quarta-feira, 17 de agosto de 2022

II.O CAMINHO DO BODHISSATVA

 

Budismo. Livro A Vida de Compaixão. Texto de Tenzin Gyatso (1935-  ), o Décimo Quarto Dalai Lama. II. O CAMINHO DO BODHISSATVA. Superando a raiva e o ódio. Falamos sobre a natureza enganadora e destrutiva das ilusões. O ódio e a raiva são os maiores obstáculos para um praticante do Bodhichita, o desejo altruísta de iluminação. Bodhisattvas nunca deveriam gerar ódio, mas, em vez disso, deveriam se opor a ele. Para isso, a prática da paciência, da tolerância, é crucial. Shantideva começa o sexto capítulo de seu texto, intitulado “A paciência”, explicando a seriedade do dano e do estrago causado pela raiva e pelo ódio: eles nos prejudicam agora e no futuro, e também nos prejudicam destruindo nossa coleção de méritos passado. Já que o praticante da paciência deve se opor ao ódio e derrotá-lo, Shantideva insiste na importância de primeiro identificar os fatores que causam a raiva e o ódio. Suas principais causas são a insatisfação e a infelicidade. Quando estamos infelizes e insatisfeitos, ficamos frustrados com facilidade e isso leva a sentimentos de ódio e raiva. Shantideva explica que é muito importante para aqueles dentre nós que treinam a paciência evitar o surgimento da infelicidade mental – o que é provável acontecer quando você sente que as pessoas de quem gosta estão ameaçadas, quando é acometido pela má sorte ou quanto outros impedem que você atinja seu objetivo. Seus sentimentos de insatisfação e infelicidade nessas horas são o combustível que alimenta o ódio e a raiva. Assim, desde o começo, é importante não permitir que essas circunstâncias perturbem sua paz de espírito. Ele assinala, usando todos os meios à nossa disposição, que deveríamos nos opor e eliminar a instalação do ódio, já que sua única função é nos prejudicar os outros. Esse é um conselho muito profundo. “Tendo encontrado seu combustível de insatisfação; em evitar aquilo que desejo, e em fazer aquilo que não quero. O ódio aumenta e depois me destrói”. Se a manutenção de um estado de espírito equilibrado e feliz mesmo diante da adversidade é um fator chave para prevenir o surgimento do ódio, ainda podemos nos perguntar como conseguir isso. Shantideva diz que, quando se está diante de circunstâncias adversas, sentir-se infeliz não tem utilidade para superar a situação indesejada. Isso não é apenas fútil, na verdade, servirá apenas para aumentar sua ansiedade e causar um estado de espírito desconfortável e insatisfeito. Você perde toda noção de calma e felicidade. A ansiedade e a infelicidade gradualmente o corroem por dentro e afetam seu sono, seu apetite e sua saúde também. Na verdade, se o dano inicial que você sofreu foi infligido por um inimigo, sua infelicidade mental pode até se tornar um motivo de deleite para essa pessoa. Portanto, é inútil se sentir infeliz e insatisfeito quando confrontado à circunstâncias adversas, bem como revidar contra quem lhe tenha feito mal. Em geral, existem dois tipos de ódio ou raiva resultantes da infelicidade e da insatisfação. Um primeiro tipo é quando alguém o prejudica, e como resultado disso você se sente infeliz e gera raiva. O outro é quando, embora ninguém o esteja prejudicando diretamente, ver o sucesso e a prosperidade de seus inimigos o faz sentir-se infeliz e gera raiva por causa disso. Da mesma maneira, geralmente existem dois tipos de danos causados por outras pessoas. Um primeiro tipo é o dano físico direto infligido por outras pessoas e experimentado conscientemente por você. O outro é o dano causado a seus bens materiais, à sua reputação, à sua amizade e assim por diante. Embora não sejam dirigidos a seu corpo, esses atos também são um tipo de dano. Digamos que alguém bata em você com uma vara e você sinta dor e fique com raiva. Você não fica com raiva da vara, fica? Qual é exatamente o alvo da sua raiva? Se a atitude apropriada fosse sentir raiva do fator que causou o ato de bater, então você não deveria ficar com raiva dessa pessoa, mas sim das emoções negativas que levaram essa pessoa a agir. Normalmente, no entanto, não fazemos essas distinções. Pelo contrário, consideramos a pessoa – o agente intermediário entre as emoções negativas e o ato – a única responsável e guardamos rancor em relação a ela, não em relação às dificuldades ou às ilusões. Também deveríamos ter consciência de que, já que possuímos um corpo físico que está sujeito a sentir dor quando atingido por uma vara, nosso próprio corpo contribui em parte para nossa experiência da dor. Por causa de nosso corpo e de sua natureza, algumas vezes experimentamos a dor física mesmo que nenhuma causa externa de dor esteja presente. Está claro que a experiência da dor ou do sofrimento ocorre como resultado de uma interação entre nosso corpo e vários fatores externos. Você também pode refletir sobre como, se a natureza essencial da pessoa que o está machucando é prejudicar os outros, é inútil ficar com raiva, já que não haveria nada que você ou essa pessoa pudessem fazer para mudar sua natureza essencial. Se a verdadeira natureza dessa pessoa fosse realmente causar danos, ela simplesmente seria incapaz de agir de outra maneira. Como afirmou Shantideva: “Mesmo que a natureza destes insensatos, consistisse em fazer mal aos outros. Ainda seria incorreto irritar-se com eles. Pois seria como culpar o fogo, cuja natureza é queimar”. Por outro lado, se prejudicar os outros não for a natureza essencial da pessoa, mas em vez disso seu caráter aparentemente prejudicial for meramente incidental e circunstancial, então ainda não há necessidade de sentir raiva dessa pessoa, já que o problema se deve inteiramente a determinadas condições e circunstâncias imediatas. Por exemplo, ela pode ter perdido a paciência e agido mal, mesmo que não tivesse realmente a intenção de machucar você. Também é possível pensa dessa maneira. Quando você sente raiva de outras pessoas que não lhe estão causando danos diretos, físicos, mas que percebe estarem impedindo que você alcance fama, posição, ganhos materiais e assim por diante, você deveria pensar da seguinte maneira: por que ficaria especialmente irritado ou zangado com relação a esse problema específico? Analise a natureza daquilo que não está conseguindo obter – e examine com cuidado seu benefício para você. Eles são realmente tão importantes? Você descobrirá que não. Já que é esse o caso, por que ficar com tanta raiva dessa pessoa? Pensar dessa maneira também é útil. Quando você ficar com raiva como resultado da infelicidade que sente ao ver o sucesso e a prosperidade de seus inimigos, deveria lembrar que o simples fato de sentir ódio, raiva ou infelicidade não vai afetar os bens materiais ou o sucesso dessa pessoa na vida. Portanto, mesmo desse ponto de vista, é bastante inútil. Além da prática da paciência, os praticantes que se inspiram no texto de Shantideva também buscam desenvolver o bodhichita – o desejo de alcançar a iluminação (nirvana) para o benefício de todos os seres sencientes – bem como a compaixão e o treinamento da mente. Se, apesar de sua prática, eles ainda se sentirem infelizes por causa do sucesso de seus inimigos na vida, deveriam lembrar que essa atitude é deveras inapropriada para um praticante da compaixão. Se essa atitude negativa persistir, o pensamento “Sou um praticante da compaixão; sou uma pessoa que vive segundo os preceitos do treinamento da mente” torna-se meras palavras desprovidas de significado. Em vez disso, um verdadeiro praticante do bodhichita deveira se regozijar pelo fato de outras pessoas terem conseguido alguma coisa sozinhas sem a ajuda de ninguém. Em vez de ficar infelizes e cheios de ódio, deveríamos nos regozijar com o sucesso dos outros. Se investigarmos a questão em um nível ainda mais profundo, descobriremos que, quando os inimigos nos prejudicam, podemos na verdade ser-lhes gratos. Tais situações são oportunidades raras de testar nossa própria prática da paciência. Trata-se de uma ocasião preciosa para praticar não apenas a paciência, mas também os outros ideais do Bodhisattva. O resultado é que temos a oportunidade de acumular mérito nessas situações e receber seus benefícios. O pobre inimigo, por sua vez, por causa da ação negativa de infligir dano a alguém em razão da raiva e do ódio, vai acabar tendo que encarar as consequências negativas de suas próprias ações. É quase como se aqueles que nos prejudicaram se sacrificassem em prol do nosso benefício. Já que o mérito acumulado graças à pratica da paciência só foi possível por causa da oportunidade que nosso inimigo nos proporcionou, estritamente falando deveríamos dedicar nosso mérito ao benefício desse inimigo. É por isso que o Guia Para o Modo de Vida do Bodhisattva fala em gentileza do inimigo. Embora possamos por um lado reconhecer a gentileza do inimigo, podemos, por outro, sentir que o inimigo não teve intenção de ser gentil conosco. Portanto, pensamos, não é necessário que lembremos de sua gentileza de modo algum. Se, para que respeitemos ou valorizemos alguma coisa, é preciso haver intenção consciente da parte do objeto, então esse argumento deveria se aplicar também a outros assuntos. Por exemplo, por si só, a verdadeira cessação do sofrimento e o verdadeiro caminho que leva à cessação – a terceira e a quarta nobres verdades – não têm intenção consciente de serem benéficos. No entanto, como budistas, ainda assim as respeitamos e as reverenciamos. Por quê? Nos trazem benefícios. Se os benefícios recebidos por nós justificam nossa reverência e respeito por essas duas verdades, apesar de elas não terem nenhuma intenção consciente, então esse mesmo raciocínio também deveria se aplicar ao inimigo. No entanto, você pode sentir que há uma diferença importante entre o inimigo e essas duas verdades da verdadeira cessação e do verdadeiro caminho. Ao contrário das duas verdades, o inimigo tem um propósito consciente de prejudicá-lo. Mas essa diferença também não é uma razão válida para não respeitar o inimigo. Na verdade, se ela tem algum efeito, é o de representar mais motivos para reverenciar e ser grato a seu inimigo. De fato, é esse fator especial que torna seu inimigo único. Se infligir dor física fosse suficiente para tornar alguém um inimigo, você deveria ter que considerar seu médico um inimigo, pois ele muitas vezes causa dor durante o tratamento. Agora, como praticante genuíno do Bodhichita, você deve desenvolver a paciência. E de modo a praticar com sinceridade e a desenvolver a paciência, precisa de alguém que o machuque intencionalmente. Assim, essas pessoas nos dão verdadeiras oportunidades de praticar essas coisas. Elas estão testando nossa força interior de uma maneira que nosso guru é incapaz de fazer. Nem mesmo o Budha tem tal potencial. Portanto, o inimigo é o único que nos dá essa oportunidade de ouro. Essa é uma conclusão notável, não? Pensando dessa maneira e usando essas razões, você acabará desenvolvendo um tipo de respeito extraordinário por seus inimigos. Essa é a principal mensagem de Shantideva no sexto capítulo. Quando tiver gerado respeito genuíno por seu inimigo, você poderá então remover com facilidade a maioria dos principais obstáculos para desenvolver o altruísmo infinito. Shantideva menciona que, assim como muitos Budhas nos ajudam a alcançar a iluminação, também existe uma contribuição equivalente dos seres senciente comuns. A iluminação só pode ser alcançada se nos apoiarmos em ambas: a gentileza dos seres senciente e a gentileza dos Budhas. Para aqueles dentre nós que alegam ser seguidores do Budha Sakyamuni e que reverenciam e respeitam os ideais do Bodisattva, Shantideva afirma que é incorreto ter rancor ou ódio em relação a nossos inimigos, quando todos os Budhas e Bodhisattvas levam todos os seres sencientes em seus corações. É claro que nossos inimigos estão incluídos no grupo de todos os seres senciente. Se sentirmos rancor para com aqueles que os Budhas e Budhisattvas levam junto ao coração, contradiremos os ideais e a experiência desses Budhas e Bodhissatvas, justamente os seres que estamos tentando imitar. Até mesmo em termos mundanos, quanto mais respeito e afeição sentirmos pelas pessoas, mais consideração terremos por elas. Tentamos evitar agir de maneiras que elas possam desaprovar, pensando que poderíamos ofendê-las. Tentamos levar em consideração as maneiras de pensar de nossos amigos, seus princípios e assim por diante. Se fizermos isso até mesmo para nossos amigos comuns, então, como praticantes dos ideais do Bodhisattva, deveremos demonstrar o mesmo apreço, senão um apreço ainda maior, pelos Budhas e Bodhissatvas, tentando não ter rancor ou sentimentos de ódio em relação a nossos inimigos. Shantideva conclui esse capítulo sobre paciência explicando os benefícios de sua prática. Em resumo, por meio de prática da paciência, você não apenas irá alcançar um estado de onisciência, mas experimentará seus benefícios práticos até mesmo em sua vida cotidiana. Será capaz de manter sua paz de espírito e de viver uma vida de alegria. Quando praticamos a paciência para superar o ódio e a raiva, é importante estar equipado com a força do esforço entusiasta. Deveríamos ter a habilidade de cultivar esse esforço. Shantideva explica que, assim como devemos prestar atenção ao executar uma tarefa mundana, como travar uma guerra, para infligir a maior destruição possível ao inimigo, ao mesmo tempo em que nos protegemos de seus danos, da mesma maneira, quando praticamos o esforça entusiasta, é importante alcançar o mais alto nível de sucesso ao mesmo tempo em que nos asseguramos de que essa ação não prejudica ou obstrui nossas outras práticas. Eu e outros: Trocando de lugar. No capítulo sobre meditação no Guia Para o Modo de Vida do Bodhissatva, encontramos uma explicação da meditação específica para cultivar a compaixão e o Bodhichita. A explicação segue um método chamado equalizar e trocar o si pelos outros. O equalizar e o trocar a si pelos outros significam desenvolver a atitude que entende que: “Assim como eu desejo a felicidade e desejo evitar o sofrimento; o mesmo se aplica a todos os outros seres vivos, que são infinitos como o espaço; eles também desejam não só a felicidade, como desejam evitar o sofrimento”. Assim como trabalhamos para nosso próprio benefício de modo a alcançar a felicidade e nos proteger do sofrimento, também deveríamos trabalhar pelo benefício dos outros, para ajuda-los a alcançar a felicidade e a libertação do sofrimento. Embora nosso corpo tenha diferentes partes, como a cabeça, os membros e assim por diante, no que diz respeito à necessidade de protegê-las não há diferença entre elas, pois são igualmente parte do mesmo corpo. Da mesma maneira, todos os seres sencientes têm essa tendência natural – desejam alcançar a felicidade e se libertar do sofrimento – e, no que diz respeito a essa inclinação natural, não há nenhuma diferença entre os seres sencientes. Consequentemente, não deveríamos fazer distinção entre nós mesmos e os outros quando trabalhamos, para alcançar a felicidade e superar o sofrimento. Deveríamos refletir e nos esforçar seriamente para eliminar nossa noção de que nós e os outros somos separados e distintos. Vimos que, até agora, no que diz respeito ao desejo de alcançar a felicidade e de evitar o sofrimento, não há nenhuma diferença. O mesmo, se aplica também ao nosso direito natural de sermos felizes; assim como temos o direito de gozar a felicidade e a liberdade sem sofrimento, todos os outros seres vivos têm o mesmo direito natural. Então, onde está a diferença? A diferença está no número de seres sencientes envolvidos. Quando falamos do nosso próprio bem-estar, estamos falando apenas do bem-estar do indivíduo, enquanto o bem-estar dos outros inclui o bem-estar de um número infinito de seres. Desse ponto de vista, podemos entender que o bem-estar dos outros é muito mais importante do que o nosso. Se o nosso próprio bem-estar e o dos outros não tivessem relação nenhuma e fossem independentes um do outro, poderíamos defender o fato de negligenciar o bem-estar dos outros. Mas esse não é o caso. Sempre estou relacionado aos outros e dependo muito deles, não importa qual seja o meu nível de desenvolvimento espiritual: enquanto eu não estiver iluminado, enquanto estiver no caminho e também uma vez que houver alcançado a iluminação. Se refletirmos dessa maneira, a importância de trabalhar em benefício dos outros se torna naturalmente aparente. Você também deveria examinar se, ao permanecer egoísta e autorreferente apesar dos pontos citados acima, ainda pode alcançar a felicidade e realizar seus desejos. Se for esse o caso, então a continuação de seus hábitos egoístas e autorreferente seria um procedimento razoável. Mas não é. A natureza de nossa existência é tal que devemos depender da cooperação e da gentileza dos outros para nossa sobrevivência. É possível observar o fato de que, quanto mais nos preocupamos sinceramente com o bem-estar dos outros e trabalhamos para o seus benefício, mais benefícios obtemos. Você pode ver esse fato por si mesmo. Por outro lado, quanto mais egoísta e autorreferente continuar a ser, mais sozinho e triste se tornará. Você também pode observar esse fato por si mesmo. Portanto, se realmente quiser trabalhar para seu próprio benefício e bem-estar, então é melhor levar em conta o bem-estar dos outros e considerar o bem-estar deles mais importante do que o seu próprio. Ao refletir sobre esses pontos, você sem dúvida será capaz de fortalecer cada vez mais sua atitude de valorização do bem-estar dos outros. Além disso, podemos complementar nossa prática da compaixão e do Bodhichita com meditações sobre os diversos valores da sabedoria. Por exemplo, podemos refletir sobre a natureza do Budha: o potencial de realizar a Bhudeidade  que existe dentro de nós e de todos os seres sencientes. Também podemos refletir sobre a natureza fundamental dos fenômenos, sobre sua natureza vazia, usando o raciocínio lógico para determinar o valor da realidade. Podemos imaginar que a cessação do sofrimento é possível porque a ignorância, que é sua principal causa, é por natureza fortuita e, assim, pode ser separada da natureza essencialmente pura de nossa mente. Ao pensar e meditar sobre os fatores da sabedoria e ao praticar a compaixão e o altruísmo de forma constante, com esforços deliberados, durante um longo período, você verá uma verdadeira mudança em sua mente. Livro A Vida de Compaixão. Abraço. Davi.

Nenhum comentário:

Postar um comentário