Espiritualidade.
Texto de N. Sri Ram (1889-1973). Livro Em Busca da Sabedoria. Capítulo XV. I. O
ELIXIR DA VIDA. Um dos fenômenos mais comuns a realizar-se sempre em todo o
lugar onde a vida está presente, e que tem profundo significado e importância,
é o destino a que está sujeita toda a coisa desde o menor micróbio até o homem,
e este fenômeno é a morte. Não gostamos de pensar muito sobre ela porque para a
maioria das pessoas constitui uma perspectiva perturbadora: olham-na com pavor
e repugnância. Algumas observações profundas foram feitas a este respeito em um
artigo publicado em The Theosophist, de outubro de 1881, por Eliphas Levi
(1810-1875), para o qual foi dada atenção em uma das cartas dos Mahatmas.
Eliphas Levi era um erudito e um abade católico-romano que foi secularizado
pela sua igreja porque ela considerava os seus escritos como heréticos. Esses
escritos são de uma qualidade mista. Há um livro em particular de sua autoria,
intitulado Os Paradoxos da Ciência Oculta, publicado pela Editora Teosófica em
Adyar – Índia, a pedido do Senhor C. Jinarajadasa (1875-1953), parte do qual
são extremamente sugestivas, mostrando uma visão notável nos assuntos que ele
aborda. O artigo em questão faz, entre outras, a afirmação de que “a morte é a
dissolução necessária de combinações imperfeitas”. Tudo que percebemos no mundo
da forma é realmente uma combinação: consiste de diferentes partes ou
elementos. Até mesmo o átomo que conhecemos, e o seu núcleo, foram descobertos
pela pesquisa científica como não sendo a coisa indivisível que supostamente
era e sim algo deveras divisível. Neste sentido, faz parte da categoria das coisas
formadas de alguma maneira que podem ou terão de chegar a um fim em dado
momento. Consta que o Buda disse na véspera do dia de sua passagem, que todas
as coisas compostas precisam ser decompostas. É apenas aquilo que na última
análise não pode ser dividido que é verdadeiramente simples e imperecível. A
palavra Mônada, embora não se refira a nada sobre a natureza da matéria como a
conhecemos, mas a uma manifestação da Vida Uma ou Espírito, tem esta
significação. Conforme concebida na literatura teosófica, ela constitui a
essência última de algo que é distinto e individual em sua natureza: existe
nela como um ponto de unidade adimensional, que a torna única. Assim ela é
indissolúvel. Há uma implicação na afirmação de Eliphas Levi de que quando
determinada combinação é perfeita, pode não estar sujeita àquele destino. Por
mais perfeita que seja – nada neste mundo imperfeito é absolutamente,
impecavelmente perfeito – se for uma combinação, deve ter sido formada de seus
elementos – ao menos assim nos parece – e é difícil imaginar que qualquer coisa
possa ser formada de tal maneira que jamais venha s ser desfeita depois. Mas
talvez aquilo que está implícito seja diferente, e refira-se à forma material
visível para nós, mas àquilo que através dela manifesta-se, a alma de sua
perfeição, como poderíamos denomina-la, ou o arquétipo divino. O que torna uma
coisa perfeita? No nível físico, a forma precisa ser uma combinação de
elementos que podem ser movimentos ou linhas e cores, sons e assim por diante,
todos da natureza da percepção sensorial. Mas, a partir de um ponto de vista
interior, ou para a percepção mais profundamente sensível, a forma merecerá a
descrição de “perfeita”, apenas se tiver também a qualidade ou os atributos da
beleza, como a proporção, expressão e assim por diante, todos de uma ordem mais
intangível. Deve haver harmonia, e não meramente o tipo de ordem que assegura
estabilidade por manter unidos os elementos individuais distintos. A harmonia é
uma criação ou fato subjetivo estranho, que pode apenas ser sentido ou
vivenciado. Constitui a base da beleza. Onde há verdadeira beleza, há uma
coalescência de forma e de alma. A forma não mais é algo meramente composto,
mas torna-se psicologicamente identificada com o que é expresso, que pode ser
um sentimento ou uma qualidade muito sutil. O exemplo mais simples da unidade
que pode ser incorporada por algo que é múltiplo em sua constituição é um
acorde perfeito na música. As notas permanecem individuais e separadas, mas o
sentimento evocado em quem responde àquela beleza não pode ser fragmentado. O
mesmo se aplica a todas as outras formas de beleza. As partes existem para
revelar a beleza do todo, a qualidade, a perfeição, a divindade do que é
expresso. Aquilo que é indissolúvel em uma combinação assim é o que a inspira.
As notas que exprimem a beleza do acorde perfeito podem ou não ser soadas, mas
a natureza ímpar do acorde permanece como uma realidade subjetiva e pode ser
relembrada ou tornar-se manifesta novamente por uma inteligência que dela tem
conhecimento. Da mesma maneira o corpo humano, que se desenvolveu através de
muitos processos para vir a ser uma vestidura adequada da alma, pode ser
deixado e decomposto em seus elementos, mas a alma, se for a alma espiritual,
não é um composto e não pode ser dissolvida. Ela pode recolher-se no Espírito,
de que é uma expressão, como um círculo de energia através da reversão das
forças que o mantém como uma radiação ou impulso a partir do seu centro,
podendo recolher-se naquele centro. A possibilidade de uma integração assim
perfeita das partes como que manifestarão o tipo de unidade que reside no
acorde: sem uma partícula sequer de desarmonia ou dissonância, sem a mínima
falha, pode apenas existir em uma natureza da mais alta homogeneidade e
adaptabilidade, em que há também um espírito ou instinto de harmonia
profundamente arraigados – em outras palavras, apenas na natureza de uma mente
e de um coração purificados e sensibilizados, ou a natureza da alma. Qualquer
coisa construída da matéria como nós a conhecemos, por mais perfeita que possa
se apresentar, provavelmente terá algum pequeno espaço em si para forças de
desajuste que trarão como consequência o seu colapso final. A consciência que
está totalmente aberta a qualquer forma de harmonia, seja no som, nas cores, no
pensamento ou qualquer outra coisa, é assim unificada e integrada; torna-se
impregnada com a qualidade que permeia aquela forma. Esta qualidade, absorvida
naquela consciência individua, é como uma essência que pertence à substância
daquela consciência. Ela não pode tornar-se absolutamente uma com aquela
consciência, a menos que a sua natureza esteja inerente naquela consciência
como uma potencialidade que pode vir a manifestar-se a qualquer momento. Esta
linha de pensamento nos conduz à conclusão de que todas as formas de harmonia,
embora cada uma delas seja individual e ímpar, estão latentes na unidade e na
aparente monotonia da consciência individualizada em seu estado puro. Cada uma
constitui um aspecto da natureza daquela consciência. A monotonia é como a cor
branca em que todas as cores distintas estão sintetizadas. O que dá origem a
cada forma específica de harmonia na atividade daquela consciência é uma lei ou
instinto inato em seu interior similar à de um artista perfeito. Esse instinto
pertence à natureza da consciência individualizada em sua pureza; a lei inata é
a lei que se obtém em sua liberdade, protegendo-a. Essa consciência, quando em
seu estado pristino, não modificado, sempre é um todo. A beleza que a impregna
quando encontra um objeto de beleza é a beleza dela evocada. É realmente
harmonia que constitui o fundamento comum para sujeito e objeto que
superficialmente parecem tão completamente à parte um do outro. A forma de
harmonia que surge no campo da consciência como uma realidade subjetiva não é
uma combinação imperfeita, mas ela falha quando a energia que a sustém dela se
retira. Embora a forma possa deixar de existir, aquilo que estava expresso
naquela forma, a sua qualidade essencial, não é perdida, mas permanece como
algo distinto, com uma identidade capaz de manifestar-se, não necessariamente
no mesmo meio de antes, mas em qualquer meio. Diz-se que um ser humano liberto,
que não mais está sob a necessidade de renascer, pode soltar-se não apenas de
seu corpo físico, mas também da forma sutil que exprime exatamente a beleza
ímpar de sua natureza. Neste último caso, diz-se que ele pode criar à sua
vontade esta forma sutil que é sua “própria forma”. Até mesmo quando ele se
tiver soltado de sua forma sutil, de modo que ela não se manifesta de forma
objetiva, ela terá que ser considerada como existindo em alguma outra condição,
sendo portanto, capaz de materializar-se prontamente em um meio que se presta a
tal propósito; e se a sua perfeição individual for traçada até sua fonte,
talvez se apresente como uma “ideia” divina imperecível. Eliphas Levi continua
dizendo que “esta dissolução” de combinações imperfeitas – “é a reabsorção do
esboço grosseiro da vida individual no grande trabalho da vida universal”. O
homem é um ser complexo. O fenômeno de encarnações repetidas apresenta
inevitavelmente diferentes aspectos, considerados em relação aos diferentes
tipos de energia nele presente. Olhado do ponto de vista da energia espiritual
inicialmente latente em seu interior, mas que ao final deverá tornar-se o fator
central e predominante de sua existência, o trabalho a ser realizado constitui
em pintar, em termos dos detalhes de sua vida e ação, incluindo todo o
pensamento e emoção, a imagem perfeita daquilo que ele deve ser, a imagem de um
protótipo preexistente, a ideia divina. Na realização deste trabalho, o seu
julgamento, vontade livre e todas as faculdades desenvolvidas no decorrer de
sua evolução precisam desempenhar o seu papel e dar a sua contribuição. Assim,
aquilo que é criado pela sua livre vontade, originando-se de seus instintos
puros e tendências, funde-se em seu predestino. Na verdadeira obra-prima que um
artista pinta, usando o seu instinto e julgamento interiores próprios, nenhuma
linha poderá ser defeituosa e nenhuma cor poderá estar fora de seu lugar. É
concebível que a vida possa ser vivida com uma perfeição assim, expressando, em
cada detalhe e no todo, a beleza que constitui a individualidade espiritual do
homem, uma beleza atemporal. Apoia-se em torno de uma mudança fundamental que precisa
realizar-se em seu interior, mas mesmo antes que esta mudança seja completa,
esta ação das correntes espirituais, na medida em que são postas em movimento e
que começam a operar em partes da sua natureza. Naturalmente deixariam a sua
marca como prenúncios ou traços daquilo que terá de aparecer como o quadro
perfeito, traços em forma de um esboço fragmentário ou grosseiro. O esboço
superficial produzido em cada vida é apagado pela morte, e apenas partes dele,
que podem ser usadas como uma base para uma nova tentativa, permanecem como
ideias que podem ser corporificadas no quadro a ser pintado. O restante do
esboço, sendo totalmente inaproveitável para o futuro quadro perfeito, é
descartado e retoma para a massa cósmica, da mesma maneira como as partes que
constituem o corpo físico cremado, após a morte retornam aos elementos da
terra, água, ar e assim por diante. “Apenas o perfeito é imortal”, diz Eliphas
Levi. O templo da perfeição pode ser construído apenas com o material certo.
Helena P. Blavatsky (1831-1891) exprime a mesma verdade quando diz que de todas
as experiências de uma vida, apenas uma parte, ou ainda sua essência, a sua
qualidade espiritual pura, é assimilada pela individualidade espiritual da
pessoa. O resto é rejeitado da mesma maneira que um supervisor pode rejeitar
material inadequado. Quando usamos a palavra “qualidade”, ela soa adjetival; a
palavra “essencial” possui uma significação substantiva. Mesmo na natureza real
das coisas pode não haver uma separação assim entre elas como pensamos. O nosso
pensamento raramente percebe a unidade do todo. Vê as partes e as une para
compor o todo, mas assim procedendo cria uma lacuna e não consegue apreender a
natureza da unidade. A individualidade espiritual é uma mistura perfeita de
essências ou de qualidades. Contudo, ela é mais “real” do que qualquer objeto
material. Pode ser que o adjetivo contenha a semente do substantivo e possa
cria-lo. O sentimento que revolve no coração de um músico cria a canção
apropriada. A teoria dos universais de Platão (427 AC 347), dos quais são
derivados todos os particulares, tornar-se mais compreensível quando
entendermos que uma qualidade é também uma essência que pode moldar uma forma
ou tipo a ela ajustável. Isto é, porque o substrato do universo, Svabhavat, para
usarmos a palavra budista, é simultaneamente Espírito e Matéria. Eliphas Levi
continua com outro pensamento que não pertence a qualquer forma ou combinação,
mas à consciência interior: a morte é um “banho no esquecimento”. As suas
ideias sobre este assunto são expressas de forma profunda e bela. O que
acontece à entidade humana na morte do corpo físico? Gradualmente se desprendem
os conteúdos da mente desenvolvida em associação com aquele corpo. O que é
expresso na literatura teosófica como pertencente às mudanças que depois se
realizam nas condições post-mortem ilustra detalhadamente este processo da
dissolução das memórias, camada por camada. Na medida em que determinadas
partes desaparecem, outras permanecem, e a consciência é centralizada nelas. Isso
realiza-se de acordo com leis psicológicas até que permaneçam apenas memórias
de amor, de felicidade imperturbável e outros momentos belos na vida que agora
terminou, mas esses sentimentos também desaparecem na medida em que se exaure a
energia que lhes aviva. A entidade viva, o homem como é no fim da sua vida
física, é transformada nas condições às quais passa na morte, devido ao
desgaste da vestidura (ou vestiduras), nas quais então as suas atividades estão
centradas, e o desaparecimento das memórias que corporifica. Com o
desaparecimento da memória, o apego à memória também desaparece. As memórias
permanecem e são ativas apenas enquanto forem reanimadas pelas condições ou
experiências das quais se originaram. Quando desaparece o elo com o mundo
físico, não há mais o processo reanimador. Visto que todo desejo baseia-se na
memória, os desejos que obsedaram ou influenciaram a entidade também
desaparecem. Quando este é o caso, é um ser transformado que emerge do
processo. Para usar os expressivos termos sânscritos, Kama-manas
(desejo-mente), passa a constituir Manas puro. A vestidura é solta quando se
torna fragmentada e reduzida a farrapos. Ela representou muito a personalidade
anterior, enquanto distinta do Ego sobrevivente, assim denominado porque é uma
unidade de consciência e não um ego no sentido estrito da palavra. Tudo, na
natureza de uma pessoa, que for construído pelo ambiente, está sujeito ao
processo de dissolução. Apenas aquilo que constitui um florescer de dentro,
expressando uma natureza diferente não construída, permanece naquele Ego. A
entidade que atravessa o processo da morte retoma ao renascimento, tendo
esquecido o passado. O passado é complemente eliminado e esquecido e nem sequer
um traço permanece na consciência novamente emergente. O indivíduo que retoma é
praticamente um ser novo, sem memória do antigo, e assemelha-se muito a uma
alma nova que goteja do céu, como algumas pessoas acreditam. O velho foi
transformado no novo simplesmente pela desagregação de sua experiência
acumulada, e a vida, que é sempre inextinguível, reinicia como um germe de
consciência nesta Terra. O germe expande-se muito rapidamente, faz contato com
uma coisa após a outra por todos os lados e segue o padrão comum de
desenvolvimento, embora não sem variações. Algumas vezes uma criança é precoce,
porém mais tarde integra-se em uma rotina normal e estereotipada. Às vezes a
planta floresce tardiamente. Nos seus primeiros anos, a criança pode parecer
estar nas nuvens, distraída, mas posteriormente chega a um ponto em que a sua
qualidade inata precipita-se de forma inesperada. Existem todas as espécies de
irregularidades e variações, devido ao fato de que há muitos fatores em cada um
de nós, e eles são postos em contato com condições cambiantes. A partir da raiz
espiritual imperecível e dos elementos psíquicos sobreviventes e aderentes,
brota uma nova árvore da vida, e é este fenômeno do nascimento e do
crescimento. Eliphas Levi usa a comparação “uma fonte de juventude, na qual de
um lado imerge a velhice e do outro emerge a infância”. O mar do esquecimento
contém as águas do rejuvenescimento. O homem idoso que talvez tenha sido
difícil e desagradável passa a ser uma criança jovem, dócil, brincalhona e
amável – uma transformação incrível. A natureza da vida, quando é incondicionada
por qualquer organismo em particular que a limita e condiciona, é diferente de
quando está condicionada. As suas qualidades e energias são abafadas e
oprimidas pelo organismo no nível do seu próprio funcionamento. A própria vida
à parte de qualquer forma com que se revista é eternamente jovem, porém o corpo
com o qual se identifica endurece e decai. Quando a vida flui livremente, ela
tem uma qualidade muito diferente da que exibe quando obstruída com elementos
que penetram sua corrente, turvando-a e encobrindo-a. Vemos a qualidade inata
da vida no nível físico apenas em seus primórdios, com as folhas frescas na
primavera e o viço de tudo o que é jovem, porque em breve é tolhida pelas
mudanças hostis à sua livre expressão. A criança tem uma qualidade de frescor;
o jovem, seja menino ou menina, também é assim, não apenas no corpo, mas também
na mente. Mas perde progressivamente aquela característica, o homem em idade
média, via de regra, mostra muito pouco disso e, na medida em que envelhece,
torna-se não apenas evanescido no corpo, mas também mais estabelecido e
contraído na mente e no coração, capaz de funcionar apenas dentro de
determinados sulcos estreitos. O corpo físico torna-se velho na natureza das
coisas, através de reações químicas, deteriorização de células e muitos
processo que a sua mente não pode controlar. Ninguém pode reter o
envelhecimento do corpo. Talvez o homem esteja destinado a aprender
determinadas coisas através das inabilidades que este processo lhe impõe. Mas
por que a pessoa torna-se velha internamente? A resposta é que ela é retardada,
enrijecida e limitada por aquele processo de acumulação, cujos resultados são
eliminados no “banho em esquecimento”. Se observarmos o processo enquanto se
realiza durante a vida, pode-se ser capaz de livrar-se dele. É um processo de
fixar-se em uma coisa após a outra que lhe dá prazer, porque ele anseia e
deseja possuir, seja dinheiro, posição, estima, poder, relações sexuais ou
qualquer outra coisa. Livro Em Busca da Sabedoria. Abraço. Davi
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