quinta-feira, 7 de novembro de 2024

V. O EVANGELHO DE BUDA

Budismo. Texto do Yogi Kharishnanda Saraswati (1922-2001). V. O EVANGELHO DE BUDA. Capítulo Oito. A Tentação. O Senhor Budha encaminhou-se novamente para a colossal árvore baniana, sob cuja folhagem ia ser revelada a Verdade do seu destino. No momento em que se sentou sob a árvore, caiu a noite. Porém, Mara, o príncipe das trevas, tendo notícia de que ali estava o Budha, que ele iria libertar os homens e era chegada a hora de encontrar a Verdade para a salvação do mundo, enviou ordens às potestades do Mal. Então, os demônios inimigos da Sabedoria e da Luz saíram dos abismos profundos e se congregaram. Eram Arati, Trishna e Raga, com suas tramas de paixões, horrores, ignorâncias e concupiscências, com todos os engenhosos inventos das trevas e do temor, aborrecedores de Budha, cujo espírito tentavam conturbar. Entre os fragores da tormenta, legiões de demônios se agitaram no espaço com o ribombar do trovão e relâmpagos ofuscantes, semelhantes a dardos, que se desprendiam do céu purpúreo. Com estratagemas e conjurações, faziam aparecer figuras de beleza feiticeira entre a tranquila folhagem, as quais ressoavam cânticos voluptuosos e murmúrios de amor. Algumas vezes o tentavam oferecendo-lhe poder: outras, apresentavam-lhe dúvidas sobre a verdade como se ela fosse ilusão. Chegaram os pecados capitais, os anjos do mal. Primeiro Attavada, o pecado do egoísmo, que se compraz em contemplar a sua imagem refletida no Universo como num espelho, lhe diz: Se você é Budha, deixe que os demais andem nas trevas. Basta que seja invariavelmente você mesmo. Levante-se e desfrute da felicidade dos deuses, que não sofrem mudança nem derrota nem luta. Porém, Budha lhe replicou: Em você, a justiça é menosprezível e a injustiça uma maldição. Vá enganar àqueles que amam a si mesmos. Aproximou-se depois a pálida dúvida, o pecado irônico, que silvou nos ouvidos do Mestre: Todas as coisas são ilusões e vã é a ciência de sua vaidade. Você só busca a sua própria sombra. Levante-se e abandone estes lugares. Não há maior recurso do que um desdém paciente, e não existe nenhum remédio para o homem, que é incapaz de deter a roda que gira sem parar. E o Senhor Budha respondeu: Você nada tem a ver comigo, dúvida insidiosa, o inimigo mais astuto dos homens. Em terceiro lugar veio a superstição, a feiticeira que se encobre sob o manto da modesta fé, porém que sempre engana as almas com cerimônias e orações, tendo em suas mãos as chaves que fecham os infernos e abrem o céu. Disse-lhe a superstição: Você é audacioso. Trancafie os nossos livros sagrados, destrua os nossos deuses, despovoe os templos e estraçalhe a Lei que mantém os sacerdotes e sustenta os reis. Porém o Budha respondeu: Você me pede que destrua a forma transitória; porém, a Verdade livre permanece. Volte para as suas trevas. Depois, adiantou-os galhardamente o mais ousado tentador. Era Kama, o rei das paixões, que exerce influência até mesmo sobre os deuses. Era o mestre de amores, o soberano do reino do prazer. Aproximou-se da árvore, sorridente, com seu arco de ouro enfeitado de flores vermelhas, e na aljava as setas do desejo e cujas pontas são cinco línguas de fogo que pungem o coração e ferem mais cruelmente do que dardos envenenados. Acompanhavam-no cortes de esplêndidas formosuras, de lábios e olhos celestes que sensualmente louvavam o amor ao som de instrumentos invisíveis e harmoniosos. Era tal o encanto delas que até a noite parecia suspender o seu curso para ouvi-las, e as estrelas e a Lua se detiveram atentas à sua carreira, enquanto em seu canto as beldades recordavam ao Budha as delícias perdidas, e lhe diziam que um mortal não pode encontrar nos três imensos mundos nada comparável aos perfumados seios da formosa amante abandonada, nem aos seus rosados mamilos rubros de amor. Acrescentaram que nada sobrepuja a suave harmonia da forma, que oferece à vista linhas e encantos da pessoa amada, na indizível harmonia que se encontra de alma para alma, que faz ferver o nosso sangue e que a vontade adora e deseja porque sabe que ali está o ótimo, que é o verdadeiro céu onde os mortais são como deuses, criadores e soberanos, que é o dom dos dons, sempre renovado, e por ele se podem suportar mil dores. Porque, quem se lembra de ter sofrido quando era enlaçado por braços ternos e toda a sua vida se fundia num suspiro de felicidade e num ardente e apaixonado beijo possuía o mundo inteiro? Assim cantavam com gestos lânguidos, com olhos que soltavam amorosas chamas e com lábios de sedutores sorrisos. Em sua dança lasciva deixavam entrever os quadris e coxas como casulos entreabertos que ostentam seus matizes e, no entanto, ocultam seus corações. Jamais houve para olhos humanos encanto maior do que aquelas bailarinas noturnas que se aproximava da árvore, cada qual mais sedutora que a precedente, murmurando: Oh! Excelso Sidharta! Sou sua. Prove de minha boca e veja se não é deleitosa a minha juventude. Mas ao ver que o espírito de Buda permanecia inquebrantável, Kama brandiu o seu arco mágico, e de repente destacou-se do grupo de dançarinas uma figura muito mais bela e majestosa do que as outras cujo semblante se assemelhava ao do doce Yasodhara. Seus olhos negros, regados de lágrimas, refletiam paixão extremamente veemente. Seus braços, abertos para ele, se retorciam de dor; e gemendo suavemente, a encantadora sombra chamou-o pelo seu nome, dizendo entre suspiros: Meu príncipe. Estou morrendo porque você me abandonou. Que céu encontrou que seja comparável ao que gozamos nas margens do límpido Rohim, na Mansão do Prazer; onde choro por você há já longos e penosos anos? Volte, Sidharta. Oh!, volte! Ao menos beije-me outra vez em meus lábios, e que ao menos outra vez eu repouse no seu peito, para que seus sonhos estéreis se desvaneçam. Contemple-me. Não sou aquela que você ama? Buda respondeu-lhe: Pelo doce amor daquela que desse modo você lembra, sombra formosa e falsa de vã astúcia, não a maldigo porque você assumiu uma forma tão querida, ainda que, como todas aparições terrenas, seja uma ilusão mil vezes enganosa. Desvaneça-se de novo no vazio! Então, ressoou um grito no bosque, e o tropel sedutor se desvaneceu com as cenas vaporosas. Capítulo nove. A Iluminação. Afugentado Mara, o Senhor Buda entregou-se à meditação. Ante os olhos do espírito passaram os males e misérias do mundo, procedentes das más ações com seus consequentes sofrimentos. Então ele disse: É verdade que se os homens soubessem antecipadamente o resultado de suas más ações não as cometeriam; porém, a personalidade é cega e eles continuam sujeitos aos seus perniciosos desejos. Desejam ardentemente o prazer, e engendram a dor. Quando a morte destrói sua personalidade, não encontram a paz. Continuam sujeitos à roda de morte e renascimentos, e aparecem em outra personalidade em novas existências. Assim continuam movendo-se num círculo, sem poder fugir do inferno que eles mesmos criaram. Vãos são os prazeres e ineficazes seus esforços. Ocos como o bambu, e vazios como a bolha de sabão. O mundo está cheio de pecado e aflição, porque nele domina o erro. Os homens se extraviam porque pensam que o erra vale mais que a Verdade. E mesmo que vejam a Verdade, os homens a desprezam pelo erro porque este é no momento mais atraente, embora dê como resultado a aflição e a infelicidade. Buda começou então a expor a doutrina do Dharma. O Dharma é a verdade, a lei, a religião. Somente o Dharma pode livrar-nos do erro, do pecado e da aflição. Ao considerar as causas do nascimento e da morte, o Bem-aventurado reconheceu que a ignorância é a fonte envenenada de todo o mal, que se encadeia nas doze Vidanas. No princípio da existência não há conhecimento, e dessa ignorância surgem os apetites da vida de sensação, que por sua vez engendram as formas orgânicas com os seis campos de percepção, ou seja, os cinco sentidos e a morte em que os cinco se resumem. Os seis campos se relacionam com o mundo exterior e, desse contato, provêm a sensação que tece a rede da personalidade com o apego às coisas materiais. A personalidade se perpetua nos sucessivos nascimentos que ocasionam dor, angústia, abatimento, velhice e morte. A causa de toda dor é a ignorância. Dissipe a ignorância e os apetites que nascem dela se desvanecerão. Desaparecerá a falsa percepção do mundo material e vocês se livrarão da concupiscência, do erro, da ilusão, do egoísmo da personalidade, que se sobrepõem à enfermidade, à velhice, à morte e ao renascimento. O Sábio viu as quatro nobre verdades que mostram o caminho do Nirvana e o aniquilamento da personalidade. A primeira nobre verdade é que o sofrimento existe. Sofre-se ao nascer, ao crescer, ao adoecer e ao morrer. Sofre quem está unido ao que repugna. Sofre quem se vê forçado a separar-se de quem ama. Sofre quem anela o que não consegue obter. A segunda nobre verdade é que o sofrimento provém da concupiscência. O mundo objetivo excita à sensação, e a sensação desperta o desejo com ânsia de imediata satisfação. O desejo de viver para satisfazer os desejos da personalidade nos prende nas redes do sofrimento. O prazer sensual é um acontecimento que resulta em dor. A terceira nobre verdade é que o sofrimento pode cessar. Quem subjuga a personalidade, livra-se da concupiscência, e, por conseguinte, do desejo e da dor. A quarta nobre verdade é que pelo caminho óctuplo chega-se à eliminação do sofrimento. Apenas aquele que submete sua vontade ao dever salva-se do sofrimento. O homem inteligente segue o caminho óctuplo e desse modo deixa de sofrer. Eis as oito etapas do caminho. I. Reta compreensão. 2. Reto propósito. 3. Reta palavra. 4. Reta conduta. 5. Retos meios de subsistência. 6. Reto esforço. 7. Reta atenção. 8. Reta meditação. Trilhe-o respeitando o Dharma, isto é, cumprindo o seu dever e evitando prejudicar outros seres. Pense na lei de causa e efeito, na lei do Karma que forja o destino do homem, e domine os seus sentimentos. Essa é a doutrina da reta compreensão. Seja benévolo com tudo quanto vive. Extirpe a maledicência, a inveja e a ira de tal sorte que você se assemelhe ao suave sopro da brisa. Cuide de seus lábios como se fossem os portais do palácio de um rei. Que todas as suas palavras sejam francas, sinceras e corteses, como se você estivesse na presença do rei. Essa é a reta palavra. Que cada uma de suas ações elimine um vício e estimule uma virtude. Como se entrevê um fio de prata entre as contas cristalinas de um colar, assim se deve mostrar o amor em toda boa ação. Essa é a reta conduta. As outras quatro etapas superiores só podem ser percorridas pelos pés que já não pisam caminhos mundanos. Almas cujas asas não têm mais plumagem! Não tente voar até o Sol! O ar das regiões inferiores lhe é suave, e conhecidos e seguros lhes são os caminhos e níveis domésticos a que você está acostumado. Apenas seres vigorosos podem abandonar o ninho que cada qual fabricou para si. O amor da mulher e do filho são valiosos. Eu sei disso. As amizades e os recreios da vida são agradáveis. As compassivas qualidades de uma conduta virtuosa são úteis. Faça de sua debilidade uma escada de ouro e eleve-se pela convivência diária com essas ilusões até as verdades mais dignas de ser amadas. Desse modo, você alcançará cumes mais serenos, a sua subida será menos penosa, suas culpas não pesarão tanto, e você se fortalecerá pela vontade para quebrar as ligações dos sentidos e entrar no caminho. Esse é o Dharma. Essa é a religião. Essa é a Verdade. E o sábio exclamou: Quanto tempo andei por caminhos errados! Ligado durante muitas vidas pela cadeia dos desejos, buscando inutilmente a origem da inquietação que tortura o homem, do egoísmo e da ansiedade inerente à vida terrena, com seu nascimento, suas dores e sua morte. Porém já o descobri. É a personalidade. Não construam, Oh! Senhores do Karma, nova casa para mim, porque eu rompi o jugo do pecado e quebrei o leme da inquietação. Meu espírito entrou no Nirvana. Desvaneceu-se o desejo. Ali está a personalidade e aqui a Verdade. Onde está a personalidade não está a Verdade. São incompatíveis. A personalidade é erro transitório do Samsara, a roda dos nascimentos e mortes; a isoladora separação egoísta, mão da inveja e do ódio. A personalidade é a insensata avidez e prazeres, o louco afã dos ilusórios triunfos e da vaidade. Em troca, a verdade se origina da reta compreensão das coisas; é eterna; é a realidade da existência; é a bem-aventurança que conduz ao reto caminho. A personalidade é uma ilusão, e não há no mundo nem vício nem pecado que não derive da afirmação da personalidade. Para alcançar a Verdade é indispensável reconhecer a ilusão da personalidade. Não é possível caminhar com pés firmes pelo reto caminho sem que se tenha antes abandonado o embaraçoso lastro das paixões egoístas. A paz perfeita requer o abandono de toda vaidade. Bem-aventurado quem compreende o Dharma. Bem-aventurado o que não prejudica os demais seres humanos. Bem-aventurado quem venceu o pecado e está livre de paixões. Desfruta de completa felicidade quem vence o egoísmo e a vaidade, porque já é perfeito e santo. Alcançou a suprema Iluminação. Livro o Evangelho do Buda. Abraço. Davi. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário