quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

As Paixões da Alma. I. René Descartes.

Art. 1. O que é paixão em relação a um sujeito é sempre ação a qualquer outro respeito. Nada há em que melhor apareça quão defeituosas são as ciências que recebemos dos antigos do que naquilo que escreveram sobre as paixões; pois, embora seja esta uma matéria cujo conhecimento foi sempre muito procurado, e ainda que não pareça ser das mais difíceis, porquanto cada qual, sentindo-as em si próprio, não necessita tomar alhures (num outro lugar, em outro momento) qualquer observação para lhes descobrir a natureza, todavia o que os antigos delas ensinaram é tão pouco, e na maior parte tão pouco crível, que não posso alimentar qualquer esperança de me aproximar da verdade, senão distanciando-me dos caminhos que eles trilharam. Eis por que serei obrigado a escrever aqui do mesmo modo como se tratasse de uma matéria que ninguém antes de mim houvesse tocado; e, para começar, considero que tudo quanto se faz ou acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos uma paixão em relação ao sujeito a quem acontece, e uma ação com respeito àquele que faz com que aconteça (1); de sorte que, embora o agente e o paciente sejam amiúde (repetida vezes ou frequentemente) muito diferente, a ação e a paixão não deixam de ser sempre uma mesma coisa com dois nomes, devido aos dois sujeitos diversos aos quais podemos relacioná-la. (1). Ora, sempre julguei que é uma e mesma coisa que é denominada ação quando a relacionamos ao termo de onde ela procede e paixão com respeito ao termo no qual ela é recebida. 

Art. 2. Que para conhecer as paixões da alma cumpre distinguir entre as suas funções e as do corpo. Depois, também considero que não notamos que haja algum sujeito que atue mais imediatamente contra nossa alma do que o corpo ao qual está unida, e que, por conseguinte, devemos pensar que aquilo que nela é uma paixão é comumente nele uma ação; de modo que não existe melhor caminho para chegar ao conhecimento de nossas paixões do que examinar a diferença que há entre a alma e o corpo, a fim de saber a qual dos dois se deve atribuir cada uma das funções existentes em nós.

Art. 3. Que regra se deve seguir para esse efeito. E nisso não se encontrará grande dificuldade, se se tomar em conta que tudo o que sentimos existir em nós, e que vemos existir também nos corpos inteiramente inanimados, só deve ser atribuído ao nosso corpo; e, ao contrário, que tudo o que existe em nós, e que não concebemos de modo algum como passível de pertencer a um corpo, deve ser atribuído a nossa alma (2).  (2). Lembrança do princípio da distinção das substâncias enunciado na Meditação Sexta.

Art. 4. Que o calor e o movimento dos membros, procedem do corpo, e os pensamentos, da alma. Assim, por não concebermos que o corpo pense de alguma forma, temos razão de crer que toda espécie de pensamento em nós existente pertence à alma; e, por não duvidarmos de que haja corpos inanimados que podem mover-se de tantas diversas maneiras que as nossas, ou mais do que elas, e que possuem, tanto ou mais calor (o que a experiência mostra na chama, que possui, ela só, muito mais calor e movimento do que qualquer de nossos membros), devemos crer que todo o calor e todos os movimentos em que não dependem do pensamento, pertencem apenas ao corpo.

Art. 5. Que é erro acreditar que a alma dá o movimento e o calor ao corpo. Por esse meio, evitaremos um erro considerável em que muitos caíram, de sorte que o reputo a principal causa que até agora impediu que se pudessem explicar bem as paixões e as outras coisas pertencentes à alma. Consiste em ter-se imaginado, vendo-se que todos os corpos mortos são privados de calor e depois de movimento, que era a ausência da alma que fazia cessar esses movimentos, e esse calor; e assim se julgou, sem razão, que o nosso calor natural e todos os movimentos de nossos corpos dependem da alma (3), ao passo que se devia pensar, ao contrário, que a alma só se ausenta, quando se morre, porque esse calor cessa, porque os órgãos que servem para mover o corpo se corrompem.  (3). A alma está implantada na máquina do corpo, mas não é seu princípio de formação nem conservação. Trata-se simplesmente de íntima associação da alma com o todo e as partes da máquina já feita (...). Assim a natureza física realizaria mecanicamente uma máquina muito complicada, com disposições tais que uma alma poderia de alguma forma calça-la, sem que tenha tido algo com a fabricação e a imbricação (telhas, tábuas, ardósias) de suas partes.

Art. 6. Que diferença há entre um corpo vivo e um corpo morto. A fim de evitarmos, portanto, esse erro, consideremos que a morte nunca sobrevém por culpa da alma, mas somente porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e julguemos que o corpo de um homem vivo difere de um morto como um relógio, ou outro autômato (isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o principio corporal dos movimentos para os quais foi instituído, com tudo o que se requer para a sua ação, difere do mesmo relógio, ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento para de agir (4).  (4). No caso do homem, a deterioração da máquina não conduz apenas à sua destruição, mas também à separação da alma e do corpo. A doutrina da união da alma e do corpo na separação exclui, assim, radicalmente todo animismo (ideologia ou crença de acordo com a qual todas as formas identificáveis da natureza: animais, pessoas, plantas, fenômenos naturais, etc, possuem almas)  ou vitalismo (doutrina biológica que admite um princípio vital, distinto a um só tempo da alma e do organismo, fazendo dele dependerem as ações orgânicas). Abraço. Davi.

Art. 7. Breve explicação das partes do corpo e de algumas de suas funções. Para tornar isso mais inteligível, explicarei, em poucas palavras, a forma toda de que se compõe a máquina de nosso corpo (5). Não há quem já não saiba que existem em nós um coração, um cérebro, um estômago, músculos, nervos, artérias, veias e coisas semelhantes; sabe-se também que os alimentos ingeridos descem ao estômago e as tripas, de onde o seu suco, correndo para o fígado e para todas as veias, se mistura como o sangue que elas contém, aumentado, por esse meio, a sua quantidade (6). Aquele que ouviram falar, por pouco que seja, da medicina sabem, além disso, como se compõe o coração e como todo o sangue das veias pode facilmente correr da veia cava para seu lado direito, e daí passar ao pulmão pelo vaso que denominamos veia arteriosa, depois retornar do pulmão ao lado esquerdo do coração pelo vaso denominado artéria venosa (7), e, enfim, passar daí para a grande artéria, cujos ramos se espalham pelo corpo inteiro. E mesmo todos os que não foram cegados inteiramente pela autoridade dos antigos, e que quiseram abrir os olhos para examinar a opinião de Harvey no tocante à circulação do sangue (8), não duvidam de que todas as veias e artérias do corpo sejam como regatos por onde o sangue não para de correr muito rapidamente, começando seu curso na cavidade direita do coração pela veia arteriosa. Nessa veia os ramos se espalham por todo o pulmão e se juntam aos da artéria venosa, pelo qual ele passa do pulmão ao lado esquerdo do coração. depois segue daí para a grande artéria, cujos ramos, esparsos pelo resto do corpo, se unem aos ramos da veia que levam de novo o mesmo sangue à cavidade direita do coração, de sorte que essas duas cavidades são como eclusas, através de cada uma das quais passa todo o sangue em cada volta que faz pelo corpo. Demais, sabe-se que todos os movimentos dos membros dependem dos músculos e que estes músculos se opõem uns aos outros, de tal modo que, quando um deles se encolhe, atrai para si a parte do corpo a que está ligado, o que provoca ao mesmo tempo o alongamento do músculo que lhe é oposto; depois, se acontece numa outra vez que este último se encolha, leva o primeiro a alongar-se e puxa para si a parte a que eles estão ligados. Enfim, sabe-se que todos esses movimentos dos músculos, assim como todos os sentidos, dependem dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que procedem, todos, do cérebro, e contêm, como ele, certo ar ou vento muito sutil que chamamos espíritos animais.  (5). Sendo possível e indispensável à inteligência das paixões a distinção entre as funções que dependem do corpo e as funções que dependem da alma. Descartes irá agora descrever sucessivamente as funções essenciais de um e de outro. Até o Art. 17, as funções do corpo. (6). Tratado do Homem, (páginas 808, 809), devido a fermentação que se produz no estômago, as partes mais sutis dos alimentos formam o quilo, que é levado para o fígado, onde sofre a ação da hematose. Este licor ai se sutiliza (...) adquire cor e toma a forma do sangue (...). Pra, este sangue, assim contido nas veias, só tem uma única passagem manifesta por onde possa sair delas, a saber, a que conduz a concavidade direita do coração. (7). Veia arteriosa; artéria pulmonar; artéria venosa; veia pulmonar. (8). Descartes recusava atribuir a ação do coração a uma contração muscular, mas aderia inteiramente à teoria circulatória de William Harvey (1578-1657). A opinião de Descartes sobre a circulação do sangue, relata Baillet, granjeara-lhe grande crédito entre os doutores e contribuíra maravilhosamente para restabelecer nesta matéria a reputação de Harvey, que se vira maltratada por diversos médicos dos Países Baixos (Holanda), a maioria dos quais ignorante ou obstinada em antigas máximas de suas faculdades. Abraço. Davi.

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