Espiritualidade.
Texto de N. Sri Ram (1889-1973). Livro Em Busca da Sabedoria. Capítulo XV. O ELIXIR DA VIDA II. Eliphas Levi (1889-1973) fala da morte como “a transfiguração
dos vivos”. Ele parece querer dizer que se pode morrer enquanto se ainda vive,
que é essencialmente a mudança que a natureza efetua periodicamente com seu mecanismo,
mas que pode ser produzido definitivamente de modo livre e voluntário, através
da própria inteligência da pessoa, com total percepção daquilo que está se
realizando. A pessoa pode ser transfigurada enquanto ainda vive, como Jesus foi
transfigurado. Assim a vida na matéria, ou seja, sufocada pelo apego que toda a
matéria implica, pode ser transformada em vida em Espírito, ou vida em sua
própria liberdade, desabrochando para esplendores desconhecidos. Eliphas Levi
faz uma outra observação sobre a morte em seu estilo vivido e poético: “os
corpos mortos nada são senão as folhas mortas da árvore da vida que ainda terá
todas as suas folhas na primavera”. A vida em sua totalidade, bem como todos os
seres humanos, é uma árvore de vida e os corpos mortos não são apenas físicos –
mesmo as células no corpo que morrem aos milhões, enquanto o corpo como um todo
está vivendo e pulsando, podem ser consideradas como aquelas folhas mortas. Mas
também astrais e mentais. Há referências nas primeiras obras da literatura
teosófica a “sombras” que nada são senão os remanescentes astrais da entidade
que teve sua passagem, reanimada ou por algum tipo de energia de pensamento ou
por alguma outra entidade que não sente qualquer repugnância por elas, mas é
capaz de utilizá-las. Exceto por determinados grupos de espiritualistas, e
talvez alguns ocultistas errantes, a atmosfera presente no mundo moderno não
favorece o interesse nesses fenômenos paranormais representados por
elementares, espectros, sombras e assim por diante, que no passado pareciam
estar mais envolvidos com seres humanos do que atualmente. Da mesma maneira com
que as folhas mortas caem da árvore, enquanto a árvore está viva, esses
remanescentes, corporificando as tendências Kama-manásicas da entidade que se
retrai, desligam-se em determinado estágio do seu progresso e via de regra
desintegram-se. A árvore terá folhas novas na primavera porque a própria vida é
eterna e imperecível. A árvore da vida que é cada ser humano cresce
periodicamente e depois morre até as suas raízes. A árvore continuará submetida
àquelas mudanças até que ela esteja totalmente transformada, tornando-se a
árvore da vida e sabedoria, nada haverá a abandonar; as folhas que constituem a
sua expressão serão sempre como as folhas na primavera, eternamente frescas,
sem conterem nenhum elemento que possa nelas causar decadência. Eliphas Levi
segue com a observação de que “a ressurreição dos homens assemelha eternamente
àquelas folhas”. Estar ressuscitado não significa renascer na matéria, porém
nascer no Espírito que é atemporal e, portanto, não à decadência. A energia
integrada na corrente individual da vida reascende para o Espírito quando deixa
de ser atraída na direção dos canais de matéria e da sensação. Na mitologia
indiana, na qual tantas verdades são indicadas de forma alegórica ou em
parábolas, métodos aliás muito usado nos primeiros tempos da humanidade, diz-se
que os Devas possuem três atributos. A palavra Deva, deve-se realçar aqui, é
usada para diferentes classes de entidades não físicas, variando desde
espíritos da natureza brincalhões que são como pequenas crianças, em uma
extremidade da escala, aos seres elevados, cujas natureza e atividades o homem
não pode conceber bem, na outra extremidade. No meio da escala há Devas que,
embora não possuindo corpos físicos, são humanos em sua natureza psíquica. O
mito refere-se ao aparecimento, em forma física, de tais Devas humanos. Pode-se
descobrir que são Devas, segundo se diz, através de três sinais. Os sinais
mencionados são todos físicos, mas podem ser interpretados como referindo-se ou
à natureza psíquica ou espiritual daqueles seres. Um dos sinais é que o Deva
nunca transpira, outro é que ele olha sem piscar os olhos e o terceiro é que
ele não forma sombra. Ele não transpira porque o seu corpo é apenas uma forma
materializada capaz de realizar aquilo que deseja e não um corpo organizado
como o nosso. Mas há o indício de que a maneira em que o Deva vive e age é
destituída de esforço. Quando não há esforço ou tensão ao fazer as coisas que
se deseja fazer, há sempre vitalidade e frescor. Sem dúvida haverá um dispêndio
de energia, mas poderá haver um influxo correspondente de vitalidade. A
condição de não piscar os olhos pode ser devida ao fato de que, sendo uma
criação artificial, o corpo não tem todos os processos fisiológicos detalhados;
mas também sugere uma tenção concentrada que surge sem esforço do interesse
naquilo que ele está observando ou fazendo. O Deva pode comungar, por assim
dizer, com tudo que atrai, sem qualquer vascilação ou desvio de atenção, sem
uma mente errante. Ele não faz sombra fisicamente, possivelmente porque sua
forma, que é ilusória, não é suficientemente densa. Metaforicamente poderia
significar que ele tem uma natureza translúcida e não opaca. As características
físicas mencionadas talvez sirvam para indicar o tipo de ser que ele é em sua
natureza espiritual. A sua qualidade inalterável surge do fluxo de vitalidade
que brota de dentro. Quando a fonte interna não estiver bloqueada ou impedida,
o fluxo que dela se origina tem as qualidades do frescor e claridade inerentes
às águas puras da vida. O homem ressuscitado, que é comparado às folhas na
primavera, deve ser presumido como tendo as qualidades espirituais mencionadas,
ou seja, ação destituída de esforços, estado desperto permanente (uma radiação
constante de consciência) e a pureza que toma a sua natureza translúcida. Jiddu
Krishnamurti (1895-1986) faz uma declaração, profundamente interessante quando
diz, ou parece dizer, que a morte, a vida e o amor são uma e a mesma coisa.
Expresso desta forma pode afigurar-se ininteligível para nós, mas a afirmação
pode referir-se a um estado de ser, de mente e coração, que possui a natureza
de todos os três – morrer a cada momento para cada partícula de acumulação que
compõe o passado, a florescência da vida que está sempre naquele momento que é
o presente, e o amor que também se manifesta naquele instante, como sendo algo
sempre novo, com uma qualidade que não está baseada no tempo. A vida e a morte
são como dois lados de uma moeda. São fenômenos semelhantes ao nascer e o pôr
do sol. O sol pode pôr-se em Madras, Índia, e ao mesmo tempo nascer em Chicago,
USA. Uma pessoa morre para este mundo, mas simultaneamente aparece em outra
parte. Tanto o nascer quanto o morrer são fenômenos ilusórios, causados pela
revolução da Terra ao redor do seu eixo e a inclinação do plano do nosso
horizonte em relação aos raios solares, enquanto o sol permanece fixo como o
centro do seu sistema. Se o sol representa Espírito ou vida em sua fonte, o
Espírito, nas palavras do Bhagavad Gita, não nasce e não morre; embora,
conforme expresso em uma das cartas dos Mahatmas, “Espírito na matéria é vida”.
A vida pode existir em várias formas e gradações. A retirada da vida do
envolvimento na matéria, que é uma morte, reintegra-a à sua condição original,
que é a ressurreição no Espírito ou liberdade. Esta retirada é um processo de
eliminar o passado como é refletido no presente, e ao mesmo tempo, a
recuperação da liberdade pela entidade que se permitiu, durante o período de
não percepção, ser aprisionada dentro de memórias e obsessões acumuladas
naquele passado. A dissolução deste acúmulo, camada por camada, é o “banho em
esquecimento” que reintegra a vida individual à sua condição original de
novidade e inocência. O que é eliminado naquele banho não é a sua própria
natureza, a qual quando se projeta evidencia seu brilho próprio como o ouro
puro do qual foi removida a escória, ou como as flores na primavera. Quando
tudo que foi acumulado no processo do tempo tiver desaparecido, manifesta-se
aquilo que eternamente é. A vida individualizada e a forma sempre caminham
juntas. Deve haver um tipo de vestidura para a manifestação da vida, não
necessariamente física. Sem alguma forma através da qual possa agir, a vida
pode existir apenas como potencialidade, que para nós é uma abstração.
Referindo-se ao Espírito, a carta do Mahatma anteriormente mencionada diz: “O
que é o Espírito, puro e impessoal, per se? Este Espírito é uma não entidade,
uma abstração pura, uma lacuna absoluta para os nossos sentidos, até mesmo para
o mais espiritualizado”. Visto que o Espírito em matéria é vida, na fonte ambos
são uma e a mesma coisa. A energia que chamamos vida, embora se espalhe no
espaço, pode estar contida em um ponto e aparentemente o faz no pralaya, a
noite de Brahma (a Divindade na sua primeira manifestação), de acordo com os
antigos livros hindus, quando tudo no universo retorna à sua fonte. Esta noite
segue-se em um ritmo cíclico ao dia de Brahma, o período ativo do universo,
chamado Manvantara. Diz-se que também existem pralayas menores, durante os
quais não o todo do universo, porém partes que constituem sistemas em si
desaparecem em um sono semelhante ou latência, como poderíamos chamar este
estado. Mas, somando-se a estes estados, existe também o conceito de Nitya
Pralaya, que pode ser traduzido por pralaya ou morte a cada momento. Isto pode
referir-se à morte por milhões de seres humanos, bem como a outras vidas que
acontecem a cada momento. Pode também referir-se àquele estado de mente e
coração em que há uma morte para toda experiência, seja marcada pelo prazer ou
pela dor, quando seria igualmente uma ressurreição, a cada momento. Tal morte é
um pôr do sol perpétuo da consciência individual para aquilo que constitui o
passado, constituindo simultaneamente um despertar para aquilo que é o
presente. A Morte e a Vida estão sempre interligadas. Ambas parecem estar
presentes nos mesmo lugares, como por exemplo, a vida no corpo como um todo e a
morte das células que constituem o corpo. A forma ou organização é um agregado
de partes e o ciclo vital do todo não coincide com o ciclo vital das partes.
Como foi dito em um livro notável intitulado O Sonho de Ravan, por um autor
anônimo que contribuiu com a obra em forma de folhetim para a revista da
Universidade de Dublin – Irlanda, em meados do século passado, toda a nossa
terra é um grande ossário quando se olha para o seu passado. Inumeráveis
espécies de vida têm morrido durante milhões de anos e a terra está coberta com
a poeira e os fragmentos dos seus corpos. Porém, em meio aos mortos há muito
tempo e aos que agora morrem, existe vida em toda a sua variedade e glória. A
nascente da vida que está por trás jamais cessa de pulsar, e as suas águas
brotam por cada poro possível. Embora o tempo seja todo-destrutivo, pode apenas
destruir as formas da matéria. Não pode tocar a vida ou o Espírito que, estando
sempre naquele momento ilusório que chamamos o presente, está sempre situado
fora das garras do tempo. Eliphas Levi continua a dizer que “formas perecíveis
são condicionadas por tipos imortais”. O uso da palavra “condicionado” aqui
significa que as formas perecíveis, isto é, cada coisa via, assume um estado,
que está sujeito à influência do tipo imortal, o arquétipo ou Ideia de Platão
(427 AC 328). Em Isis Sem Véu, Helena P. Blavatsky (1831-1891) afirma que “cada
mortal possui uma contraparte imortal, o seu arquétipo no céu”. Céu aqui
significa o céu das Ideias Divinas. Ela fala do ser humano mortal, enquanto que
as formas perecíveis de Eliphas Levi incluiriam tanto os animais quanto as
plantas. A forma perecível precisa ser considerada como uma aproximação, não
importando a que distância, de sua contraparte imortal, e tendo sutis fios de
conexão com ela. Blavatsky diz que está “indissoluvelmente unida àquele
arquétipo”, no caso do homem “unido pelo princípio intelectual espiritual nele
existente”. O princípio intelectual não e aquela mente que é influenciada por
vários tipos de desejo e sensação, mas é uma extensão pura do Espírito,
representando de fato o seu instrumento. Eliphas Levi parece querer dizer que
para tudo que é imperfeito e portanto perecível, existe em algum lugar um tipo
correspondente que é perfeito e imperecível. Esta forma perecível é uma
tentativa da natureza de modelar o padrão daquele tipo imortal. Assim ele diz:
“todos aqueles que viveram na Terra ali ainda vivem em novos exemplares de seus
tipos”. Todos os tipos de animais certa vez passaram pela superfície da Terra,
mas desde então desapareceram. As criaturas que agora vemos são os novos
exemplares. Em diferentes períodos de tempo existem formas e diferentes
estágios de evolução que exemplificam o mesmo tipo imortal. Não há sugestão de
reencarnação aqui: a referência é a tipos. Pode se chamar as formas perecíveis
aqui como sendo as sombras das formas perfeitas que estão em outro lugar. Em
outras palavras, existe uma sucessão de formas em evolução, cada qual melhor do
que a precedente e em algumas formas marcadamente diferentes, mas todas elas
refletem em diferentes graus ou formas o mesmo padrão ou tipo ideal. Eliphas
Levi, referindo-se às formas perecíveis, indica que conquanto possa haver morte
neste lado, existe algo imortal correspondente à forma mortal no outro. A morte
é a contraparte da imortalidade. Eiphas Levi também diz que “as almas que
ultrapassaram o seu tipo recebem em outro lugar uma nova forma baseada em um
tipo mais perfeito na medida em que ascendem na escada dos mundos”. Em outras
palavras, existe o tipo e existem as aproximações ao tipo. Quando a vida
inerente ou a alma desenvolveu-se além dos limites daquele tipo, ela recebe em
outro lugar esta nova forma de que ele fala. Pode ser que ele tenha ideia de
vida em outra esfera ou sistema. Se almas individuais alcançaram o cume que
pode ser atingido sob determinadas condições, deslocam-se para um conjunto
diferente de condições onde podem desenvolver-se ainda mais na direção de um
tipo superior, porque a capacidade destas almas é ilimitada e infinita. Depois
de referir-se a estes protótipos de todas as coisas existentes, ele fala da
alma do homem e diz: “as nossas almas são como se fossem a música da qual os
nossos corpos são os instrumentos, mas elas não podem fazer-se ouvir sem um
intermediário material” – que é precisamente a ideia expressa por Platão ao
abordar a natureza da alma. A música exerce efeitos diferentes sobre o homem e
difere grandemente em qualidade. Pode tornar-se um mero jogo de ritmos, e pode
facilmente transformar-se na mais irreal das fantasias. De fato existem
composições musicais que são denominadas “fantasias”, isto é, a sua música é
similar a um sonho. Na constituição humana este tipo de ação e experiência está
relacionado com a psique, a alma semi material sutil, enquanto distinta da alma
espiritual que constitui uma expressão do Espírito. Todo sonho é essencialmente
uma projeção do eu psíquico. A alma espiritual, Buddhi, não sonha porque a
verdadeira natureza do Espírito deve estar desperta no sentido de sempre
perceber aquilo que está para ser percebido, aquilo que é. Quando aquela alma
não estiver desperta e ativa, ela pode retirar-se em um estado de pralaya, que,
em si, constitui um estado absoluto ou Samadhi, um termo hindu familiar, que é
identificado com demasiada frequência e, erroneamente, com total inconsciência.
O que o Espírito ou a alma espiritual percebe deve ser a verdade, porém a
verdade está dentro de si mesma e é infinita. A alma espiritual é uma
corporificação de quaisquer parcelas daquele verdade que foi capaz de atrair
para dentro de si. A ação da psique, bem como da individualidade espiritual do
homem, seus sonhos e realizações, pode ser representada em forma de música, mas
é preciso fazer uma ampla distinção entre a música que exerce um apelo a partes
da natureza psíquica, geralmente algo misto, e aquilo que representariam as
intuições ou entendimentos da alma espiritual. A qualidade da música diferiria
conforme o caso. A música pode induzir a diferentes humores e estados
emocionais, e isso foi reconhecido e estudado na música indiana. Os antigos
mestres da música gostavam de produzir música capaz de evocar uma atmosfera de
amor, de serenidade, de tristeza, de ação enérgica e assim por diante. Lord
Byron (1788-1824) escreveu um poema sobre Alexandre, O Grande, que ilustra os
notáveis contrastes que a música pode produzir no humor. Existe verdade ou
beleza de uma natureza impar em cada ser individual, mas ela está tão
profundamente soterrada nele que é difícil percebê-la. Esta beleza ou verdade
manifesta-se na alma espiritual e dela se reflete no caráter e na visão do
homem. Helena P. Blavatsky, ao traduzir Buddhi como a alma espiritual, deu-lhe
uma profundidade de significado que, muitas vezes, não se depreende no uso
comum do termo. Buddhi aparentemente possui diversos significados, como podem
dizer aqueles que observaram os diferentes contextos em que é usado no Bhagavad
Gita. A sua natureza modela a psique em conformidade consigo, que é parte do
processo segundo o qual toda a natureza do homem é posta em sintonia com o ser
arquétipo. A psique torna-se, então, uma versão ampliada do espiritual, uma
versão em um idioma diferente, com notas diferentes, talvez com mais
sofisticação, com mais detalhes, ilustrando as qualidades espirituais, porém
necessariamente com menos profundidade, menos alcance e penetração interiores,
e menos dos indícios desconhecidos que sempre residem em cada partícula da
natureza do Espírito. A natureza psíquica é transformada ou transfigurada, ao
passo que a alma espiritual meramente se expande e é uma expansão daquilo que
nela já está presente. O processo de levar a natureza psíquica à perfeita
sintonia com a natureza espiritual pode ser considerado como um processo de
remodelar ou reconfigurar, pintando novamente o quadro ou alterando um aspecto
comum por variações, e tornando-a uma composição de inacreditável beleza. Essas
são todas comparações que de formas diferentes exprimem a mesma verdade. Sempre
quando formamos algum conceito da alma, é provável, ao menos em alguns
sentidos, que ele seja falho ou imperfeito. A sua natureza pode apenas ser
sugerida por símiles. Não pode ser transmitida a uma pessoa que não possui a
apreensão necessária para compreendê-la. A afirmação de Eliphas Levi de que “a
alma é como se fosse música”, que, sem um corpo ou corpos, não pode ser
exteriorizada e expressa, abre muitos vislumbres de pensamento, como o fazem
muitas outras afirmações em seu artigo. Livro Em Busca da Sabedoria. Abraço.
Davi
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