segunda-feira, 22 de agosto de 2022

SÔJÔ: ACEITAÇÃO DOS ASPECTOS DA VIDA HUMANA

 

Budismo. www.budismohoje.org.br. Texto de Chodo San. Monje na Daissen Ji. Escola Soto Zen. SÔJÔ: ACEITAÇÃO DOS ASPECTOS DA VIDA HUMANA. Em um programa de entrevistas é mostrada uma cena em que um motorista de ônibus havia encontrado um saco de dinheiro e procurou de todas as formas uma maneira de devolvê-lo ao dono. O entrevistador pergunta entusiasmado ao convidado: “Uma pessoa como está, com essa honestidade, não é certo que coisas boas lhe acontecerão, não é certo que quem faz o bem recebe o bem? ”. O convidado, meio constrangido, olhou para a plateia, pensou um pouco e disse: “Não, não é verdade. Coisas ruins podem acontecer a pessoas boas e coisas boas podem acontecer a pessoas ruins”. A resposta pareceu ter chocado tanto entrevistador quanto plateia, pois gostamos deste pensamento otimista e positivista de que “Quem faz o bem recebe o bem”. Lembro de um amigo que me contou sobre um parente seu, “Uma pessoa maravilhosa”, contou ele “Bom filho, bom amigo, sempre disponível para seus colegas de faculdade e trabalho, não fazia mal a uma mosca”. E este seu parente foi assassinado na saída de um bar em São Paulo por três homens, ele foi agredido violentamente e morreu no local. E esse meu amigo me perguntou “Por que uma pessoa tão boa teve uma morte tão violenta e assim tão novo?”. Afinal, para este meu amigo é certo que coisas boas acontecem para pessoas boas. Acontece que estamos num planeta tendo uma manifestação humana e como humanos estamos sujeitos às coisas dos humanos como violência, racismo, preconceito, homofobia, assaltos e guerras, além é claro de coisas do próprio planeta, como terremotos, tsunami, furacões, enchentes e sujeitos também a mordidas de cães raivosos, vírus ou bactérias. É impossível que aconteçam somente coisas boas o tempo todo ou que tenhamos somente bons pensamentos sempre, apesar de este ser o desejo da maioria das pessoas. Creio que foi Stephen Hawking que disse que “Os estudos e variantes matemáticas nos mostram que é muito difícil a convivência por longo tempo de seres sencientes e inteligentes sem que haja escassez de recursos ou conflitos e guerras, não importa que construamos uma nova sociedade em Marte”. Em outras palavras, podemos até ter lampejos de altruísmo e boa vontade, mas inerentemente somos seres belicosos, então, além de todas as variantes fenológicas ainda temos que lidar com nossa própria propensão à autodestruição, muito embora esse ponto de vista tenha bons argumentos para os dois lados, como do historiador Harari, autor de Sapiens – Uma Breve História da Humanidade que nos diz (não exatamente com estas palavras) que somos herdeiros dos maus, pois foi a partir da Revolução Cognitiva, algo que não ocorreu com outros humanos, que o Sapiens deu um salto na fabricação de armas, organização e aperfeiçoamento, no modo de cooperar entre si para caçar e guerrear, resultando na extinção de muitos animais e de outros humanos como o Homo Erectus e Homem de Neandertal. Já Rutger Breman, em seu livro Humanidade – Uma História Otimista do Homem, diz que o ser humano não é uma besta violenta e que “A crise não faz aflorar o pior dos indivíduos, e sim o seu melhor”. Hannah Arendt, uma filósofa alemã de origem judaica citada no livro de Rutger, acreditava que no fundo nossa necessidade por amor e amizade é maior que nossa propensão ao ódio e a violência. Algumas observações feitas nas armas de soldados mortos em vários conflitos armados mostram que a maioria deles morria sem ter disparado um único tiro ou outros que davam tiros a esmo, sem ter como alvo outro ser humano. Isto pode nos mostrar que não temos, no fundo, qualquer intenção de matar um semelhante, mesmo numa guerra. Costumo responder para quem me pergunta se está tudo bem que “Não, não está. Mas está tudo bem que não esteja tudo bem”, porque a vida é assim, coisas boas e não boas ocorrerão e ambas fazem parte disso que chamamos Vida. Existe uma ordem no caos e a entropia não deve ser compreendida como desorganização ou bagunça, muito pelo contrário, é a maneira de o universo se organizar. Neste sentido, não há nada fora do lugar no Cosmos, tudo que acontece, acontece porque tem que acontecer, porque existe uma causa pregressa. Temos que aprender a conviver com as adversidades e com as coisas que nos desagradam. Querer que o mundo se molde às nossas vontades é estar fadado à eterna tristeza, pois a Vida não dá a mínima para as nossas pequenas e insignificantes vidas, a Vida segue seu fluxo independente de quão mimados e egoístas sejamos, ou de o quanto tentemos controlá-la. Tenho por hábito preparar meu filho para minha morte, ou para a dele e falo frequentemente sobre isso com ele. Digo a ele que tenho menos tempo de vida do que já vivi e constantemente digo para ele atualizar a procuração que passei e lembro das senhas da internet e do banco e ouço dele sempre a mesma coisa “Imagina, pai. Tu és um cara forte, saudável, se alimenta bem, faz exercícios, vais viver muito tempo ainda” e digo a ele sempre a mesma coisa: sou humano e estou sujeito às coisas do humano. Isto não é ser pessimista, é ser realista e aceitar uma condição humana da morte certa que poderá acontecer a qualquer momento. Existe hoje em dia um excesso de positivismo em que uma das premissas é a ideia de que podemos ser felizes, ter boa qualidade de vida, saúde e vida longa se tivermos bons pensamentos para atrairmos coisas boas. Outro ponto deste positivismo exacerbado é a ditadura da felicidade e isto é tão sério que muitos profissionais de Recursos Humanos de empresas colocam o nível de felicidade como um pré-requisito para admissão e segundo Eva Illouz, professora de sociologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, “Muitos governos estão tentando substituir uma redistribuição justa de recursos pelo índice de felicidade”. Se nos apegarmos à definição de saúde da Organização Mundial de Saúde, na qual saúde não é simplesmente ausência de doença, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social, eu me pergunto quem é saudável no mundo contemporâneo? Seguindo o mesmo raciocínio, se a felicidade não é a simples satisfação dos meus desejos individuais e não depende somente de mim, mas é antes o resultado da boa condição social, cultural, política, econômica e de saúde não somente minha, mas de todos os seres, como posso me dizer uma pessoa feliz quando existe no mundo tanto sofrimento, violência, conflitos, guerras e fome? A tirania do pensamento positivo e da felicidade causa muitos danos, pois traz à tona uma confusão cada vez mais evidente: o que é saudável e o que é normalidade. O professor e pesquisador Edgar Cabanas da Universidade Camilo José Cela de Madri afirma que “O discurso dominante da felicidade diz que apenas pessoas felizes são indivíduos bem ajustados e funcionais, enquanto não ser ou não se sentir feliz é um sinal de desajuste pessoal e de saúde, mental e física, ruim”. Isto pode causar grande confusão, não somente para a sociedade em geral, mas também para os profissionais da área de saúde, pois muitas pessoas que se dizem felizes e postam fotos e mensagens felizes na internet, possuem sérios problemas de saúde mental e desajuste social. Assim como a infelicidade, o pensamento negativo tornou-se um estigma social e motivo de vergonha, pois ninguém quer ser taxado de infeliz e pessimista. A psiquiatra americana Anna Lembke, chefe da Stanford Addiction Medicine Dual Diagnosis Clinic, diz que “A ideia de que a vida deve ser uma grande festa e que devemos ser felizes o tempo todo é uma ilusão, mas que nossa cultura comprou. O resultado é que, quando não estamos felizes, pensamos que algo está errado conosco, que estamos doentes, azarados ou alguma combinação desse tipo. A verdade é que a vida é principalmente sobre estar descontente, e momentos de verdadeira felicidade são fugazes, muitas vezes espontâneos”. Madre Tereza de Calcutá dizia que o que mais desejava era pregar a palavra de Deus, porém ela entendia que muitas pessoas tinham outro tipo de fome que não A Palavra e que ela tinha que primeiro satisfazer esta necessidade. Creio que como budistas também devemos entender que ainda que o zazen seja nosso instrumento para o despertar e que o Dharma de Budha seja nosso caminho, existem pessoas, muitas pessoas, com sérias dificuldades para lidar com as questões do humano antes de se aventurar a sentar numa almofada e ouvir o mestre dizer “O ego é uma construção e tudo o que você entende que seja você não existe e não sobrevive à sua morte”. Olhar para a vida e seus revezes sem os filtros da ilusão pode ser muito doloroso e quase impossível para muitos de nós e fica ainda pior com a ditadura da felicidade e do positivismo a nos impor uma realidade utópica que só existe em capas de revista, redes sociais e nas agências de marketing. Texto de Chûdô san. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen. www.budismohoje.org.br. Abraço. Davi

 

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