Budismo. Livro A
Vida de Compaixão. Texto de Tenzin Gyatso (1935- ), o Décimo Quarto
Dalai Lama. II. O CAMINHO DO BODHISSATVA. Superando a raiva e o ódio. Falamos
sobre a natureza enganadora e destrutiva das ilusões. O ódio e a raiva são os
maiores obstáculos para um praticante do Bodhichita, o desejo altruísta de
iluminação. Bodhisattvas nunca deveriam gerar ódio, mas, em vez disso, deveriam
se opor a ele. Para isso, a prática da paciência, da tolerância, é crucial.
Shantideva começa o sexto capítulo de seu texto, intitulado “A paciência”,
explicando a seriedade do dano e do estrago causado pela raiva e pelo ódio:
eles nos prejudicam agora e no futuro, e também nos prejudicam destruindo nossa
coleção de méritos passado. Já que o praticante da paciência deve se opor ao
ódio e derrotá-lo, Shantideva insiste na importância de primeiro identificar os
fatores que causam a raiva e o ódio. Suas principais causas são a insatisfação
e a infelicidade. Quando estamos infelizes e insatisfeitos, ficamos frustrados
com facilidade e isso leva a sentimentos de ódio e raiva. Shantideva explica
que é muito importante para aqueles dentre nós que treinam a paciência evitar o
surgimento da infelicidade mental – o que é provável acontecer quando você
sente que as pessoas de quem gosta estão ameaçadas, quando é acometido pela má
sorte ou quanto outros impedem que você atinja seu objetivo. Seus sentimentos
de insatisfação e infelicidade nessas horas são o combustível que alimenta o
ódio e a raiva. Assim, desde o começo, é importante não permitir que essas
circunstâncias perturbem sua paz de espírito. Ele assinala, usando todos os
meios à nossa disposição, que deveríamos nos opor e eliminar a instalação do
ódio, já que sua única função é nos prejudicar os outros. Esse é um conselho
muito profundo. “Tendo encontrado seu combustível de insatisfação; em evitar
aquilo que desejo, e em fazer aquilo que não quero. O ódio aumenta e depois me
destrói”. Se a manutenção de um estado de espírito equilibrado e feliz mesmo
diante da adversidade é um fator chave para prevenir o surgimento do ódio,
ainda podemos nos perguntar como conseguir isso. Shantideva diz que, quando se
está diante de circunstâncias adversas, sentir-se infeliz não tem utilidade
para superar a situação indesejada. Isso não é apenas fútil, na verdade,
servirá apenas para aumentar sua ansiedade e causar um estado de espírito
desconfortável e insatisfeito. Você perde toda noção de calma e felicidade. A
ansiedade e a infelicidade gradualmente o corroem por dentro e afetam seu sono,
seu apetite e sua saúde também. Na verdade, se o dano inicial que você sofreu
foi infligido por um inimigo, sua infelicidade mental pode até se tornar um
motivo de deleite para essa pessoa. Portanto, é inútil se sentir infeliz e
insatisfeito quando confrontado à circunstâncias adversas, bem como revidar
contra quem lhe tenha feito mal. Em geral, existem dois tipos de ódio ou raiva
resultantes da infelicidade e da insatisfação. Um primeiro tipo é quando alguém
o prejudica, e como resultado disso você se sente infeliz e gera raiva. O outro
é quando, embora ninguém o esteja prejudicando diretamente, ver o sucesso e a
prosperidade de seus inimigos o faz sentir-se infeliz e gera raiva por causa
disso. Da mesma maneira, geralmente existem dois tipos de danos causados por
outras pessoas. Um primeiro tipo é o dano físico direto infligido por outras
pessoas e experimentado conscientemente por você. O outro é o dano causado a
seus bens materiais, à sua reputação, à sua amizade e assim por diante. Embora
não sejam dirigidos a seu corpo, esses atos também são um tipo de dano. Digamos
que alguém bata em você com uma vara e você sinta dor e fique com raiva. Você
não fica com raiva da vara, fica? Qual é exatamente o alvo da sua raiva? Se a
atitude apropriada fosse sentir raiva do fator que causou o ato de bater, então
você não deveria ficar com raiva dessa pessoa, mas sim das emoções negativas
que levaram essa pessoa a agir. Normalmente, no entanto, não fazemos essas
distinções. Pelo contrário, consideramos a pessoa – o agente intermediário
entre as emoções negativas e o ato – a única responsável e guardamos rancor em
relação a ela, não em relação às dificuldades ou às ilusões. Também deveríamos
ter consciência de que, já que possuímos um corpo físico que está sujeito a
sentir dor quando atingido por uma vara, nosso próprio corpo contribui em parte
para nossa experiência da dor. Por causa de nosso corpo e de sua natureza,
algumas vezes experimentamos a dor física mesmo que nenhuma causa externa de
dor esteja presente. Está claro que a experiência da dor ou do sofrimento
ocorre como resultado de uma interação entre nosso corpo e vários fatores
externos. Você também pode refletir sobre como, se a natureza essencial da
pessoa que o está machucando é prejudicar os outros, é inútil ficar com raiva,
já que não haveria nada que você ou essa pessoa pudessem fazer para mudar sua
natureza essencial. Se a verdadeira natureza dessa pessoa fosse realmente
causar danos, ela simplesmente seria incapaz de agir de outra maneira. Como
afirmou Shantideva: “Mesmo que a natureza destes insensatos, consistisse em
fazer mal aos outros. Ainda seria incorreto irritar-se com eles. Pois seria
como culpar o fogo, cuja natureza é queimar”. Por outro lado, se prejudicar os
outros não for a natureza essencial da pessoa, mas em vez disso seu caráter
aparentemente prejudicial for meramente incidental e circunstancial, então
ainda não há necessidade de sentir raiva dessa pessoa, já que o problema se
deve inteiramente a determinadas condições e circunstâncias imediatas. Por
exemplo, ela pode ter perdido a paciência e agido mal, mesmo que não tivesse
realmente a intenção de machucar você. Também é possível pensa dessa maneira.
Quando você sente raiva de outras pessoas que não lhe estão causando danos
diretos, físicos, mas que percebe estarem impedindo que você alcance fama,
posição, ganhos materiais e assim por diante, você deveria pensar da seguinte
maneira: por que ficaria especialmente irritado ou zangado com relação a esse
problema específico? Analise a natureza daquilo que não está conseguindo obter
– e examine com cuidado seu benefício para você. Eles são realmente tão
importantes? Você descobrirá que não. Já que é esse o caso, por que ficar com
tanta raiva dessa pessoa? Pensar dessa maneira também é útil. Quando você ficar
com raiva como resultado da infelicidade que sente ao ver o sucesso e a
prosperidade de seus inimigos, deveria lembrar que o simples fato de sentir
ódio, raiva ou infelicidade não vai afetar os bens materiais ou o sucesso dessa
pessoa na vida. Portanto, mesmo desse ponto de vista, é bastante inútil. Além
da prática da paciência, os praticantes que se inspiram no texto de Shantideva
também buscam desenvolver o bodhichita – o desejo de alcançar a iluminação
(nirvana) para o benefício de todos os seres sencientes – bem como a compaixão
e o treinamento da mente. Se, apesar de sua prática, eles ainda se sentirem
infelizes por causa do sucesso de seus inimigos na vida, deveriam lembrar que
essa atitude é deveras inapropriada para um praticante da compaixão. Se essa
atitude negativa persistir, o pensamento “Sou um praticante da compaixão; sou
uma pessoa que vive segundo os preceitos do treinamento da mente” torna-se
meras palavras desprovidas de significado. Em vez disso, um verdadeiro
praticante do bodhichita deveira se regozijar pelo fato de outras pessoas terem
conseguido alguma coisa sozinhas sem a ajuda de ninguém. Em vez de ficar
infelizes e cheios de ódio, deveríamos nos regozijar com o sucesso dos outros.
Se investigarmos a questão em um nível ainda mais profundo, descobriremos que,
quando os inimigos nos prejudicam, podemos na verdade ser-lhes gratos. Tais
situações são oportunidades raras de testar nossa própria prática da paciência.
Trata-se de uma ocasião preciosa para praticar não apenas a paciência, mas
também os outros ideais do Bodhisattva. O resultado é que temos a oportunidade
de acumular mérito nessas situações e receber seus benefícios. O pobre inimigo,
por sua vez, por causa da ação negativa de infligir dano a alguém em razão da
raiva e do ódio, vai acabar tendo que encarar as consequências negativas
de suas próprias ações. É quase como se aqueles que nos prejudicaram se
sacrificassem em prol do nosso benefício. Já que o mérito acumulado graças à
pratica da paciência só foi possível por causa da oportunidade que nosso
inimigo nos proporcionou, estritamente falando deveríamos dedicar nosso mérito
ao benefício desse inimigo. É por isso que o Guia Para o Modo de Vida do
Bodhisattva fala em gentileza do inimigo. Embora possamos por um lado
reconhecer a gentileza do inimigo, podemos, por outro, sentir que o inimigo não
teve intenção de ser gentil conosco. Portanto, pensamos, não é necessário que
lembremos de sua gentileza de modo algum. Se, para que respeitemos ou
valorizemos alguma coisa, é preciso haver intenção consciente da parte do
objeto, então esse argumento deveria se aplicar também a outros assuntos. Por
exemplo, por si só, a verdadeira cessação do sofrimento e o verdadeiro caminho
que leva à cessação – a terceira e a quarta nobres verdades – não têm intenção
consciente de serem benéficos. No entanto, como budistas, ainda assim as
respeitamos e as reverenciamos. Por quê? Nos trazem benefícios. Se os
benefícios recebidos por nós justificam nossa reverência e respeito por essas
duas verdades, apesar de elas não terem nenhuma intenção consciente, então esse
mesmo raciocínio também deveria se aplicar ao inimigo. No entanto, você pode
sentir que há uma diferença importante entre o inimigo e essas duas verdades da
verdadeira cessação e do verdadeiro caminho. Ao contrário das duas verdades, o
inimigo tem um propósito consciente de prejudicá-lo. Mas essa diferença também
não é uma razão válida para não respeitar o inimigo. Na verdade, se ela tem
algum efeito, é o de representar mais motivos para reverenciar e ser grato a
seu inimigo. De fato, é esse fator especial que torna seu inimigo único. Se
infligir dor física fosse suficiente para tornar alguém um inimigo, você
deveria ter que considerar seu médico um inimigo, pois ele muitas vezes causa
dor durante o tratamento. Agora, como praticante genuíno do Bodhichita, você
deve desenvolver a paciência. E de modo a praticar com sinceridade e a
desenvolver a paciência, precisa de alguém que o machuque intencionalmente.
Assim, essas pessoas nos dão verdadeiras oportunidades de praticar essas
coisas. Elas estão testando nossa força interior de uma maneira que nosso guru
é incapaz de fazer. Nem mesmo o Budha tem tal potencial. Portanto, o inimigo é
o único que nos dá essa oportunidade de ouro. Essa é uma conclusão notável,
não? Pensando dessa maneira e usando essas razões, você acabará desenvolvendo
um tipo de respeito extraordinário por seus inimigos. Essa é a principal
mensagem de Shantideva no sexto capítulo. Quando tiver gerado respeito genuíno
por seu inimigo, você poderá então remover com facilidade a maioria dos principais
obstáculos para desenvolver o altruísmo infinito. Shantideva menciona que,
assim como muitos Budhas nos ajudam a alcançar a iluminação, também existe uma
contribuição equivalente dos seres senciente comuns. A iluminação só pode ser
alcançada se nos apoiarmos em ambas: a gentileza dos seres senciente e a
gentileza dos Budhas. Para aqueles dentre nós que alegam ser seguidores do
Budha Sakyamuni e que reverenciam e respeitam os ideais do Bodisattva,
Shantideva afirma que é incorreto ter rancor ou ódio em relação a nossos
inimigos, quando todos os Budhas e Bodhisattvas levam todos os seres sencientes
em seus corações. É claro que nossos inimigos estão incluídos no grupo de todos
os seres senciente. Se sentirmos rancor para com aqueles que os Budhas e
Budhisattvas levam junto ao coração, contradiremos os ideais e a experiência
desses Budhas e Bodhissatvas, justamente os seres que estamos tentando imitar.
Até mesmo em termos mundanos, quanto mais respeito e afeição sentirmos pelas
pessoas, mais consideração terremos por elas. Tentamos evitar agir de maneiras
que elas possam desaprovar, pensando que poderíamos ofendê-las. Tentamos levar
em consideração as maneiras de pensar de nossos amigos, seus princípios e assim
por diante. Se fizermos isso até mesmo para nossos amigos comuns, então, como
praticantes dos ideais do Bodhisattva, deveremos demonstrar o mesmo apreço,
senão um apreço ainda maior, pelos Budhas e Bodhissatvas, tentando não ter
rancor ou sentimentos de ódio em relação a nossos inimigos. Shantideva conclui
esse capítulo sobre paciência explicando os benefícios de sua prática. Em
resumo, por meio de prática da paciência, você não apenas irá alcançar um
estado de onisciência, mas experimentará seus benefícios práticos até mesmo em
sua vida cotidiana. Será capaz de manter sua paz de espírito e de viver uma
vida de alegria. Quando praticamos a paciência para superar o ódio e a raiva, é
importante estar equipado com a força do esforço entusiasta. Deveríamos ter a
habilidade de cultivar esse esforço. Shantideva explica que, assim como devemos
prestar atenção ao executar uma tarefa mundana, como travar uma guerra, para
infligir a maior destruição possível ao inimigo, ao mesmo tempo em que nos
protegemos de seus danos, da mesma maneira, quando praticamos o esforça entusiasta,
é importante alcançar o mais alto nível de sucesso ao mesmo tempo em que nos
asseguramos de que essa ação não prejudica ou obstrui nossas outras práticas. Eu
e outros: Trocando de lugar. No capítulo sobre meditação no Guia Para o Modo de
Vida do Bodhissatva, encontramos uma explicação da meditação específica para
cultivar a compaixão e o Bodhichita. A explicação segue um método chamado
equalizar e trocar o si pelos outros. O equalizar e o trocar a si pelos outros
significam desenvolver a atitude que entende que: “Assim como eu desejo a
felicidade e desejo evitar o sofrimento; o mesmo se aplica a todos os outros
seres vivos, que são infinitos como o espaço; eles também desejam não só a
felicidade, como desejam evitar o sofrimento”. Assim como trabalhamos para
nosso próprio benefício de modo a alcançar a felicidade e nos proteger do
sofrimento, também deveríamos trabalhar pelo benefício dos outros, para
ajuda-los a alcançar a felicidade e a libertação do sofrimento. Embora nosso
corpo tenha diferentes partes, como a cabeça, os membros e assim por diante, no
que diz respeito à necessidade de protegê-las não há diferença entre elas, pois
são igualmente parte do mesmo corpo. Da mesma maneira, todos os seres
sencientes têm essa tendência natural – desejam alcançar a felicidade e se
libertar do sofrimento – e, no que diz respeito a essa inclinação natural, não
há nenhuma diferença entre os seres sencientes. Consequentemente, não
deveríamos fazer distinção entre nós mesmos e os outros quando trabalhamos,
para alcançar a felicidade e superar o sofrimento. Deveríamos refletir e nos
esforçar seriamente para eliminar nossa noção de que nós e os outros somos
separados e distintos. Vimos que, até agora, no que diz respeito ao desejo de
alcançar a felicidade e de evitar o sofrimento, não há nenhuma diferença. O
mesmo, se aplica também ao nosso direito natural de sermos felizes; assim como
temos o direito de gozar a felicidade e a liberdade sem sofrimento, todos os
outros seres vivos têm o mesmo direito natural. Então, onde está a diferença? A
diferença está no número de seres sencientes envolvidos. Quando falamos do
nosso próprio bem-estar, estamos falando apenas do bem-estar do indivíduo,
enquanto o bem-estar dos outros inclui o bem-estar de um número infinito de seres.
Desse ponto de vista, podemos entender que o bem-estar dos outros é muito mais
importante do que o nosso. Se o nosso próprio bem-estar e o dos outros não
tivessem relação nenhuma e fossem independentes um do outro, poderíamos
defender o fato de negligenciar o bem-estar dos outros. Mas esse não é o caso.
Sempre estou relacionado aos outros e dependo muito deles, não importa qual
seja o meu nível de desenvolvimento espiritual: enquanto eu não estiver
iluminado, enquanto estiver no caminho e também uma vez que houver alcançado a
iluminação. Se refletirmos dessa maneira, a importância de trabalhar em
benefício dos outros se torna naturalmente aparente. Você também deveria
examinar se, ao permanecer egoísta e autorreferente apesar dos pontos citados
acima, ainda pode alcançar a felicidade e realizar seus desejos. Se for esse o
caso, então a continuação de seus hábitos egoístas e autorreferente seria um
procedimento razoável. Mas não é. A natureza de nossa existência é tal que
devemos depender da cooperação e da gentileza dos outros para nossa
sobrevivência. É possível observar o fato de que, quanto mais nos preocupamos
sinceramente com o bem-estar dos outros e trabalhamos para o seus benefício,
mais benefícios obtemos. Você pode ver esse fato por si mesmo. Por outro lado,
quanto mais egoísta e autorreferente continuar a ser, mais sozinho e triste se
tornará. Você também pode observar esse fato por si mesmo. Portanto, se
realmente quiser trabalhar para seu próprio benefício e bem-estar, então é
melhor levar em conta o bem-estar dos outros e considerar o bem-estar deles
mais importante do que o seu próprio. Ao refletir sobre esses pontos, você sem
dúvida será capaz de fortalecer cada vez mais sua atitude de valorização do
bem-estar dos outros. Além disso, podemos complementar nossa prática da
compaixão e do Bodhichita com meditações sobre os diversos valores da
sabedoria. Por exemplo, podemos refletir sobre a natureza do Budha: o potencial
de realizar a Bhudeidade que existe dentro de nós e de todos os
seres sencientes. Também podemos refletir sobre a natureza fundamental dos
fenômenos, sobre sua natureza vazia, usando o raciocínio lógico para determinar
o valor da realidade. Podemos imaginar que a cessação do sofrimento é possível
porque a ignorância, que é sua principal causa, é por natureza fortuita e,
assim, pode ser separada da natureza essencialmente pura de nossa mente. Ao
pensar e meditar sobre os fatores da sabedoria e ao praticar a compaixão e o
altruísmo de forma constante, com esforços deliberados, durante um longo
período, você verá uma verdadeira mudança em sua mente. Livro A Vida de
Compaixão. Abraço. Davi.
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