sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

FETICISMO

Psicanálise. Livro O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos. Escrito por Sigmund Freud (1856-1939). FETICHISMO. Nos últimos anos tive oportunidade de estudar analiticamente certo número de homens cuja escolha objetal era dominada por um fetiche (1). Não é preciso esperar que essas pessoas venham à análise por causa de seu fetiche, pois, embora sem dúvida ele seja reconhecido por seus adeptos com uma anormalidade. Raramente é sentido por eles como o sintoma de uma doença que se faça acompanhar por sofrimento. Geralmente, mostram-se inteiramente satisfeitos com ele, ou até mesmo louvam o modo pelo qual lhes facilita a vida erótica. Quase sempre, portanto, o fetiche aparece na análise como uma descoberta subsidiária. Por motivos evidentes, os pormenores desses casos não podem ser publicados, por conseguinte, mostrar de que maneira as circunstâncias acidentais contribuíram para a escolha de um fetiche. O caso mais extraordinário pareceu-me ser aquele em que um jovem alçou certo tipo de “brilho do nariz” a uma precondição fetichista. A explicação surpreendente para isso era a de que o paciente fora criado na Inglaterra, vindo posteriormente para a Alemanha, onde esquecera sua língua materna quase completamente. O fetiche originado de sua primeira infância, tinha de ser entendido em inglês, não em alemão. O “brilho do nariz” em alemão “Glanz auf der Nase” era na realidade um vislumbre – glance – do nariz. O nariz constituía assim o fetiche, que incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que não era perceptível a outros. Em todos os casos, o significado e o propósito do fetiche demonstraram, na análise, serem os mesmos. Ele se revelou de modo tão natural e me pareceu tão compelativo que me sinto preparado para esperar a mesma solução em todos os casos de fetichismo. Ao enunciar agora que o fetiche é um substituto para o pênis, decerto criarei um despontamento, de maneira que me apresso a acrescentar que não é um substituto para qualquer pênis ocasional. E sim para um pênis específico e muito especial, que foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido. Isso equivale a dizer que normalmente deveria ter sido abandonado, o fetiche, porém, se destina exatamente a preservá-lo da extinção. Para expressá-lo de modo mais simples, o fetiche é um substituto do pênis da mulher, mãe, em que o menininho outrora acreditou e que, por razões que nos são familiares, não deseja abandonar. O que sucedeu, portanto, foi que o menino se recusou a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem pênis. Não, isso não podia ser verdade, pois se uma mulher tinha sido castrada, então sua própria posse de um pênis estava em perigo. E contra isso ergueu-se uma revolta a parte de seu narcisismo (2) que a natureza como precaução, vinculou a esse órgão específico. Na vida posterior, um homem adulto talvez possa experimentar um pânico semelhante. Quando se eleva o clamor de que o Trono e o Altar correm perigo e consequências ilógicas semelhantes decorrerão disso. Se não estou equivocado, Jules Laforgue (1860-1887), nesse caso, diria que o menino “deturpa” sua percepção da falta de pênis da mulher. Um termo técnico novo se justifica quando descreve um fato novo ou lhe dá ênfase. Nesse caso, não é assim. A mais antiga palavra da nova terminologia psicanalítica, “repressão” já se relaciona com esse processo patológico. Se quisermos diferenciar mais nitidamente a vicissitude da ideia como distinta daquela do afeto. E reservar a palavra “Verdrangung”, repressão, para o afeto. Então a palavra alemã correta para vicissitude da ideia seria “Verleugnung”, rejeição. Escotomizar parece-me inapropriada, por sugerir que a percepção é inteiramente apagada. De maneira que o resultado é o mesmo que sucede quando uma impressão visual incide sobre o ponto cego da retina. Na situação que estamos considerando, pelo contrário, vemos que a percepção continuou e que uma ação muito enérgica foi empreendida para manter a rejeição. Não é verdade que, depois que a criança fez sua observação da mulher, tenha conservado inalterada sua crença de que as mulheres possuem um falo (3). Reteve essa crença, mas também a abandonou. No conflito entre o peso da percepção desagradável e a força de seu contra desejo, chegou-se a um compromisso, tal como só é possível sob o domínio das leis inconscientes do pensamento – os processos primários. Sim, em sua mente a mulher teve um pênis, a despeito de tudo, mas esse pênis não é mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar, foi indicada como seu substituto, por assim dizer, e herda agora o interesse anteriormente dirigido a seu predecessor. Mas esse interesse sofre também um aumento extraordinário, pois o horror da castração ergue um monumento a si próprio na criação desse substituto. Ademais, uma aversão, que nunca se acha ausente em fetichista algum, aos órgãos genitais reais, permanece um estigma indelével da repressão que se efetuou. Podemos perceber agora aquilo que o fetiche consegue e aquilo que o mantem. Permanece um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela. Também salva o fetichista de se tornar homossexual, dotando as mulheres da característica que as torna toleráveis como objetos sexuais. Na vida posterior, o fetichista sente desfrutar de uma outra vantagem de seu substituto de um órgão genital. O significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de modo que não é retirado do fetichista. É facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação sexual ligada a ele. Aquilo pelo qual os ouros homens têm de implorar e se esforçar pode ser tido pelo fetichista sem qualquer dificuldade. Provavelmente a nenhum indivíduo humano do sexo masculino é poupado o susto da castração à vista de um órgão genital feminino. Porque algumas pessoas se tornam homossexuais em consequência dessa impressão, ao passo que outras a desviam pela criação de um fetiche, e a grande maioria a supera, francamente não somos capazes de explicar. É possível que, entre todos os fatores em ação, ainda não conhecemos os decisivos para os raros resultados patológicos. Temos de nos contentar se pudermos explicar o que aconteceu, e deixar atualmente de lado a tarefa de explicar por que algo não aconteceu. Esperar-se-ia que os órgãos ou objetos escolhidos como substitutos para o falo aumente da mulher fossem tais, que aparecessem como símbolos do pênis também sob outros aspectos. Isso pode acontecer com bastante frequência, mas certamente não constitui fator decisivo. Antes, parece que, quando o fetiche é instituído, ocorre certo processo que faz lembrar a interrupção da memória na amnésia traumática. Como nesse último caso, o interesse do indivíduo se interrompe a meio caminho, por assim dizer, é como se a última impressão antes da estranha e traumática fosse retida com fetiche. Assim, o pé ou o sapato devem sua preferência como fetiche, ou parte dela, à circunstância de o menino inquisitivo espiar os órgãos genitais da mãe a partir de baixo, das pernas para cima, peles e veludo. Como por longo tempo se suspeitou, constituem uma fixação da visão dos pelos púbicos, que deveria ter sido seguida pela ansiada visão do membro feminino. Peças de roupas interior, que tão frequentemente são escolhidas como fetiches, cristalizam o momento de se despir, o último momento em que a mulher ainda podia ser encarada como fálica. Não sustento, porém ser invariavelmente possível descobrir com certeza o modo como o fetichismo foi determinado. Uma investigação do fetichismo é calorosamente recomendada a quem quer que ainda duvide da existência do complexo de castração ou que ainda possa acreditar que o susto à vista do órgão genital feminino possua outro fundamento. Tal como, por exemplo, que ele derive de uma suposta rememoração do trauma do nascimento. Para mim, a explicação do fetichismo possui também outro aspecto de interesse teórico. Recentemente, seguindo linhas inteiramente especulativas, cheguei à proposição de que a diferença essencial entre a neurose (4) e a psicose (5) constituía em que, na primeira, o ego, a serviço da realidade, reprime um fragmento do id, ao passo que, na psicose, ele se deixa induzir, pelo id (6), desligando de um fragmento da realidade. Retornarei a esse tema mais tarde. Logo depois, porém, tive motivo para lamentar ter-me aventurado tão longe. Na análise de dois jovens, aprendi que ambos, um quando tinha dois anos de idade, e o outro, quando contava dez, não haviam conseguido tomar conhecimento da morte do querido pai. Havia na suprimido, e, contudo, nenhum deles desenvolvera uma psicose. Desse modo, um fragmento de realidade, indubitavelmente importante, fora rejeitado pelo ego, tal como o fato desagradável da castração feminina é rejeitado pelo ego. Tal como o fato desagradável da castração feminina é rejeitado nos fetichistas. Também comecei a suspeitar que ocorrências semelhantes na infância de maneira alguma são raras, e acreditei ter sido culpado de um erro em minha caracterização da neurose e da psicose. É verdade que havia uma saída para a dificuldade. Minha fórmula precisava apenas ser válida onde houvesse um grau mais elevado de diferenciação no aparelho psíquico, seria permissível a uma criança coisas que acarretariam graves prejuízos a um adulto. Contudo, a pesquisa posterior conduziu-me a outra solução para a contradição. Tornou-se evidente que os dois jovens não haviam suprimido a morte dos pais mais do que um fetichista suprime a castração feminina. Fora apenas uma determinada corrente em sua vida mental que não reconhecera a morte daqueles. Havia uma corrente que se dava plena conta desse fato. A atitude que se ajustava ao desejo e a que se ajustava a realidade existiam lado a lado. Num de meus dois casos, a divisão constituirá a base de uma neurose obsessiva moderadamente grave. Em todas as situações da vida, o paciente oscilava entre duas presunções. Uma, de que o pai ainda estava vivo e atrapalhava suas atividades. Outra, oposta, de que tinha o direito de se considerar como sucessor do pai. Assim, posso ater-me a expectativa de que, numa psicose, uma daquelas correntes, a que se ajustava à realidade, esteja realmente ausente. Retornando a minha descrição do fetichismo, posso dizer que existem muitas provas adicionais e de peso quanto a atitude dividida dos fetichistas para com o tema da castração feminina. Em casos bastante sutis, tanto a rejeição quanto a afirmação da castração encontram caminho na construção do próprio fetiche. Assim ocorreu no caso de um homem cujo fetiche era um suporte atlético que também podia ser usado como calção de banho. Essa pela cobria inteiramente os órgãos genitais e ocultava a distinção entre eles. A análise mostrou que isso significava que as mulheres eram castradas e que não eram castradas, e isso também permitiu a hipótese de que os homens eram castrados. E isso também permitiu a hipótese de que os homens eram castrados, porque todas essas possibilidades podiam ser igualmente bem ocultas sob o suporte, cujo primeiro rudimento, em sua infância, fora a folha de parreira de uma estátua. Um fetiche desse tipo, duplamente derivado de ideias contrárias, é naturalmente, especialmente durável. Em outros casos, a atitude dividida se mostra naquilo que o fetichista faz com o fetiche, seja em realidade ou em sua imaginação. Assinalar que ele o reverencia não é tudo, em muitos casos, trata-o de maneira obviamente equivalente a uma representação da castração. Isso acontece com o pai e desempenha o pape deste último, pois foi a este que, em criança, atribuiu a castração da mulher. A afeição e a hostilidade no tratamento do fetiche, que correm paralelas com a rejeição e o reconhecimento da castração. Estão mescladas em proporções desiguais em casos diferentes, de maneira a que uma ou outra seja mais facilmente identificável. Parecemos aqui aproximar-nos de uma compreensão, ainda que remota, do comportamento do “coupeur de nattes” – cortador de tapetes. Nele a necessidade de executar a castração, que ele mesmo rejeita, veio para o primeiro plano. Sua ação contém em si própria as duas asserções mutuamente incompatíveis: “a mulher ainda tem um pênis” e “meu pai castrou a mulher”. Outra variante, que também constitui um paralelo ao fetichismo na psicologia social, poderia ser encontrada no costume chines de mutilar o pé feminino e, depois disso, reverenciá-lo como um fetiche. Parece algo como se o homem chines quisesse agradecer a mulher por se ter submetido a ser castrada. Em conclusão podemos dizer que, o protótipo normal dos fetiches é um pênis do homem, assim como o protótipo normal de órgãos inferiores é o pequeno pênis real de uma mulher, o clítoris.

 

Referências: www.psicanaliseclinica.com. (1) Fetiche. Adoração de um objeto ou parte do corpo específica. Quando se refere aos atos sexuais, entretanto, para alguns teóricos, esse conceito pode ser associado a uma prática religiosa, tendo como base o culto do objeto. (2) Narcisismo. Faz alusão a um mito. No mito grego, Narciso, apaixona-se por si mesmo, pelo reflexo de sua imagem nas águas de um rio. Morre afogado pelo amor desmedido por si próprio. Todos nós somos um pouco narcisistas e isso é importante, porque o ego precisa criar defesa ao organismo e a vida psíquica do ser. (3) Falo. O pênis, símbolo carregado de significado que permeia tanto a vida individual quanto a cultural. Símbolo de poder e autoridade. Permeia o desejo, sendo o epicentro das primeiras experiências na infância de prazer. Desejo, aqui, não se limitando a sexualidade, mas engloba a vontade de ser aceito, amado e valorizado. (4) Neurose. Num conceito geral ela pode ser considerada como uma doença psíquica. Fenômenos gerados por conflitos psíquicos envolvendo frustração de um impulso instintivo. Conforme a psicanálise também são resultados de nossas experiências sejam elas: vivenciais, traumas ou recalques. (5) Psicose. Principais características da psicose são perda de controle voluntário dos impulsos, pensamentos e emoções. Devemos salientar a incrível dificuldade que o psicótico tem em diferenciar fantasia da realidade. Para os pacientes ambas se confundem e dessa forma a realidade pode ser substituída por delírios e alucinações. Nessa patologia a capacidade de relacionamento social é muito afetada, o paciente não nota ou entende que tem algo de errado com ele e aceita seu estado psicótico de maneira tácita. (6) Id. Se trata de uma das três instâncias da mente, além de ego e superego, compondo o aparelho psíquico de cada ser humano. Dentre os diversos alcances, essa instância, Id, acaba ajudando a moldar nossa personalidade e o modo de agir. Em alemão é ES o termo a algo como “ele ou isso”. Aqui temos a instância que alimenta a libido, a nossa energia psíquica que direciona a vida e as realizações. Assim, constitui-se por meio de: instintos, pulsões, impulsos orgânicos e desejos inconscientes que nos ajudam a fazer ou ser. Livro Sigmund Freud – Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana. Abraço. Davi.

 

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