Cristianismo.
Orígenes de Alexandria (185-254). DE PRINCIPIIS – LIVRO IV – PARTE I. Para
tratar de tantas e tais coisas não basta confiar a sumidade deste assunto aos
sentidos humanos e à inteligência comum, discorrendo, por assim dizer,
visivelmente sobre as coisas invisíveis. Devemos tomar também, para a
demonstração das coisas de que falamos, os testemunhos das Divinas Escrituras.
No entanto, para que estes testemunhos possam oferecer-nos uma fé certa e
indubitável, tanto nas coisas que haveremos de dizer, como nas que já dissemos,
parece-nos ser necessário mostrar antes que as próprias Escrituras são divinas,
isto é, inspiradas pelo Espírito de Deus. Mostraremos, tão brevemente quanto
pudermos, o que as próprias Escrituras nos dizem a este respeito e que nos
possa mover competentemente. Falaremos, pois, de Moisés, o primeiro legislador
do povo hebreu, e das palavras de Jesus Cristo, autor e príncipe da religião e
do dogma dos cristãos. Entre gregos e bárbaros. de fato, existiram muitos
legisladores e inúmeros doutores e filósofos afirmando oferecer a verdade. Não
nos lembramos, porém, de nenhum legislador que tenha podido produzir tal afeto
e dedicação nas almas dos povos estrangeiros a tal ponto que estes aceitassem
livremente as suas leis ou com toda a alma defendessem as suas intenções.
Ninguém houve também que tenha podido sugerir ou dar a conhecer aquilo que lhe
pareceu ser a verdade, não digo a muitas nações estrangeiras, mas nem mesmo
sequer a um só povo, para que todos alcançassem a sua ciência ou a sua fé. E,
no entanto, não se pode duvidar que os legisladores gostariam que suas leis
fossem obedecidas por todos, se isto fosse possível, e que os mestres
apreciariam que aquilo que lhes pareceu ser a verdade fosse também conhecido
por todos. Sabendo, porém, que não seria de nenhum modo possível que neles
subsistisse tamanha virtude que fosse capaz de convidar as nações estrangeiras
à observância de suas leis ou de suas afirmações, nem sequer ousaram começar a
fazê-lo, para que não ficassem conhecidos como imprudentes por semelhantes
iniciativas ineficazes e inexecutáveis. São, no entanto, multidões inumeráveis,
em toda a face da terra, em toda a Grécia e em todas as demais nações
estrangeiras, aqueles que, abandonando as leis de sua pátria e aqueles que
consideravam deuses, se entregaram à observância da lei de Moisés e ao
discipulado e ao culto de Cristo, e isto não sem um grande ódio levantado contra
si por parte daqueles que veneram os simulacros, a ponto de serem
frequentemente atormentados por parte destes e algumas vezes inclusive
conduzidos à morte. Mesmo assim, abraçam e observam com todo o afeto a palavra
do ensinamento de Cristo. É verdadeiramente admirável como em tão breve tempo
está religião cresceu pelo sofrimento e pelo martírio de seus seguidores, pela
violência que lhes foi feita e pela paciência com que toleraram todo gênero de
suplícios. Mais admirável ainda é que seus doutores não são nem eruditos nem
numerosos e, no entanto, esta palavra é pregada em toda a terra, de modo que
gregos e bárbaros, sábios e ignorantes, recebem a doutrina cristã. Não há
dúvida de que isto não se realiza por força ou obra humana. A palavra de Cristo
Jesus se fortalece com toda a fé e poder junto a todas as mentes e junto a
todas as almas. Ademais, é manifesto que todas estas coisas foram preditas e
confirmadas por Ele, quando disse em seus divinos oráculos: "Por causa de
mim sereis conduzidos à presença de governadores e juízes, para dar testemunho
perante eles e perante as nações". (Mateus 10, 18) Também: "Este
evangelho será pregado em todas as nações". (Mateus 24, 14) E novamente:
"Muitos me dirão naquele dia: `Senhor, Senhor, porventura não foi em teu
nome que caminhamos e bebemos, e em teu nome que expulsamos demônios?' E eu
lhes direi: `Afastai-vos de mim, vós que operais a iniquidade, nunca vos
conheci". (Mateus 7, 22-23) Se todas estas coisas tivessem sido ditas por
Ele, mas sem que se tivesse realizado o que havia sido predito, pareceriam
talvez menos verdadeiras, embora tivessem mesmo assim alguma autoridade. Agora,
porém, preditas com tanto poder e autoridade e tendo chegado à sua realização,
fica manifestamente declarado ser verdade que Ele, ao fazer-se homem, veio
trazer aos homens os preceitos da salvação. E o que deveremos dizer sobre o
que, antes dEle, os profetas predisseram sobre Ele? Estava escrito que não
cessariam os príncipes de Judá, nem os soberanos de seu meio, até que chegasse
aquele a quem teria sido confiado o reino, e até que viesse a expectação dos
povos (Gênesis. 49, 10). Pelo que hoje pode observar-se, tudo isto é mais do
que manifesto pela própria história. Desde os tempos de Cristo não há mais reis
entre os judeus. Todas aquelas ambições judaicas nas quais tantos se jactavam e
se exaltavam, seja do decoro do Templo, seja dos famosos altares, de todos
aqueles aparatos sacerdotais e vestimentas pontifícias, tudo isto foi
destruído. Consumou-se assim a profecia que dizia: "Os filhos de Israel
ficarão durante muitos dias sem reis e sem príncipes, sem sacrifício e sem
altar, sem sacerdócio e sem respostas". (Oseias 3, 4) 10 Utilizamos estes
testemunhos para aqueles que, no que diz respeito às coisas que foram ditas no
Gênesis por Jacó ao falar de Judá (Gênesis. 49, 10), parecem afirmar que ainda
haveria um príncipe da descendência de Judá, que seria aquele que é o príncipe
de seu povo e ao qual chamam de Patriarca, os quais afirmam também que não
poderá faltar alguém que permaneça de sua descendência até o advento do Cristo,
conforme o descrevem para si mesmos. Mas se é verdadeiro o que diz o Profeta,
segundo quem "por muitos dias os filhos de Israel, permanecerão sem rei e
sem príncipe, nem haverá sacrifício, nem altar, nem sacerdócio", e se, de
fato, desde que foi destruído o Templo, não se oferecem mais sacrifícios, nem
se encontram altares, e se consta também não haver sacerdócio, é mais do que
certo que "faltam os príncipes de Judá", assim como estava escrito, "nem
há soberanos em seu meio, até que venha aquele a quem foi confiado o
reino". (Gênesis 49, 10) Consta, porém, que já veio Aquele a quem foi
confiado, Aquele em que reside a expectação das nações, e que tudo isto parece
manifestamente consumado pela multidão daqueles que, de diversas nações, por
meio de Cristo, creram em Deus. 4. Mas no Deuteronômio também nos é assinalado,
por meio de uma profecia, que pelos pecados do primeiro povo haveria a futura
eleição de um povo insensato, eleição esta que não é outra senão a que foi
realizada por Cristo. Assim, de fato, está escrito: "Eles provocaram-me
com o que não era Deus, e irritaram-me com os seus simulacros; e eu os
provocarei em meu zelo, e os irritarei com um povo insensato".
(Deuteronômio 32, 21) É bastante evidente que os hebreus, dos quais se diz
terem provocado a Deus com aqueles que não são deuses e terem-no irritado com
os seus simulacros, irritaram-se também eles em ciúmes por um povo insensato,
que Deus escolheu pelo advento de Jesus Cristo, e pelos seus discípulos. De
fato, assim diz o Apóstolo: "Vede a vossa vocação, irmãos, como entre vós
não há muitos sábios segundo a carne, nem muitos nobres, mas aqueles que são
estultos para o mundo, estes Deus escolheram, e os que não são, para destruir
os que eram primeiro". (I Coríntios 1, 27-28) Não se glorie, portanto, o
Israel carnal. Assim é, de fato, que este é chamado pelo Apóstolo, "para
que não se glorie a carne na presença de Deus". (I Coríntios 1, 29). O que
se deverá dizer, também, do que é profetizado de Cristo nos Salmos,
principalmente naquele que levou o título de `Cântico pelo Amado', onde se diz:
"Sua língua é como a pena de um escriba que escreve velozmente; ultrapassa
em formosura aos filhos dos homens, pois a graça derramou-se sobre os seus
lábios"? (Salmos 44, 2-3) O sinal da graça derramada em seus lábios é que,
passado tão breve tempo, pois ensinou Ele por apenas um ano e alguns poucos
meses, toda a terra encheu-se com a doutrina e a fé da sua piedade. Floresceu,
portanto, "em seus dias a justiça, e a abundância da paz", (Salmos
71, 7) que durará até o fim, fim este que no salmo é designado como "até
que a lua deixe de existir" (Salmos 71, 7). "E dominará de mar a mar,
e desde o rio até as extremidades da terra". (Salmos 71, 8) Foi dado
também este sinal à casa de Davi: "Uma virgem conceberá, e dará à luz a um
filho, cujo nome será Emmanuel, que quer dizer Deus conosco". (Isaías 7,
14) "Ajuntai-vos, povos, e sereis vencidos" (Isaías 8, 9). Fomos
vencidos e superados, nós que somos dos gentios, e somos como que despojos de
sua vitória, nós que dobramos nosso pescoço à sua graça. Mas também o lugar de
seu nascimento foi predito pelo profeta Miquéias, ao dizer: "E tu, Belém,
terra de Judá, não és a menor entre as cidades de Judá. De ti, de fato, sairá o
condutor que regerá o meu povo de Israel". (Miquéias 5, 2) Completaram-se
também as semanas de anos até o Cristo condutor que haviam sido preditas pelo
profeta Daniel. Está também presente aquele que em Jó é dito que haveria de
vencer a enorme besta, o qual também deu poder aos seus discípulos de
"calcar aos pés serpentes e escorpiões, e todo o poder do inimigo, sem que
nada lhes fizesse dano". (Lucas 10, 19) Se alguém considerar igualmente os
discursos dos apóstolos de Cristo, pelos quais estes pregaram o Evangelho de
Cristo por cada um dos lugares aos quais foram por Ele enviados, encontrará que
o que eles ousaram começar é algo sobre humano e o que eles puderam realizar
provém de Deus. Se considerarmos como os homens os receberam, ao ouvirem que
eles lhes anunciavam uma nova doutrina; ou melhor, como frequentemente os
homens, querendo fazer-lhes o mal, foram impedidos 12 por uma força divina que
neles havia, veremos que nada nesta causa foi realizado por forças humanas, mas
tudo pelo poder e pela providência divina, o que sem dúvida, por sinais e
portentos evidentes, testemunha em favor de sua palavra e de seus ensinamentos.
Demostradas previamente estas coisas, isto é, a deidade de Jesus Cristo e a
realização de todas as coisas que dele foram profetizadas, julgo que com isto
provamos também que as próprias Escrituras que sobre Ele profetizaram são
divinamente inspiradas. Elas predisseram o seu advento, o poder de sua doutrina
e a assunção de todos os povos. Devemos acrescentar também que é principalmente
pelo advento de Cristo ao mundo que se ilumina e prova-se que tanto os
vaticínios dos profetas como a Lei de Moisés são divinos e divinamente
inspirados. Antes que se tivessem realizado as coisas que haviam sido por eles
preditas por eles, embora estes fossem verdadeiros e inspirados por Deus, não
podiam, todavia, ser mostrados como verdadeiros, pelo fato de que ainda não
podiam ser provados realizados. O advento de Cristo, porém, manifestou serem
verdadeiras e divinamente inspiradas as coisas que eles haviam dito, já que
antes era incerto se as coisas que haviam sido preditas seriam realizadas com
êxito. Mesmo assim, porém, se alguém considerar os escritos proféticos com toda
a aplicação e reverência de que são dignos, no próprio ato de lê-los e de
examiná-los diligentemente, reconhecerá certamente, tocado por alguma
inspiração divina em sua mente e em seus sentidos, que aquilo que lê não foi
dito humanamente, mas que é palavra de Deus. Sentirá por si mesmo que estes
livros foram escritos não por uma arte humana, nem por discurso de mortais, mas
pela excelência de uma arte divina. O esplendor do advento de Cristo,
iluminando pelo fulgor da verdade a lei de Moisés e retirando o véu que estava
sobreposto à sua letra, descobriu a todos os que creem Nele toda a multidão de
bens que o invólucro da palavra escondia. É algo verdadeiramente trabalhoso
enumerar cada uma das coisas que outrora foram ditas pelos profetas, e como e
quando cada uma se realizou, para que por elas vejamos confirmarem-se aqueles
que duvidam. Para quem queira conhecê-las mais diligentemente, será possível
reunir abundantemente estas provas dos próprios livros da verdade. Não se
admirem, porém, se perceberem que as coisas divinas são transmitidas ao homem
com alguma lentidão, quando aos que são menos eruditos nas 13 disciplinas
divinas não se lhes descobre imediatamente, logo na primeira leitura, o sentido
que está acima do homem. Tudo isto está tanto mais escondido quanto mais
incrédulo ou indigno for o homem. É coisa certa que tudo o que está ou se faz neste
mundo é dispensado pela providência divina. Algumas, porém, manifestam de modo
bastante evidente serem governadas pela providência, enquanto outras têm uma
explicação tão oculta e tão incompreensível que nelas a razão da divina
providência é-nos inteiramente oculta, e de tal modo que às vezes alguns nem
creem que pertençam à providência. A razão pela qual, por uma inefável arte, a
obra da divina providência é dispensada, permanece escondida; esta razão,
todavia, não está igualmente oculta para todos. Entre os homens ela é
considerada por uns menos, por outros mais, e é mais conhecida pelos que
habitam no céu do que por todos os homens que habitam na terra. A natureza dos
corpos é clara para nós de modo diverso pelo qual é a natureza das árvores, dos
animais e da alma. A maneira pela qual os diversos movimentos das mentes
racionais são atribuídos pela divina providência está mais escondida para os
homens do que para os anjos, embora também para eles julgo que não o esteja
pouco. No entanto, assim como a existência da divina providência não é refutada
por aqueles que estão certos de sua existência, mas que não podem compreender
sua obra e dispensação pelo engenho humano, assim também nem a inspiração
divina da Sagrada Escritura, que se estende através de todo o seu corpo, pode
ser considerada inexistente porque a enfermidade de nossa inteligência não é
capaz de investigar as sentenças ocultas e escondidas em cada singular palavra.
O tesouro da divina sabedoria está escondido nos recipientes mais vis e grosseiros
das palavras, como o próprio Apóstolo o afirma, dizendo: "Trazemos este
tesouro em vasos de barro". (II Coríntios 4, 7) Não misturando nenhum
ornamento da eloquência humana na verdade dos dogmas, mais, resplandece com
isto a virtude da potência divina. Se, de fato, nossos livros tivessem sido
escritos de modo que levassem os homens a crer seduzindo-os pela astúcia
filosófica ou pela arte retórica, sem dúvida a nossa fé seria considerada estar
fundamentada na arte das palavras ou na sabedoria humana e não no poder de
Deus. Agora, porém, é conhecido por todos que a palavra desta pregação foi
recebida por muitos em todo o mundo de tal modo que os que creram entenderam
que ela se fundamenta não em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas na
demonstração da força e do espírito. Pelo que, conduzidos por uma celeste
virtude, ou até mais do que celeste, à fé e à aceitação pela qual adoramos
nosso Deus como o único Criador de todas as coisas, procuremos agora
esforçar-nos para que, abandonando a palavra dos inícios de Cristo que são os
primeiros princípios da ciência, sejamos conduzidos à perfeição, para que
aquela sabedoria, que é transmitida aos perfeitos, também seja transmitida.
Assim, de fato, foi afirmado por aquele a quem foi confiada a 14 pregação desta
sabedoria: "No entanto, é da sabedoria que falamos entre os perfeitos, não
a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que serão
destruídos". (I Coríntios 2, 6) Ele nos mostra, com estas palavras, que
está nossa sabedoria nada tem em comum, no que nos diz respeito à beleza do
fraseado, com a sabedoria deste mundo. Esta sabedoria será inscrita mais clara
e perfeitamente em nossos corações se nos for manifestada segundo a revelação
do mistério que ficou oculto desde os tempos eternos, e que foi agora
manifestado pelos escritos proféticos e pelo advento do Senhor e Salvador nosso
Jesus Cristo, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém. DE
PRINCIPIIS. LIVRO IV – PARTE I. Abraço. Davi
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