com o mal; o
homem o evitaria se observasse as Leis divinas. Deus, por exemplo, impôs limite
à satisfação das necessidades; o homem é advertido pela saciedade; se
ultrapassa esse limite, o faz voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a
morte que daí podem resultar provêm da sua imprevidência, e não de Deus. 9.
Sendo o mal o resultado das imperfeições do homem e tendo sido este criado por
Deus, dir-se-á que Deus não deixa de ter criado, se não o mal, pelo menos a
causa do mal. Se Deus houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria. Se
o homem tivesse sido criado perfeito, fatalmente penderia para o bem. Ora, em
virtude do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem nem para
o mal. Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso
fosse fruto do seu próprio trabalho, a fim de que tivesse o mérito deste, da
mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que pratique pela própria
vontade. A questão, pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da
sua propensão para o mal.30 10. Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos
os vícios, vê-se que as raízes de ambos se acham no instinto de conservação.
Esse instinto se encontra em toda a sua força nos animais e nos seres
primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina,
sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser nascido para a vida
intelectual. Ao contrário, o instinto se enfraquece à medida que a inteligência
se desenvolve, porque esta domina a matéria. O destino do Espírito é a vida
espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, só lhe
cumpre satisfazer às exigências materiais e, para tal fim, o exercício das
paixões constitui uma necessidade para a conservação da espécie e dos
indivíduos, materialmente falando. Mas, uma vez saído desse período, outras
necessidades se lhe apresentam, a princípio semi morais e semi materiais,
depois exclusivamente morais. É então que o Espírito exerce domínio sobre a
matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda providencial e se aproxima do seu
destino final. Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se e
se identifica com o bruto. Nessa situação, o que era outrora um bem, porque era
uma necessidade da sua natureza, transforma-se num mal, não só porque já não
constitui uma necessidade, mas porque se torna prejudicial à espiritualização
do ser. Muita coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O
mal é, pois, relativo, e a responsabilidade é proporcional ao grau de
adiantamento. Todas as paixões têm, portanto, a sua utilidade providencial,
pois, se assim não fosse, Deus teria feito coisas inúteis e até nocivas. É o
abuso que constitui o mal, e o homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio.
Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe entre o
bem e o mal. O instinto e a inteligência 11. Qual a diferença entre o instinto
e a inteligência? Onde começa um e acaba o outro? Será o instinto uma
inteligência rudimentar ou uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da
matéria? O instinto é a força oculta que impele os seres orgânicos a atos
espontâneos e involuntários, tendo em vista a sua conservação. Nos atos
instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a
planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para
a terra em busca de nutrientes; que a flor se abre e fecha alternativamente,
conforme as necessidades; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno
daquilo que lhes serve de apoio ou a ele se fixam com as suas gavinhas. É pelo
instinto que os animais são avisados do que lhes é útil ou nocivo; que buscam,
conforme a estação, os climas propícios; que constroem, sem ensino prévio, com
mais ou menos arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para a sua
prole, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam com
habilidade as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se
aproximam, que a mãe choca os filhotes e que estes procuram o seio materno. No
homem, o instinto domina exclusivamente no começo da vida; é por instinto que a
criança faz os primeiros movimentos, toma o alimento, grita para exprimir suas
necessidades, imita o som da voz, tenta falar e andar. No próprio adulto,
certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um
risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do corpo; tais ainda o
piscar das pálpebras para moderar o brilho da luz, a respiração etc. 12. A
inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados,
combinados, de acordo com a oportunidade das circunstâncias. É
incontestavelmente um atributo exclusivo da alma. Todo ato maquinal é
instintivo. O ato que denota reflexão, combinação, deliberação é inteligente.
Um é livre, o outro não o é. O instinto é um guia seguro, que nunca se engana; a
inteligência, pelo simples fato de ser livre, está por vezes sujeita a errar.
Se o ato instintivo não tem o caráter do ato inteligente, revela, todavia, uma
causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se se admitir que o instinto
procede da matéria, será forçoso admitir que a matéria é inteligente, até mesmo
bem mais inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto não se
engana, ao passo que a inteligência está sujeita a errar. Se se considerar o
instinto uma inteligência rudimentar, como se há de explicar que, em certos
casos, seja superior à inteligência que raciocina? Como explicar que torne
possível a execução de atos que esta não pode realizar? Se ele é atributo de um
princípio espiritual especial, qual vem a ser esse princípio? Já que o
princípio se apaga, dar-se-á que esse princípio se destrua? Se os animais são
dotados apenas de instinto, não tem solução o destino deles e nenhuma
compensação os seus sofrimentos, o que não estaria de acordo nem com a justiça,
nem com a bondade de Deus. (Cap. II, item 19.) 13. Segundo outro sistema, o
instinto e a inteligência teriam um só e mesmo princípio. Chegado a certo grau
de desenvolvimento, esse princípio, que primeiramente apenas tivera as
qualidades do instinto, passaria por uma transformação que lhe daria as da
inteligência livre. Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e
passa a ser guiado exclusivamente pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu
estado primitivo e, quando o homem recobrasse a razão, o instinto se tornaria inteligência
e assim alternativamente, a cada acesso, o que não é admissível. Aliás, a
inteligência e o instinto se mostram muitas vezes simultaneamente no mesmo ato.
No caminhar, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem põe
maquinalmente um pé à frente do outro, sem nisso pensar; mas quando quer
acelerar ou diminuir o passo, levantar o pé ou desviar-se de um obstáculo, há
cálculo, combinação; ele age com propósito deliberado. A impulsão involuntária
do movimento é o ato instintivo; a direção calculada do movimento é o ato
inteligente. O animal carnívoro é impelido pelo instinto a se alimentar de
carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para
agarrar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência.
14. Outra hipótese, que, aliás, se conjuga perfeitamente à ideia da unidade de
princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda
com o que o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo espiritual com
o mundo corpóreo. Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm por
missão velar pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que
os envolvem nos seus eflúvios fluídicos; que os homens agem muitas vezes de
maneira inconsciente, sob a ação desses eflúvios. Sabe-se, além disso, que o
instinto, que por si mesmo produz atos inconscientes, predomina nas crianças e,
em geral, nos seres cuja razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto
não seria atributo nem da alma nem da matéria; não pertenceria propriamente ao
ser vivo, mas seria efeito da ação direta dos protetores invisíveis que
supririam a imperfeição da inteligência, provocando atos inconscientes
necessários à conservação do ser. Seria qual o andador com que se amparam as
crianças que ainda não sabem andar. Então, do mesmo modo que se deixa
gradualmente de usar o andador à proporção que a criança se equilibra sozinha,
os Espíritos protetores deixam entregues a si mesmos os seus protegidos à
medida que estes se tornam aptos a guiar-se pela própria inteligência. Assim, o
instinto, longe de ser o produto de uma inteligência rudimentar e incompleta,
sê-lo-ia de uma inteligência estranha, na plenitude da sua força, inteligência
protetora, que supriria a insuficiência, quer de uma inteligência mais jovem,
que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda
fosse incapaz de fazer por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém,
momentaneamente tolhida no uso de suas faculdades, como se dá com o homem na
infância e nos casos de idiotia e de afecções mentais. Diz-se providencialmente
que há um deus para as crianças, para os loucos e para os ébrios. Esse ditado é
mais verdadeiro do que se crê. Aquele deus não é senão o Espírito protetor, que
vela pelo ser incapaz de se proteger, utilizando-se da sua própria razão. 15.
Nesta ordem de ideias, ainda se pode ir mais longe. Por mais racional que seja,
essa teoria não resolve todas as dificuldades da questão. Se observarmos os
efeitos do instinto, notaremos, logo de começo, uma unidade de vistas e de
conjunto, uma segurança de resultados, que cessam logo que a inteligência livre
substitui o instinto. Além do mais, reconheceremos profunda sabedoria na
apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades
de cada espécie. Semelhante unidade de vistas não poderia existir sem a unidade
de pensamento, e esta é incompatível com a diversidade das aptidões
individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão harmonioso que se
realiza desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade e
uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A uniformidade no que
resulta das faculdades instintivas é um fato característico que implica
forçosamente a unidade da causa. Se a causa fosse inerente a cada
individualidade, haveria tantas variedades de instintos quantos fossem os
indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e constante
há de ter uma causa geral, uniforme e constante; um efeito que atesta sabedoria
e previdência deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa dessa
natureza, sendo necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente
material. Não se encontrando nas criaturas, encarnadas ou desencarnadas, as
qualidades necessárias à produção de tal resultado, temos que subir mais alto,
isto é, ao próprio Criador. Se nos reportarmos à explicação dada sobre a
maneira pela qual se pode conceber a ação providencial (cap. II, item 24); se
figurarmos todos os seres penetrados do fluido divino, soberanamente inteligente,
compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a
todos os movimentos instintivos para o bem de cada indivíduo. Essa solicitude é
tanto mais ativa quanto menos recurso tem o indivíduo em si mesmo e na sua
inteligência. É por isso que ela se mostra maior e mais absoluta nos animais e
nos seres inferiores do que no homem. Segundo essa teoria, compreende-se que o
instinto seja um guia sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de
todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria,
fica realçado e enobrecido. Em razão das suas consequências, ele não devia ser
entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Por
intermédio da mãe, o próprio Deus vela pelas suas criaturas que nascem. 16.
Esta teoria não destrói de modo algum o papel dos Espíritos protetores, cujo
concurso é fato observado e comprovado pela experiência; mas deve-se notar que
a ação desses Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as
qualidades próprias do protetor e do protegido e que em parte alguma apresenta
a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria, conduz Ele
próprio os cegos, mas confia a inteligências livres o cuidado de guiar os
clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade de seus atos. A missão
dos Espíritos protetores é um dever que aceitam voluntariamente e lhes é um
meio de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma pela qual o
desempenhem. 17. Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente
hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para ser tida
como solução definitiva. A questão será certamente resolvida um dia, quando se
tiverem reunido os elementos de observação que ainda faltam. Até lá, temos que
limitar-nos a submeter as diversas opiniões ao crivo da razão e da lógica e
esperar que a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade será
decerto a que melhor condiga com os atributos de Deus, isto é, com a suprema
bondade e a suprema justiça. (Cap. II, item 19.) 18. Sendo o instinto o guia, e
sendo as paixões as molas da alma no período inicial do seu desenvolvimento,
por vezes se confundem em seus efeitos. Há, entretanto, entre esses dois
princípios, diferenças que é preciso considerar. O instinto é guia seguro,
sempre bom. Pode, depois de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca
prejudicial. Enfraquece-se pela predominância da inteligência. As paixões, nas
primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o fato de serem as criaturas
solicitadas por uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem
principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais do que o instinto, do
organismo. O que, acima de tudo, as distingue do instinto, é que são
individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes.
Variam, ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São
úteis, como estimulante, até a eclosão do senso moral que, de um ser passivo,
faz que nasça um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, mas
prejudiciais ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam.
Abrandam-se com o desenvolvimento da razão. 19. O homem que só agisse pelo
instinto poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência.
Seria qual criança que não deixasse o andador e não soubesse utilizar-se de
seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito inteligente,
mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila por si mesmo; as paixões
só se domam pelo esforço da vontade. Destruição dos seres vivos uns pelos
outros 20. A destruição recíproca dos seres vivos é uma das leis da natureza,
que, à primeira vista, menos parecem conciliar-se com a bondade de Deus.
Pergunta-se por que Deus criou para eles a necessidade de mutuamente se
destruírem, para se alimentarem uns à custa dos outros. Para quem vê apenas a
matéria e restringe a sua visão à vida presente, parece, de fato, que há uma
imperfeição qualquer na obra divina. É que em geral os homens julgam a
perfeição de Deus do ponto de vista humano; medem a sabedoria divina pelo
próprio julgamento que dela fazem, e pensam que Deus não poderia fazer coisa
melhor do que eles próprios fariam. Como a curta visão de que dispõem não lhes
permite apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa decorrer de
um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua
essência verdadeira, bem como o da grande lei de unidade, que constitui a
harmonia da Criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a
sabedoria providencial e a harmonia, justamente onde apenas vê uma anomalia e
uma contradição. 21. A verdadeira vida, tanto do animal quanto do homem, não
está no envoltório corpóreo, do mesmo modo que não está no vestuário. Está no
princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Esse princípio
necessita do corpo para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar
sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se
gasta; ao contrário, dele sai cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto. Que
importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos frequentemente de envoltório?
Não deixa por isso de ser Espírito. É absolutamente como se um homem mudasse
cem vezes no ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem. Por meio
do espetáculo incessante da destruição, Deus ensina aos homens o pouco caso que
devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual,
fazendo que a desejem como uma compensação. Deus, alegarão, não podia chegar ao
mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se
entredevorarem? Se tudo é sabedoria em sua obra, devemos supor que esta não
existirá mais num ponto do que em outros; se não o compreendemos assim, devemos
atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, devemos tentar a pesquisa da
razão do que nos pareça defeituoso, tomando por bússola este princípio: Deus há
de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a sua
justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que ultrapasse o nosso
entendimento. 22. Uma primeira utilidade que se apresenta de tal destruição,
utilidade puramente física, é verdade, é esta: os corpos orgânicos só se
conservam com o auxílio das matérias orgânicas, por só elas conterem os
elementos nutritivos necessários à transformação deles. Como os corpos,
instrumentos de ação do princípio inteligente, precisam ser constantemente
renovados, a Providência faz que sirvam ao seu mútua manutenção. É por isso que
os seres se nutrem uns dos outros. Mas é o corpo que se nutre do corpo, sem que
o Espírito se aniquile ou altere, fica apenas despojado do seu envoltório.31,32
23. Há também considerações morais de ordem mais elevada. É necessária a luta
para o desenvolvimento do Espírito. Na luta é que ele exercita as suas
faculdades. O que ataca em busca do alimento e o que se defende para conservar
a vida usam de habilidade e inteligência, aumentando, em
consequência,
suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi que o
mais forte ou o mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais;
mais tarde o Espírito, que não morreu, tomará outra. 24. Nos seres inferiores
da Criação, naqueles a quem ainda falta o senso moral, nos quais a inteligência
ainda não substituiu o instinto, a luta não pode ter por objetivo senão a
satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das necessidades materiais
mais imperiosas é a da alimentação. Eles, pois, lutam unicamente para viver,
isto é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado
os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma se elabora e ensaia
para a vida. No homem, há um período de transição em que ele mal se distingue
do bruto. Nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por
alvo a satisfação das necessidades materiais. Mais tarde, contrabalançam-se o
instinto animal e o sentimento moral; o homem então luta, não mais para se
alimentar, mas para satisfazer à sua ambição, ao seu orgulho, a sua necessidade
de dominar. Para isso, ainda lhe é preciso destruir. Todavia, à medida que
prepondera o senso moral, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade
de destruir, acabando mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa essa
necessidade. O homem tem horror ao sangue. Entretanto, a luta é sempre
necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois mesmo chegando a esse ponto que
nos parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito. Só à custa de sua
atividade que o Espírito adquire conhecimentos, experiência e se despoja dos
últimos vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e
brutal que era, se torna puramente intelectual. O homem luta contra as
dificuldades, e não mais com os seus semelhantes. www.fetnet.org.br. Abraço. Davi
Nenhum comentário:
Postar um comentário