quarta-feira, 13 de setembro de 2023

ENSAIOS DE TEODICEIA - PREFÁCIO. PARTE I

 

Filosofia e Cristianismo. Livro – Ensaios de Teodiceia Sobre a Bondade de Deus, a Liberdade do Homem e a Origem do Mal. Autor G. W. Leibniz (1646-1716) – PREFÁCIO. Parte I. Em todos os tempos temos visto que o comum dos homens tem colocado a devoção nas formalidades: a piedade sólida, isto é, a luz da virtude, jamais pertenceu à maioria. Não é preciso estranhar isso, nada é tão conforme à fraqueza humana. Somos afetados pelo exterior e o interno demanda uma discussão para a qual poucas pessoas se mostram capazes. Com a verdadeira piedade consiste nos sentimentos e na prática, as formalidades de devoção a imitam, e são de duas classes; uma pertencem as práticas cerimoniais e as outras aos formulários da fé. As cerimônias assemelham-se às ações virtuosas, e os formulários são como sombras da verdade, e aproximam-se mais ou menos da pura luz. Todas essas formalidades seriam louváveis se aqueles que as inventaram as tornassem próprias para manter e expressar o que elas imitam; se as cerimônias religiosas, a disciplina eclesiástica, as regras das comunidades, as leis humanas sempre representassem um abrigo para a lei divina, para nos distanciar das proximidades do vício, nos acostumar ao bem e para nos tornar familiar a virtude. Este era o objetivo de Moisés e de outros bons legisladores, dos sábios fundadores das ordens religiosas e, sobretudo, de Jesus Cristo, divino fundador da religião mais pura e mais esclarecida. O mesmo ocorre com os formulários de crenças; eles seriam aceitáveis se nada houvesse neles que não fosse conforme à verdade que salva, ainda que não existisse neles toda a verdade. Mas acontece muito frequentemente de a devoção ser sufocada pelos modos, e de a luz divina ser obscurecida pelas opiniões dos homens. Os descrentes, que ocupavam a terra antes do estabelecimento do cristianismo, tinham apenas uma única espécie de formalidade; eles realizavam cerimônias no seu culto, mas não conheciam artigos de fé, e jamais tinham sonhado criar formulários de sua teologia dogmática. Eles não sabiam se seus deuses eram personagens verdadeiros ou símbolos dos poderes naturais como o Sol, os planetas, os elementos. Seus mistérios não consistiam em dogmas difíceis, mas em certas práticas secretas, nas quais os profanos, isto é, aqueles que não eram iniciados, jamais deviam participar. Essas práticas com muita frequência eram ridículas e absurdas, e era preciso ocultá-las para protegê-las do menosprezo. Os descrentes tinham suas superstições, vangloriavam-se de seus milagres; para eles tudo estava repleto de oráculos, de agouros, presságios, de adivinhações. Os sacerdotes inventavam sinais da cólera ou da bondade dos deuses, dos quais eles pretendiam ser os intérpretes. Isso tendia a governar os espíritos pelo medo e pela esperança dos eventos humanos; mas a grande perspectiva de uma outra vida não era em absoluto considerada, não se tinha dado ao trabalho de oferecer aos homens verdadeiras opiniões sobre Deus e a alma. De todos os povos antigos, sabe-se que apenas os hebreus tiveram dogmas públicos em sua religião. Abraão e Moises estabeleceram a crença em um único Deus, fonte de todo bem, autor de toda as coisas. Os hebreus falam da soberana substância de uma maneira muito digna e ficamos surpresos ao ver os habitantes de um pequeno canto da Terra mais esclarecidos que o restante do gênero humano. Os sábios de outras nações podem ter dito o mesmo algumas vezes, mas não tiveram a felicidade de serem suficientemente seguidos e de transformar o dogma em lei. Contudo Moises não incluiu em suas leis a doutrina da imortalidade da alma: ela era conforme suas opiniões, era passada de pessoa para pessoa, mas não era autorizada de uma maneira popular. Até o momento em que Jesus Cristo levantou o véu e, sem ter o poder em suas mãos, ensinou com toda a firmeza e um legislador que as almas imortais passam para uma outra vida, na qual devem receber o salário por suas ações. Moises já tinha fornecido belas ideias sobre a grandeza e sobre a bondade de Deus, com as quais muitas nações civilizadas concordam atualmente. Mas Jesus Cristo estabeleceu todas as consequências disso e fazia ver que a bondade e a justiça divinas repercutem perfeitamente no que Deus prepara às almas. Eu não entro aqui nas outras questões da doutrina cristã e apenas faço ver com Jesus Cristo acabou por transformar a religião natural em lei, e conferir a ela autoridade de um dogma público. Ele fez sozinho o que tantos filósofos em vão tinham tentado fazer. E os cristãos tiveram enfim a preeminência no império romano, senhor da melhor parte da Terra conhecida; a religião dos sábios tornou-se a dos povos. Maomé, desde então, não se separou destes grandes dogmas da teologia natural. Seus seguidos os propagaram até entre as nações mais distantes da Ásia e da África onde o cristianismo não tinha sido levado; e aboliram em muitos países as superstições pagãs, contrárias à verdadeira doutrina da unidade de Deus e da imortalidade das almas. Vemos que Jesus Cristo, ao finalizar aquilo que Moises tinha começado, quis que a divindade fosse o objeto não apenas do nosso temor e de nossa veneração, mas também de nosso amor e de nosso carinho. Isso era tornar antecipadamente os homens bem-aventurados e lhes dar aqui na Terra uma amostra da felicidade futura. Pois não há nada mais agradável do que amar o que é digno de amor. O amor é aquela afeição que nos faz descobrir prazer nas perfeições daquilo que amamos, e não há nada mais perfeito do que Deus, nem nada mais agradável. Para amá-lo, basta considerar suas perfeições; o que é fácil, porque descobrimos em nós suas ideias. As perfeições de Deus são aquelas da nossa alma, mas ele as possui sem limites; ele é um oceano do qual só recebemos gotas: em nós, existe algum poder, algum conhecimento, alguma bondade, mas em Deus eles existem plenamente. A ordem, as proposições, a harmonia nos encantam, a pintura e a música são exemplos disso, Deus é todo ordem, sempre mantém a justiça das proposições, e faz a harmonia universal: toda beleza é uma efusão dos seus raios. Segue-se evidentemente que a verdadeira piedade, e mesmo a verdadeira felicidade, consistem no amor de Deus, mas em um amor esclarecido, cujo ardor esteja acompanhado de luz. Tal espécie de amor faz surgir este prazer nas boas ações que dá relevo à virtude e, relacionando tudo a Deus, como o centro, transporta o humano no divino. Pois ao fazermos nosso dever, ao obedecermos à razão, cumprimos as ordens da suprema razão, dirigimos todas as nossas intenções ao bem comum que não é diferente da glória de Deus, descobrimos que não há maior interesse particular do que desposar o (interesse) geral. E nós mesmos nos satisfazemos ao ter prazer em proporcionar as verdadeiras vantagens dos homens. Quer consigamos, que não consigamos, ficamos contentes com o que aconteceu quando somos obedientes à vontade de Deus e quando sabemos que o que ele quer é o melhor. Mas, antes que ele declare sua vontade por meio do que acontece, tentamos encontrá-la fazendo o que parece mais conforme às suas ordens. Quando estamos imbuídos desse espírito, não somos desencorajados pelos insucessos, só nos lamentamos por nossas faltas; e a ingratidão dos homens não faz relaxar quanto ao exercício da nossa disposição para fazer o bem. Nossa caridade é modesta e plena de moderação, ela não pretende dominar. Igualmente atentos às nossas falhas e aos talentos de outrem, somos levados a criticar nossas ações e a desculpar e retificar as dos outros: isso para aperfeiçoamento a nós mesmos e para não prejudicar ninguém. Não existe piedade onde não existe caridade, e sem sermos prestativos e dispostos a fazer o bem, não poderíamos mostrar uma devoção sincera. A boa disposição natural, a educação vantajosa, a frequentação de pessoas piedosas e virtuosas podem contribuir muito para colocar as almas nessa bela situação, mas o que mais as aproxima disso são os bons princípios. Eu já disse, é preciso associar a luz ao ardor, é preciso que as perfeições do entendimento façam cumprir as da vontade. A prática da virtude, tanto quanto a do vício, pode ser o resultado de um simples hábito; podemos pegar gosto por isso. Mas quanto a virtude é racional, quando ela se relaciona a Deis, que é a suprema razão das coisas, ela está fundada em conhecimento. Não se pode amar Deus sem conhecer suas perfeições, e esse conhecimento encerra os princípios da verdadeira piedade. O objetivo da verdadeira religião deve ser de imprimi-los nas almas, mas não sei como aconteceu que os homens, que os doutores da religião, com tamanha frequência tenham se afastado tanto desse objetivo. Contra a intenção do nosso divino mestre, a devoção foi conduzida de volta às cerimonias e a doutrina se encheu de fórmulas.Com bastante frequência essas cerimonias não eram muito adequadas para sustentar o exercício da virtude, e as fórmulas algumas vezes não eram muito claras. Como acreditar nisso? Cristãos pensavam que poderiam ser devotos sem amar seu próximo e piedosos sem amar a Deus. Ou mesmo acreditou-se poder amar seu próximo sem servi-lo e poder amar a Deus sem conhecê-lo. Muitos séculos passaram sem que o público se apercebesse bem desta falha; e há ainda muitos vestígios do reino das trevas. Vemos algumas vezes pessoas que falam muito sobre a piedade, sobre a devoção e sobre a religião que estão, de fato, ocupadas em ensiná-las, mas não as achamos nem um pouco instruídas quanto às perfeições divinas. Elas concebem mal a bondade e a justiça do soberano do universo; elas imaginam um Deus que não merece ser imitado nem amado. É isso que me pareceu uma consequência perigosa, já que é de extrema importância que a fonte mesma da piedade não esteja corrompida. Os antigos erros daqueles que acusaram a divindade, ou daqueles que fizeram disso um mau princípio, foram renovados algumas vezes em nossos dias: recorreu-se ao poder invencível de Deus quando se tratava, sobretudo, de fazer ver sua bondade suprema. E empregou-se um poder despótico quando devíamos conceber um poder regulado pela mais perfeita sabedoria. Eu observei que essas opiniões, capazes de prejudicar, estavam apoiadas particularmente sobre noções confusas que tinham sido formadas com relação à liberdade, à necessidade e ao destino; e peguei a pena em mais de uma ocasião para fornecer esclarecimentos sobre essas importantes matérias. Mas, por fim, fui obrigado a reunir meus pensamentos sobre todos esses assuntos ligados entre si, e partilhá-los com o público. É isso que comecei empreender nos Ensaios que ofereço aqui, sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. Abraço. Davi.

 

 

 

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