Espiritismo.
www.fetnet.org.br. Texto de Allan Kardec (1804-1869). Livro O Céu e o
Inferno. Primeira Parte. Capítulo 2. TEMOR DA MORTE. Causas do temor da morte.
Por que os espíritas não temem a morte Causas do temor da morte. O homem, seja
qual for a escala de sua posição social, desde selvagem tem o sentimento inato
do futuro; diz-lhe a intuição que a morte não é a última fase da existência e
que aqueles cuja perda lamentamos não estão irremissivelmente perdidos. A
crença da imortalidade é intuitiva e muito mais generalizada do que a do nada.
Entretanto, a maior parte dos que nela creem apresentam-se possuídos de grande
amor às coisas terrenas e temerosos da morte! Por quê? Este temor é um efeito
da sabedoria da Providência e uma consequência do instinto de conservação comum
a todos os viventes. Ele é necessário enquanto não se está suficientemente
esclarecido sobre as condições da vida futura, como contrapeso à tendência que,
sem esse freio, nos levaria a deixar prematuramente a vida e a negligenciar o
trabalho terreno que deve servir ao nosso próprio adiantamento. Assim é que,
nos povos primitivos, o futuro é uma vaga intuição, mais tarde tornada simples
esperança e, finalmente, uma certeza apenas atenuada por secreto apego à vida corporal.
À proporção que o homem compreende melhor a vida futura, o temor da morte
diminui; uma vez esclarecida a sua missão terrena, aguarda-lhe o fim calmo,
resignado e serenamente. A certeza da vida futura dá-lhe outro curso às ideias,
outro fito ao trabalho; antes dela nada que se não prenda ao presente; depois
dela tudo pelo futuro sem desprezo do presente, porque sabe que aquele depende
da boa ou da má direção deste. A certeza de reencontrar seus amigos depois da
morte, de reatar as relações que tivera na Terra, de não perder um só fruto do
seu trabalho, de engrandecer-se incessantemente em inteligência, perfeição,
dá-lhe paciência para esperar e coragem para suportar as fadigas transitórias
da vida terrestre. A solidariedade entre vivos e mortos faz-lhe compreender a
que deve existir na Terra, onde a fraternidade e a caridade têm desde então um
fim e uma razão de ser, no presente como no futuro. Para libertar-se do temor
da morte é mister poder encará-la sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto é,
ter penetrado pelo pensamento no mundo espiritual, fazendo dele uma ideia tão
exata quanto possível, o que denota da parte do Espírito encarnado um tal ou
qual desenvolvimento e aptidão para desprender-se da matéria. No Espírito
atrasado a vida material prevalece sobre a espiritual. Apegando-se às
aparências, o homem não distingue a vida além do corpo, esteja embora na alma a
vida real; aniquilado aquele, tudo se lhe afigura perdido, desesperador. Se, ao
contrário, concentrarmos o pensamento, não no corpo, mas na alma, fonte da
vida, ser real a tudo sobrevivente, lastimaremos menos a perda do corpo, antes
fonte de misérias e dores. Para isso, porém, necessita o Espírito de uma força
só adquirível na madureza. O temor da morte decorre, portanto, da noção insuficiente
da vida futura, embora denote também a necessidade de viver e o receio da
destruição total; igualmente o estimula secreto anseio pela sobrevivência da
alma, velado ainda pela incerteza. Esse temor decresce, à proporção que a
certeza aumenta, e desaparece quando esta é completa. Eis aí o lado
providencial da questão. Ao homem não suficientemente esclarecido, cuja razão
mal pudesse suportar a perspectiva muito positiva e sedutora de um futuro
melhor, prudente seria não o deslumbrar com tal ideia, desde que por ela
pudesse negligenciar o presente, necessário ao seu adiantamento material e
intelectual. Este estado de coisas é entretido e prolongado por causas
puramente humanas, que o progresso fará desaparecer. A primeira é a feição com
que se insinua a vida futura, feição que poderia contentar as inteligências
pouco desenvolvidas, mas que não conseguiria satisfazer a razão esclarecida dos
pensadores refletidos. Assim, dizem estes: “Desde que nos apresentam como
verdades absolutas princípios contestados pela lógica e pelos dados positivos
da Ciência, é que eles não são verdades”. Assim, a incredulidade de uns e a
crença dúbia de um grande número. A vida futura é-lhes uma ideia vaga, antes
uma probabilidade do que certeza absoluta; acreditam, desejariam que assim
fosse, mas apesar disso exclamam: “Todavia se, assim não for! O presente é
positivo, ocupemo-nos dele primeiro, que o futuro por sua vez virá”. E depois,
acrescentam, definitivamente o que é a alma? Um ponto, um átomo, uma faísca,
uma chama? Como se sente, vê ou percebe? É que a alma não lhes parece uma
realidade efetiva, mas uma abstração. Os entes que lhes são caros, reduzidos ao
estado de átomos no seu modo de pensar, estão perdidos, e não têm mais a seus
olhos as qualidades pelas quais se lhes fizeram amados; não podem compreender o
amor de uma faísca nem o que a ela possamos ter. Quanto a si mesmos, ficam
mediocremente satisfeitos com a perspectiva de se transformarem em mônadas.
Justifica-se assim a preferência ao positivismo da vida terrestre, que algo
possui de mais substancial. É considerável o número dos dominados por este
pensamento. 6. Outra causa de apego às coisas terrenas, mesmo nos que mais
firmemente creem na vida futura, é a impressão do ensino que relativamente a
ela se lhes há dado desde a infância. Convenhamos que o quadro pela Religião
esboçado, sobre o assunto, é nada sedutor e ainda menos consolatório. De um
lado, contorções de condenados a expiarem em torturas e chamas eternas os erros
de uma vida efêmera e passageira. Os séculos sucedem-se aos séculos e não há
para tais desgraçados sequer o lenitivo de uma esperança e, o que mais atroz é,
não lhes aproveita o arrependimento. De outro lado, as almas combalidas e
aflitas do purgatório aguardam a sua libertação por meio da boa vontade dos
vivos que orarão ou farão orar por elas, sem nada fazerem de esforço próprio
para progredirem. Estas duas categorias compõem a maioria imensa da população
de além-túmulo. Acima delas, paira a limitada classe dos eleitos, gozando, por
toda a eternidade, da beatitude contemplativa. Esta inutilidade eterna,
preferível sem dúvida ao nada, não deixa de ser de uma fastidiosa monotonia. É
por isso que se vê, nas figuras que retratam os bem-aventurados, figuras
angélicas em que mais transparece o tédio que a verdadeira felicidade. Este
estado não satisfaz nem as aspirações nem a instintiva ideia de progresso,
única que se afigura compatível com a felicidade absoluta. Custa crer que, só
por haver recebido o batismo, o selvagem ignorante — de senso moral obtuso —,
esteja no mesmo nível do homem que atingiu, após longos anos de trabalho, o
mais alto grau de ciência e moralidade práticas. Menos concebível ainda é que a
criança falecida em tenra idade, antes de ter consciência de seus atos, goze
dos mesmos privilégios somente por força de uma cerimônia na qual a sua vontade
não teve parte alguma. Estes raciocínios não deixam de preocupar os mais
fervorosos crentes, por pouco que meditem. Não dependendo a felicidade futura
do trabalho progressivo na Terra, a facilidade com que se acredita adquirir
essa felicidade, por meio de algumas práticas exteriores, e a possibilidade até
de a comprar a dinheiro, sem regeneração de caráter e costumes, dão aos gozos
do mundo o melhor valor. Mais de um crente considera, em seu foro íntimo, que
assegurado o seu futuro pelo preenchimento de certas fórmulas ou por dádivas
póstumas, que de nada o privam, seria supérfluo impor-se sacrifícios ou
quaisquer incômodos por outrem, uma vez que se consegue a salvação trabalhando
cada qual por si. Seguramente, nem todos pensam assim, havendo mesmo muitas e
honrosas exceções; mas não se poderia contestar que assim pensa o maior número,
sobretudo das massas pouco esclarecidas, e que a ideia que fazem das condições
de felicidade no outro mundo não entretenha o apego aos bens deste, acoroçoando
o egoísmo. Acrescentemos ainda a circunstância de tudo nas usanças concorrer
para lamentar a perda da vida terrestre e temer a passagem da Terra ao Céu. A
morte é rodeada de cerimônias lúgubres, mais próprias a infundirem terror do
que a provocarem a esperança. Se descrevem a morte, é sempre com aspecto
repelente e nunca como sono de transição; todos os seus emblemas lembram a
destruição do corpo, mostrando-o hediondo e descarnado; nenhum simboliza a alma
desembaraçando-se radiosa dos grilhões terrestres. A partida para esse mundo
mais feliz só se faz acompanhar do lamento dos sobreviventes, como se imensa
desgraça atingira os que partem; dizem-lhes eternos adeuses como se jamais
devessem revê-los. Lastima-se por eles a perda dos gozos mundanos, como se não
fossem encontrar maiores gozos no além-túmulo. Que desgraça, dizem, morrer tão
jovem, rico e feliz, tendo a perspectiva de um futuro brilhante! A ideia de um
futuro melhor apenas toca de leve o pensamento, porque não tem nele raízes.
Tudo concorre, assim, para inspirar o terror da morte, em vez de infundir
esperança. Sem dúvida que muito tempo será preciso para o homem se desfazer
desses preconceitos, o que não quer dizer que isto não suceda, à medida que a
sua fé se for firmando, a ponto de conceber uma ideia mais sensata da vida
espiritual. Ademais, a crença vulgar coloca as almas em regiões apenas
acessíveis ao pensamento, onde se tornam de alguma sorte estranhas aos vivos; a
própria Igreja põe entre umas e outras uma barreira insuperável, declarando
rotas todas as relações e impossível qualquer comunicação. Se as almas estão no
inferno, perdida é toda a esperança de as rever, a menos que lá se vá ter
também; se estão entre os eleitos, vivem completamente absortas em
contemplativa beatitude. Tudo isso interpõe entre mortos e vivos uma distância
tal que faz supor eterna a separação, e é por isso que muitos preferem ter
junto de si, embora sofram, os entes caros, antes que vê-los partir, ainda
mesmo que para o Céu. E a alma que estiver no Céu será realmente feliz vendo,
por exemplo, arder eternamente seu filho, seu pai, sua mãe ou seus amigos? Por
que os espíritas não temem a morte 10. A Doutrina Espírita transforma
completamente a perspectiva do futuro. A vida futura deixa de ser uma hipótese
para ser realidade. O estado das almas depois da morte não é mais um sistema,
porém o resultado da observação. Ergueu-se o véu; o mundo espiritual
aparece-nos na plenitude de sua realidade prática; não foram os homens que o
descobriram pelo esforço de uma concepção engenhosa, são os próprios habitantes
desse mundo que nos vêm descrever a sua situação; aí os vemos em todos os graus
da escala espiritual, em todas as fases da felicidade e da desgraça,
assistindo, enfim, a todas as peripécias da vida de além-túmulo. Eis aí por que
os espíritas encaram a morte calmamente e se revestem de serenidade nos seus
últimos momentos sobre a Terra. Já não é só a esperança, mas a certeza que os
conforta; sabem que a vida futura é a continuação da vida terrena em melhores
condições e aguardam-na com a mesma confiança com que aguardariam o despontar
do Sol após uma noite de tempestade. Os motivos dessa confiança decorrem,
outrossim, dos fatos testemunhados e da concordância desses fatos com a lógica,
com a justiça e bondade de Deus, correspondendo às íntimas aspirações da
humanidade. Para os espíritas, a alma não é uma abstração; ela tem um corpo
etéreo que a define ao pensamento, o que muito é para fixar as ideias sobre a
sua individualidade, aptidões e percepções. A lembrança dos que nos são caros
repousa sobre alguma coisa de real. Não se nos apresentam mais como chamas
fugitivas que nada falam ao pensamento, porém sob uma forma concreta que antes
nos mostra como seres viventes. Além disso, em vez de perdidos nas profundezas
do Espaço, estão ao redor de nós; o mundo corporal e o mundo espiritual
identificam-se em perpétuas relações, assistindo-se mutuamente. Não mais
permissível sendo a dúvida sobre o futuro, desaparece o temor da morte;
encara-se a sua aproximação a sangue-frio, como quem aguarda a libertação pela
porta da vida, e não do nada. www.fetnet.org.br.
Abraço. Davi
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