www.correioweb.com.br. “O ATEISMO NÃO
DESUMANIZA NINGUÉM”, diz o padre católico Júlio Lancellotti (1948 - ). Entrevista dada ao
Correio Brasiliense em 26/09/2022. O sacerdote entende que, mais importante do que professar uma crença,
é desenvolver a humanidade. Há mais de 20 anos nas ruas de São Paulo - Brasil, para
ajudar os desamparados, o
coordenador da Pastoral do Povo da Rua, padre Júlio Lancellotti, está ciente de
que o combate à pobreza é uma luta que vai durar muito no Brasil. "Eu não
esperava chegar aos 73 anos e ver a gente voltar atrás em tanta coisa. Eu não
vou ver muitas das mudanças pelas quais eu luto, eu vou morrer antes, mas eu
luto." Na batalha em favor dos desfavorecidos, Lancellotti se inspira na
figura emblemática de Irmã Dulce (1914-1992), outra religiosa que entrou para a história
por causa da atenção aos mais pobres. Nesta entrevista ao Correio, o padre
Lancellotti afirma que, no Brasil de 2022, combater a miséria também significa
entrar em uma luta política. Crítico contumaz do atual governo, o religioso
lamenta a violência das fake news, que destrói reputações no mundo virtual e na
vida real. Lancellotti comenta, ainda, o debate sobre religião. Entende que,
mais importante do que professar uma crença, é desenvolver a humanidade.
"Falei muito na pandemia: a misericórdia, a compaixão e a solidariedade
não são dimensões religiosas, são dimensões humanas. O ateísmo não desumaniza
ninguém", considera. Como o senhor ver o aumento da pobreza em São Paulo?
O aumento da pobreza na cidade é evidente, segundo a prefeitura, a população de
rua aumentou em 53% (último ano), mas é possível que o aumento seja maior.
Enquanto a prefeitura fala em 32 mil pessoas, a Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), com outra metodologia fala em 42 mil. Aumentou também o que nós
chamamos de grupos familiares, com o aumento do número de mulheres e
consequentemente o aumento do número de crianças. Esse crescimento acelerado
vem desde 2016 e foi agravado pela pandemia. Quem são essas pessoas que estão nas
ruas? Tem muitos jovens que não encontram trabalho, que o próprio grupo
familiar não consegue mais manter e sobreviver com a presença deles. O número
de grupos familiares que têm o pai e a mãe que ficaram desempregados e a
inadimplência os joga para a rua, e aumenta o número de mulheres sozinhas com
crianças. São sintomas claros de uma sociedade que está doente, de uma necro
política, que dentro desse sistema neoliberal, escolheu aqueles que vão morrer,
os descartáveis, os sem possibilidade. Muitos acreditam que todos os que estão
nas ruas são dependentes químicos. O que o senhor diz a respeito dessas
acusações? Isso é uma ideia falsa. Nem toda pessoa em situação de rua é usuária
de drogas, e nem todos os usuários de droga são moradores de rua. Nos condomínios,
tem muitos usuários de drogas. Será que só se usa cocaína, heroína e maconha na
rua? Você acha? É um estereótipo pensar que quem está na rua são os bandidos e
quem não está na rua são os bonzinhos. Se você for procurar incidência de
utilização de drogas em universidades, é bem maior do que na rua. Você vai a
qualquer happy hour em qualquer sexta-feira em porta de universidade e está
todo mundo bebendo. O álcool não é uma droga também? E como a pastoral tem
atuado? Temos duas vertentes. Uma é a da convivência. Você não conhece se você
não convive, você não defende se você não convive, você não ama se você não
convive. E a outra é a vertente de luta de transformação política. Eu digo que
é uma síntese, com uma mão você parte o pão; com a outra você luta. Quantas
pessoas vocês atendem? O nosso café da manhã, diariamente, tem uma média de 700
pessoas. Esse número também vem aumentando. Ele flutua, tem muita gente que
chega na cidade, que sai da cidade, tem variação. Nos últimos anos, a situação
piorou? É evidente que piorou, está todo mundo vendo, o Brasil voltou para o
mapa da fome, 33 milhões de pessoas são privadas de alimentação, 60 milhões
estão no que o governo chama de insegurança alimentar. São números
astronômicos. Piorou devido ao modelo socioeconômico e político que nós temos.
Se você olhar neste governo, a baixa de investimento na área social é gritante.
O seu tom crítico ao atual governo tornou o senhor alvo dos apoiadores do
Presidente Bolsonaro. Recentemente o senhor venceu uma ação contra um empresário
bolsonarista. O que achou da decisão? Acho que é importante a gente saber que a
internet precisa ter limites éticos, que você não pode usar a presumida
liberdade de expressão para ofender e destruir os outros. Você pode pensar de
mim o que você quiser, mas nem tudo você pode falar. Você pode ter vontade de
matar alguém, mas você sabe que você não pode matar. Dentro do seu jornal você
também tem limites, você não pode escrever tudo que quer. A reparação foi
suficiente? Acho que não é a reparação em termos financeiros, não é isso que
mede, acho que o importante é começar a perceber que há limites. Como agora o
STF (Supremo Tribunal Federal) tem limitado questões de fake news na internet.
O senhor foi alvo de notícias falsas. O que tem a dizer sobre esses ataques?
Sempre é difícil. Tem um santo na igreja que se chama São Felipe Neri (1515-1595), e tinha
uma pessoa que ia confessar com ele e dizia que tinha falado contra fulano,
contra o beltrano, inventei isso, aquilo. São Felipe perguntou se ela estava
arrependida, e deu a penitência — vá até o topo da torre da igreja e depene uma
galinha. A pessoa perguntou: 'Só isso?' Ele disse: 'Não, depois vá juntar as
penas'. Experimente ir à torre mais alta, depenar a galinha lá de cima e depois
vai recolher. Não tem como. Assim é internet. Depois de uma mentira, não tem
como reparar. As mentiras da internet migram para o mundo real? Sim, em função
de fake news, em função do ódio, da polarização que a gente está vivendo. No
Brasil, chamam-se os outros de comunista, de herege. No Brasil nunca teve
comunismo. Qual o parâmetro que você tem para saber o que é o comunismo?. Mas
Cristo está presente no discurso político ... O que está presente é a
utilização do Cristo. Você tem de ter um critério histórico para saber qual é a
vida da pessoa. Por exemplo, dizer que Jesus compraria uma pistola: a partir de
onde você tira essa conclusão? Você tem de ter uma evidência histórica para
essa afirmação. Mas há trechos bíblicos sobre comprar espadas. Esse é um texto
do Evangelho e, como todo texto, precisa ser visto no contexto. O Saramago por
exemplo, é ateu do deus de Oliveira Salazar (1889-1970). O deus salazarista
feriu José Saramago (1922-2010) e fez ele ser ateu desse deus, assim como, na
Espanha, muitos foram ateus do deus do generalíssimo Franco (1892-1975), como
no Chile muito são ateus do deus de Augusto Pinochet (1915-2006). A religião
católica continua perdendo fieis? Será que continua? Nos último 20 a 30 anos
sim, mas pega os últimos dois anos, essas igrejas atingiram um platô. Nada na
vida apenas sobe, uma hora estabiliza e depois cai. O mundo era católico, hoje
não é mais. Hoje a religião que mais cresce é o Islamismo. Quando vier o Censo
brasileiro, vai se apresentar o crescimento dos chamados sem religião. A
Holanda era um país completamente católico; hoje muitas igrejas na Holanda são
livraria, são bares. Agora isso não quer dizer que eles são mais desumanos. Às
vezes as pessoas não são religiosas porque os religiosos são desumanos. Uma
forma de eu não aceitar aquilo, eu me torno antirreligioso. O mundo pode se
tornar ateu? Difícil dizer. O Islamismo cresce muito, e não é ateu, é
monoteísta. Mas a questão não é crescer ou não, a questão é a gente ser
autêntico com aquilo que a gente acredita. Só dizer 'Eu sou cristão', isso significa
o quê? Eu falei muito na pandemia: a misericórdia, a compaixão e a
solidariedade não são dimensões religiosas, são dimensões humanas. O ateísmo
não desumaniza ninguém. O importante é ser humano. Até teve uma pesquisa que
saiu há algum tempo, que diz que os ateus eram mais solidários. Eu recebo aqui
muita ajuda de pessoas que dizem não ter religião nenhuma. O que esperar do
próximo governo? Seja quem for o próximo governo, vai encontrar muitos
desafios: superar a fome, superar a miséria, tem de lutar pela diminuição da
desigualdade, pela superação da polarização, pela superação da violência. A
gente não tem de pensar que vamos ter solução com um ou com outro. Nenhum
governo será perfeito, e quem vier encontrará um orçamento já aprovado. Quem
entrar vai ter muita dificuldade. Como resolver a fome? Eu sugiro a instituição
da renda básica, a começar pelos que estão na linha da miséria. São necessárias
várias providências. Não existe receita mágica. É importante criar linhas de
apoio para a agricultura familiar de produção de alimentos, há diversas ações.
E é preciso se encontrar soluções regionais. E o auxílio Brasil? Não é
suficiente. Ele não pode durar até dezembro. E depois? Recebe R$ 600 até
dezembro, e em janeiro faz o quê? As pessoas que a Pastoral atende recebem o
auxílio? Muitos não recebem o auxílio porque não têm documentação, porque não
estão no cadastro único. O SUAS (Sistema Único de Assistência Social) foi
sucateado neste governo. Na pandemia, quando saiu o auxílio emergencial, a
resposta saía no smartphone. Como a população de rua vai ter smartphone com
internet, com 4G ou 5G? Aqui na paróquia, nós pedimos que um monte de gente
emprestasse seus números para receber o código das pessoas na rua. E
aconteceram coisas incríveis. Muitos, nós cadastramos e o benefício saiu em
seguida. Outros estavam desempregados, mas constavam como empregados no
Ministério do Trabalho por defasagem no cadastro. Muitos tinham passado pelo
sistema penitenciário, mas eram classificados como encarcerados porque os dados
estavam desatualizados. E como resolver isso? Alguns, não conseguimos resolver.
Tinha pessoas com certidão de nascimento no Maranhão, no Piauí. Tem muita gente
que perdeu tudo na água, na rua, no rapa da polícia. E para conseguir uma
certidão de nascimento em outro estado, é necessário mandar o envelope selado
para receber o documento. O governo poderia fazer algo? Nós fizemos várias
sugestões para a Caixa Econômica Federal (CEF), ela não aceitou nenhuma. Sugerimos
que uma autoridade pública atestasse a existência daquela pessoa, um delegado,
um padre, um assistente social. Mas, se você for procurar no interior do
Brasil, muita gente ficou sem o auxílio emergencial. Como solucionar o problema
da fome? Não existe uma solução imediata, mas uma luta histórica. Não fomos
dormir com tudo bem e acordamos com tudo mal. Nós não vamos sair desse buraco
de repente. Eu não esperava chegar aos 73 anos, e ver a gente voltar atrás em
tanta coisa. Eu não vou ver muitas das mudanças pela quais eu luto, eu vou
morrer antes, mas eu luto. Mas avançamos em alguma coisa? Acho que avançamos em
coisas tecnológicas, mas não na qualidade de vida do povo. A quantidade de
gente pobre é muito grande, muita gente na miséria, sem assistência médica, sem
garantia de vida. A gente, aqui no Brasil pelo menos, passa por um processo de
embrutecimento muito grande. www.correioweb.com.br.
Abraço. Davi
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