Cristianismo.
Orígenes de Alexandria (185-254). De Principiis. Livro IV. PRÓLOGO. Todos os que creem e
estão certos de que a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo (João 1,
17) e que sabem Cristo ser a verdade, segundo o que Ele próprio disse: "Eu
sou a verdade", (João 14, 6) buscam a ciência que exorta os homens a viver
bem e bem-aventurada mente em nenhum outro lugar senão nas próprias palavras e
ensinamentos de Cristo. Dizemos, porém, serem palavras de Cristo não apenas
aquelas que Ele ensinou ao fazer-se homem e vivido na carne, pois, de fato,
Cristo, o Verbo de Deus, estava em Moisés e nos profetas. Pois, sem o Verbo de
Deus, como poderiam ter profetizado de Cristo? Se não fosse nossa intenção dar
a esta obra toda a brevidade que lhe seja possível, não seria difícil
demonstrar esta afirmação assinalando, nas Divinas Escrituras, como Moisés ou
os profetas falaram ou fizeram tudo o que fizeram cheios do Espírito de Cristo.
Julgo, para tanto ser suficiente utilizar apenas este testemunho de São Paulo,
tirado da epístola que ele escreveu aos Hebreus, em que ele diz: "Pela fé
Moisés, depois de grande, negou ser filho da filha de Faraó, escolhendo antes
ser afligido com o povo de Deus que gozar a delícia transitória do pecado,
considerando maior riqueza [os opróbrios] de Cristo que os tesouros dos
egípcios" (Hebreus. 11, 24-26). Paulo também nos indica que Cristo, depois
de sua ascensão aos céus, falou em seus apóstolos, quando nos diz:
"Porventura quereis pôr à prova Cristo, que fala em mim?" (II Coríntios
13, 3). 2. Entretanto, muitos daqueles que declaram crer em Cristo discordam
entre si não apenas em coisas pequenas e mínimas como também em grandes e
máximas. Discordam sobre Deus, sobre o Senhor Jesus Cristo e sobre o Espírito
Santo, e não só sobre estas coisas, como também sobre as demais criaturas, como
as santas dominações ou virtudes. Parece-nos necessário, portanto, estabelecer
primeiro uma linha certa e uma regra manifesta para que em seguida possamos
investigar também as demais coisas. Embora haja muitos entre gregos e bárbaros
que afirmem possuir a verdade, depois que acreditamos que Cristo é o Filho de
Deus, deixamos de procurá-la entre aqueles que a sustentam por meio de falsas
opiniões, por nos termos persuadido que é do próprio Cristo que a devemos
aprender. Já que muitos, porém, são os que consideram serem de Cristo e que,
apesar disto, entre eles mesmos há quem pense diversamente dos que os
antecederam, devemos observar a pregação da Igreja que nos foi transmitida pela
ordem de sucessão desde os Apóstolos e que nela permanece até hoje, somente
crendo naquela verdade que em nada discorde da tradição eclesiástica e
apostólica. 3. Importa também saber que os santos apóstolos, ao pregar a fé de
Cristo, creram que algumas coisas fossem necessárias para todos, mesmo para os
que parecessem os mais preguiçosos para com a investigação da ciência divina. A
estas quiseram transmitir de modo manifestíssimo, deixando, porém, as suas
razões à investigação daqueles que, pela sua excelência, tivessem merecido os
dons do Espírito, e principalmente aos que tivessem alcançado, pelo próprio
Espírito Santo, os dons da palavra, da sabedoria e da ciência. Quanto ao
demais, porém, mencionaram apenas a sua existência, silenciando sobre o seu
modo e sobre a sua origem, certamente para que os mais dedicados e amantes da
sabedoria, quaisquer que, entre os seus pósteros, estes viessem a ser, pudessem
ter um exercício no qual aplicassem o fruto de seu engenho, isto é, todos
aqueles que se preparassem para se tornarem dignos e capazes de acolherem a
sabedoria. 4. As coisas que nos foram transmitidas pela pregação apostólica de
modo manifesto são as seguintes. Primeiramente, que há um só Deus que tudo
criou e ordenou e que, quando nada existia, fez o Universo, Deus desde a
primeira criatura e fundação do mundo, Deus de todos os justos, de Adão, de
Abel, de Sete, de Enos, de Enoque, de Noé, de Sem, de Abraão, de Isaac, de
Jacó, dos doze patriarcas, de Moisés e dos profetas. E que este Deus, nos
últimos dias, assim como havia prometido anteriormente pelos seus profetas,
enviou Nosso Senhor Jesus Cristo, que primeiro haveria de chamar a Israel,
depois também os gentios, após a perfídia do povo de Israel. Este Deus, justo e
bom, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, foi quem nos deu a Lei e os Profetas e o
próprio Evangelho, o qual é também o Deus dos apóstolos, assim como do Velho e
do Novo Testamento. Em segundo lugar, que o próprio Jesus Cristo que veio (ao mundo)
foi gerado do Pai antes de toda a criatura. Ele mesmo, que serviu ao Pai na
criação de todas as coisas, e que por meio dele todas as coisas foram feitas,
humilhando-se a si mesmo nos últimos tempos, encarnou-se feito homem. Sendo
Deus, permaneceu sendo Deus ao fazer- se homem. Assumiu um corpo semelhante ao
nosso corpo, deste diferindo apenas por 4 ter nascido de uma virgem e pelo
Espírito Santo. E que este Jesus Cristo nasceu e padeceu de verdade, e não
sofreu a morte comum a todos apenas imaginariamente, mas morrendo
verdadeiramente. Verdadeiramente também ressuscitou dos mortos e, depois da
ressurreição, tendo convivido com os seus discípulos, subiu aos céus. Em
terceiro lugar, os apóstolos nos manifestaram o Espírito Santo, associado em honra
e dignidade ao Pai e ao Filho. Nisto, porém, já não se distingue manifestamente
se o Espírito Santo é gerado ou não gerado, ou se deve ser tido também ele
mesmo como Filho de Deus ou não. São estas coisas que devem ser investigadas
com o melhor de nossa capacidade através de uma cuidadosa busca a partir das
Sagradas Escrituras. Prega-se também manifestamente nas igrejas que este
Espírito inspirou cada um dos santos, dos profetas e dos apóstolos, e que não é
outro o Espírito pelo qual foram inspirados os antigos e aqueles que viveram no
tempo do advento de Cristo. Depois disto foi-nos transmitido também que a
alma, possuindo substância e vida própria, ao abandonar este mundo, será
remunerada de acordo com os seus merecimentos, havendo de fruir a herança da
vida eterna e da bem-aventurança, se a isto houver dirigido os seus atos, ou de
ser entregue ao fogo e suplício eternos, se a isto houver se curvado pela culpa
de seus crimes. Haverá também um tempo para a ressurreição dos mortos, quando
este corpo que agora "semeado na corrupção, ressuscitará na sem corrupção;
semeado na ignomínia, ressuscitará na glória". (I Coríntios 15, 42-43) Está
também definido na pregação da Igreja que toda alma racional possui vontade e
livre arbítrio, e que há também para ela uma luta a ser travada contra o
demônio e seus anjos e forças adversas, já que eles trabalham para onerá-la de
pecados, enquanto nós, se vivermos retamente e com conselho, devemo-nos
esforçar em nos despojarmos deste jugo. Deve-se entender, por conseguinte, que
ninguém de nós está submetido à necessidade, de tal modo que, ainda que não
queiramos, sejamos a qualquer custo obrigado a fazer coisas boas ou más. Se, de
fato, temos nosso livre arbítrio, talvez algumas forças possam impugnar-nos ao
pecado, assim como outras também poderão ajudar-nos à salvação; certamente,
porém, não seremos obrigados por necessidade a fazer o bem ou o mal, embora
seja isto que julguem que aconteça aqueles que dizem que o curso e o movimento
das estrelas seja a causa dos atos humanos, não apenas daqueles que ocorrem
além da liberdade do arbítrio, mas também daqueles submetidos ao nosso poder.
Se a alma, porém, é transmitida pelo sêmen, de tal modo que sua razão ou
substância esteja contida no próprio sêmen corporal, ou se tenha algum outro
início, e se este início é gerado ou não gerado, ou se é posto no corpo desde
fora ou não, nenhuma destas coisas é possível ser distinguida como
suficientemente manifesta pela pregação. Quanto ao demônio, seus anjos e forças
adversas, a pregação da Igreja ensina que realmente existem. O que porém eles
sejam, ou como sejam, não está claramente exposto. Muitos, porém, são de
opinião que o demônio havia sido um anjo o qual, tornando-se apóstata,
persuadiu uma multidão de anjos a caírem consigo, os quais agora são chamados
de seus anjos. Faz parte também da pregação da Igreja que este mundo foi
criado, que começou em um determinado tempo e que há de acabar pela sua própria
corrupção. O que havia, porém, antes que este mundo existisse, ou o que haverá
depois que este mundo já não existir, isto já não é tido por muitos como coisa
manifesta. Não há palavra evidente sobre estas coisas na pregação da Igreja. Finalmente,
também, que as Sagradas Escrituras foram escritas pelo Espírito de Deus e que
possuem um sentido que não é apenas o manifesto, mas também um outro oculto
para muitos. As coisas que foram escritas, de fato, são formas de certos
mistérios e imagens das coisas divinas. A este respeito há uma só sentença em
toda a Igreja, que toda a lei é espiritual e que as coisas que a lei
espiritualiza não são conhecidas por todos, mas apenas por aqueles aos quais a
graça do Espírito Santo é concedida na palavra de sabedoria e de ciência. A
palavra assomaton, isto é, `incorpóreo', é inusitada e desconhecida não somente
para muitos outros, como também para nossas Escrituras. Se alguém quiser
apontar no livro que se chama "A Doutrina de Pedro", onde o Salvador
parece dizer aos discípulos: "Não sou um demônio incorpóreo", devesse-lhe
responder, em primeiro lugar, que este livro não é tido como pertencente aos
livros da Igreja, e devesse-lhe mostrar que está escritura não é nem de Pedro
nem de qualquer outro que tivesse sido inspirado pelo Espírito de Deus. Mas,
ainda que isto concedêssemos, o sentido da palavra `incorpóreo' neste texto não
é o mesmo que se depreende dos escritos dos autores gregos e gentios, quando os
filósofos disputam sobre a natureza incorpórea. Neste livro fala-se de demônio
incorpóreo no sentido em que, qualquer que seja o hábito ou o invólucro do
corpo do demônio, ele certamente não é semelhante a este nosso corpo grosseiro
e visível. Devemos ler o que está dito segundo o sentido de quem compôs esta
escritura, que é se um corpo como o que possuem os demônios é naturalmente
sutil e como uma tênue aura, e por isso mesmo considerado ou dito incorpóreo
por muitos, ou se se trata de um corpo sólido e palpável. De fato, segundo o
costume dos homens, tudo o que for daquele modo é chamado pelos mais simples e
imperitos de incorpóreo, como quando dizem que este ar que respiramos é
incorpóreo, por não ser um corpo que possa ser apalpado e guardado, ou que
possa oferecer resistência a quem o empurre. Investigaremos, porém, se a
própria realidade que os filósofos gregos chamam de assomaton, isto é,
`incorpóreo', se encontra nas Sagradas Escrituras com outro nome. Deve-se
investigar, também, como o próprio Deus deve ser entendido, se corpóreo e
dotado de alguma forma, ou se possuidor de outra natureza que não a dos corpos,
o que também em nossa pregação não é manifestamente assinalado. O mesmo também
deve ser investigado de Cristo e do Espírito Santo, mas não de toda alma e de
toda criatura racional. Pertence também à pregação da Igreja a existência de
anjos de Deus e de boas forças que o auxiliam para a consumação da salvação dos
homens. Mas quando eles foram criados, ou quais e como são, não é assinalado de
modo completamente manifesto. Quanto ao sol, à lua e às estrelas, se são
animados ou destituídos de alma, não é transmitido manifestamente. Importa,
portanto, que use destas coisas como de elementos e fundamentos, segundo o
mandamento que diz "Iluminai-vos pela luz da ciência", (Oseias 10, 2)
todo aquele que deseje construir uma série e um corpo de razões de todas estas
coisas, para investigar por meio de afirmações manifestas e necessárias o que
haja de verdade em cada uma delas, e edificar um corpo de exemplos e afirmações
a partir do que tiver encontrado nas Sagradas Escrituras ou que tiver alcançado
em consequência de sua própria investigação e método correto. De Principiis.
Livro IV. PRÓLOGO. Abraço. Davi.
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