Religião Afro-brasileira. Candomblé. Livro O
Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz
(1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO I. Universidade de São Paulo – USP. Ao
longo de todo o litoral atlântico, desde as florestas da Amazônia até a própria
fronteira do Uruguai, é possível descobrir, no Brasil, sobrevivências
religiosas africanas. Mas a Bahia, com seus candomblés em que, nas noites
mornas dos trópicos, as filhas de santo dançam ao martelar surdo dos tambores,
permanece a cidade santa por excelência. Os candomblés pertencem a
"nações" diversas e perpetuam, portanto, tradições diferentes:
Angola, Congo, Gêge (isto é, Ewe), Nagô (têrmo com que os franceses designavam
todos os negros de fala yoruba, da Costa dos Escravos), Quê to (ou Ketu), Ijêxa
( ou Ijesha). É possível distinguir estas "nações" umas das outras
pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música,
pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes
das divindades, e enfim por certos traços do ritual. Todavia, a influência dos
Yoruba domina sem contestação o conjunto das seitas africanas, impondo seus
deuses, a estrutura de suas cerimônias e sua metafísica, a Dahomeanos, a
Bantos. Porém é evidente que os candomblés Nagô, Quêto e Ijêxa são os mais
puros de todos, e só eles serão estudados aqui. Por outro lado, ''nações"
yoruba são encontradas noutras regiões do Brasil: em São Luís do Maranhão, no
Recife, no Rio Grande do Sul. O grupo de São Luís, assaz isolado, sofreu a
influência da Casa das Minas, dahomeana, que é o grupo dominante da cidade.
Deixamo-lo, por essa razão, inteiramente de lado. No entanto, na medida em que
as informações do Recife ou do Rio Grande do Sul completam ou confirmam as
observações da Bahia, apelaremos algumas vezes para dados tomados aos Xangô do
Recife ou às "nações" Nagô e Oyo (está designada pelo próprio nome da
cidade Yoruba) de Porto Alegre. No Rio de Janeiro, as "nações" se
fundiram umas nas outras, deixando-se também penetrar profundamente por
influências exteriores, ameríndias, católicas, espíritas, dando nascimento a
uma religião essencialmente sincrética, a macumba. Porém, há alguns anos, no
começo do século XX, existia ali ainda uma religião nagô autônoma, da qual
temos algumas descrições, infelizmente assaz sumárias. Tais documentos só
apresentam hoje interesse histórico; todavia, não os poremos de lado. Que fique
bem claro, no entanto, que este estudo, mesmo levando em consideração por vezes
dados recolhidos por nós ou por outros pesquisadores em cidades diferentes,
fica centralizado unicamente em torno dos candomblés nagô, quêto ou ijêxa da
Bahia. Existiram outrora candomblés em pleno centro da cidade. Próximo à igreja
da Barroquinha em Salvador - BA, erguia-se nos fins do século XIX um santuário
africano. Na periferia da aglomeração urbana ainda hoje existem, no bairro
proletário da Liberdade, em meio às casas de operários, num emaranhamento de
ruelas, de muros, de pátios malcheirosos. Mas em geral se agrupam longe do
centro, nos valos umbrosos, suspensos aos flancos das colinas ou entre as dunas
marinhas, escondidos pelas árvores, pelos renques de bananeiras, abrigando-se
sob os coqueiros. Ao longo do Rio Vermelho, em Mata Escura, São Caetano, Cidade
da Palha, Língua de Vaca, Pedreiras, Fazenda Grande do Retiro, Fazenda Garcia.
Cercam a cidade com uma coroa mística, e a única solução de continuidade é
representada pela faixa móvel do oceano. O viajante que à noite erra nesses
subúrbios, onde as habitações vão se espaçando, como que se debulhando e
cedendo pouco a pouco diante da floresta. Ouve por vezes subir de trás das
frondes, do fundo das trevas, o martelar surdo dos tambores sagrados, enquanto
foguetes riscam os céus, desenhando neles novas estrelas. Cada foguete que sobe
é o sinal de que uma divindade veio da África possuir um de seus filhos na
terra do exílio. Cada estrela que repentinamente cintila acima das plantas em
germinação indica a quem passa que uma divindade "montou em seu
cavalo", fazendo-o reviravoltear em torno do poste central, mergulhando na
noite do êxtase. Pois estes deuses só podem viver na medida em que se
reencarnam no corpo dos fiéis. Eis porque o ponto central do culto público é a
crise de possessão. Constitui seu momento mais dramático e não é de espantar,
em tais condições, que a atenção dos pesquisadores se tenha concentrado, antes
de mais nada, em torno deste aspecto do candomblé. Tanto mais que a maior parte
dos africanistas era constituída de médicos. Veremos que, na realidade, a festa
pública não constitui senão pequena parte da vida do candomblé, que a religião
africana vai colorir e controlar toda a existência de seus adeptos, que o
ritual privado é mais importante do que o cerimonial público e que, na medida
em que o negro se sente africano, pertence a um mundo mental diferente.
Queremos descrever justamente este mundo das representações coletivas. Não
esquecer, porém, que a religião só conseguiu subsistir através das confrarias
dos "filhos" e "filhas" de santo (as filhas muitíssimo mais
numerosas do que os filhos), e que a função destes filhos e filhas é
reencarnar, no desenrolar das grandes festas públicas, os Orixás seus antepassados.
Começaremos, pois, nossa apresentação do candomblé pela descrição desta
cerimônia central. Cada uma destas festas, dedicada a uma divindade especial,
embora todos os Orixás durante ela se manifestem por meio de crises extáticas,
apresenta traços particulares. Contudo, podemos deixar por enquanto de lado
estes elementos de variação pois não perturbam a unidade das sequências
rituais. Enriquecem-nas somente; sobre a mesma talagarça, desenham o bordado
dos mitos africanos. Desde a madrugada, quando tem lugar o início da festa,
distinguiremos os momentos seguintes: 1. O sacrifício. Esta parte do ritual não
é propriamente secreta; porém, não se realiza em geral senão diante de um
número muito pequeno de pessoas, todas fazendo parte da seita. Teme-se sem
dúvida que a vista do sangue revigore entre os não-iniciados os estereótipos correntes
sobre a "barbárie" ou o "caráter supersticioso" da religião
africana. Uma pessoa especializada no sacrifício, o axôgun ou achôgun, que tem
essa função na hierarquia sacerdotal, é quem o realiza ou, na sua falta, o
babalorixá, sacerdote supremo. O objeto do sacrifício, que é sempre um animal,
muda conforme o deus ao qual é oferecido: trata-se, conforme a terminologia
tradicional, ora de um "animal de duas patas", ora de um "animal
de quatro patas", isto é, galinha, pombo, bode, carneiro etc. O sexo do
animal sacrificado deve ser o mesmo da divindade que recebe o sangue derramado;
e o modo de matar varia igualmente segundo os casos: corta-se a cabeça,
esquartejam-se os membros, sangra-se a carótida, dá-se um golpe na nuca. Varia
também o instrumento de execução, que algumas vezes deve ser uma "faca
virgem". Na realidade, não se trata de um único sacrifício, mas de dois;
pois qualquer que seja o deus adorado, Exú deve ser o primeiro servido, por
razões que veremos adiante. Há, pois, o primeiro sacrifício de um "animal
de duas patas" para Exú, e em segundo lugar, quando o permitem as finanças
da casa, de um "animal de quatro patas", para a divindade cuja festa
se está celebrando. 2. A oferenda. O animal sacrificado passa das mãos do
achôgun para as da cozinheira que vai preparar o alimento dos deuses. Moela,
fígado, coração, pés, asas, cabeça e, bem entendido, o sangue, pertencem de
direito aos deuses; mas o resto do animal não é atirado fora, é cozido e parte
dele será posta em travessas ou em pratinhos diante das pedras ou dos pedaços
de ferro pertencentes às divindades. Se duas galinhas são mortas, forçosamente
uma deve ser cozida e a outra assada. Mas a cozinheira, que se chama iya-bassê
ou abassá, e que naturalmente não deve nesse momento estar menstruada, não se
limita a preparar o animal sacrificado. Cozinha também tantos pratos quantos
forem os deuses chamados no decorrer da cerimônia, o amalá de Xangô, o xinxin
de galinha de Oxun, o arroz sem sal de Oxalá. Alimenta então sucessivamente as
diferentes pedras sagradas. O resto do alimento será consumido no fim da
cerimônia pelos fiéis, e até mesmo pelos simples visitantes. Foram estas
descendentes de africanas que mantiveram assim através do tempo a cozinha
religiosa africana, a qual, penetrando na cozinha profana, passou em seguida
dos santuários para as salas de jantar burguesas, constituindo uma das glórias
da Bahia. Arthur Ramos nota que não raro diz a negra ao oferecer tais manjares
suculentos, em que o ardume da pimenta se casa tão harmonioso com a doçura do
azeite de dendê: "Coma, meu santo”. 3. O pade de Exú. De manhã, consuma-se
o sacrifício; os preparativos culinários e a oferenda às divindades ocupam a
tarde; a cerimônia pública propriamente dita começa quando o sol se põe e se
prolonga por muito tempo noite adentro. Tem início obrigatoriamente com o padê
de Exú, do qual muitas vezes se dá uma interpretação falsa, particularmente nos
candomblés bantos: Exú é o diabo; poderá perturbar a cerimônia se não for
homenageado antes dos outros deuses, como aliás ele mesmo reclamou. Para que
não haja rixas, invasões da polícia (nas épocas em que há perseguições contra
os candomblés), é preciso pedir-lhe que se afaste. Daí o termo de despacho,
empregado algumas vezes em lugar de padê, despachar significando "mandar
alguém embora". Exú é, na verdade, o Mercúrio africano, o intermediário
necessário entre o homem e o sobrenatural. O intérprete que conhece ao mesmo
tempo a língua dos mortais e a dos Orixá. É, pois ele o encarregado - e o padê
não tem outra finalidade - de levar aos deuses da África o chamado de seus
filhos do Brasil. O padê é celebrado por duas das filhas de santo mais antigas
da seita, a dagã e a sidagã, ao som de cânticos em língua africana, cantados
sob a direção da iya têbêxê e sob o controle do babalorixá, diante de um copo
d'água e de um prato contendo o alimento de Exú. O copo e o prato serão depois
levados para fora da sala em que se desenrolará o conjunto da cerimônia, sendo
depositado numa encruzilhada que é dos lugares preferidos de Exú. A festa
propriamente dita pode então ter começo. Embora o padê se dirija antes de tudo
a Exú, comporta também obrigatoriamente uma oração para os mortos ou para os
antepassados do candomblé, alguns dentre eles sendo mesmo designados por seus
títulos sacerdotais. 4. O Chamado dos deuses. - Não é, todavia, Exú o único
intermediário entre os homens e os deuses. Os três tambores do candomblé também
o são: o rum, que é o maior; o rumpi, de tamanho médio, e o le, que é o menor.
Não são tambores comuns ou, como se diz ali, tambores "pagãos" foram
batizados na presença de padrinho e madrinha, foram aspergidos de água benta
trazida da igreja, receberam um nome, e o círio aceso diante deles consumiu-se
até o fim. E principalmente "comeram" e "comem" todos os
anos azeite de dendê, mel, água benta e o sangue de uma galinha (não se lhes
oferece nunca "animais de quatro patas"), cuja cabeça foi arrancada
pelo babalorixá em cima do corpo do instrumento inclinado. Livro O Candomblé da
Bahia – Rito Nagô. Abraço. Davi
Nenhum comentário:
Postar um comentário