Filosofia e Cristianismo.
Livro – Ensaios de Teodiceia Sobre a Bondade de Deus, a Liberdade do Homem e a
Origem do Mal. Autor G. W. Leibniz (1646-1716) – PREFÁCIO. Parte I. Em todos os
tempos temos visto que o comum dos homens tem colocado a devoção nas
formalidades: a piedade sólida, isto é, a luz da virtude, jamais pertenceu à
maioria. Não é preciso estranhar isso, nada é tão conforme à fraqueza humana.
Somos afetados pelo exterior e o interno demanda uma discussão para a qual
poucas pessoas se mostram capazes. Com a verdadeira piedade consiste nos
sentimentos e na prática, as formalidades de devoção a imitam, e são de duas
classes; uma pertencem as práticas cerimoniais e as outras aos formulários da
fé. As cerimônias assemelham-se às ações virtuosas, e os formulários são como
sombras da verdade, e aproximam-se mais ou menos da pura luz. Todas essas
formalidades seriam louváveis se aqueles que as inventaram as tornassem
próprias para manter e expressar o que elas imitam; se as cerimônias
religiosas, a disciplina eclesiástica, as regras das comunidades, as leis
humanas sempre representassem um abrigo para a lei divina, para nos distanciar
das proximidades do vício, nos acostumar ao bem e para nos tornar familiar a
virtude. Este era o objetivo de Moisés e de outros bons legisladores, dos
sábios fundadores das ordens religiosas e, sobretudo, de Jesus Cristo, divino
fundador da religião mais pura e mais esclarecida. O mesmo ocorre com os
formulários de crenças; eles seriam aceitáveis se nada houvesse neles que não
fosse conforme à verdade que salva, ainda que não existisse neles toda a
verdade. Mas acontece muito frequentemente de a devoção ser sufocada pelos
modos, e de a luz divina ser obscurecida pelas opiniões dos homens. Os
descrentes, que ocupavam a terra antes do estabelecimento do cristianismo,
tinham apenas uma única espécie de formalidade; eles realizavam cerimônias no
seu culto, mas não conheciam artigos de fé, e jamais tinham sonhado criar
formulários de sua teologia dogmática. Eles não sabiam se seus deuses eram
personagens verdadeiros ou símbolos dos poderes naturais como o Sol, os
planetas, os elementos. Seus mistérios não consistiam em dogmas difíceis, mas
em certas práticas secretas, nas quais os profanos, isto é, aqueles que não
eram iniciados, jamais deviam participar. Essas práticas com muita frequência
eram ridículas e absurdas, e era preciso ocultá-las para protegê-las do
menosprezo. Os descrentes tinham suas superstições, vangloriavam-se de seus
milagres; para eles tudo estava repleto de oráculos, de agouros, presságios, de
adivinhações. Os sacerdotes inventavam sinais da cólera ou da bondade dos
deuses, dos quais eles pretendiam ser os intérpretes. Isso tendia a governar os
espíritos pelo medo e pela esperança dos eventos humanos; mas a grande
perspectiva de uma outra vida não era em absoluto considerada, não se tinha
dado ao trabalho de oferecer aos homens verdadeiras opiniões sobre Deus e a
alma. De todos os povos antigos, sabe-se que apenas os hebreus tiveram dogmas
públicos em sua religião. Abraão e Moises estabeleceram a crença em um único
Deus, fonte de todo bem, autor de toda as coisas. Os hebreus falam da soberana
substância de uma maneira muito digna e ficamos surpresos ao ver os habitantes
de um pequeno canto da Terra mais esclarecidos que o restante do gênero humano.
Os sábios de outras nações podem ter dito o mesmo algumas vezes, mas não
tiveram a felicidade de serem suficientemente seguidos e de transformar o dogma
em lei. Contudo Moises não incluiu em suas leis a doutrina da imortalidade da
alma: ela era conforme suas opiniões, era passada de pessoa para pessoa, mas
não era autorizada de uma maneira popular. Até o momento em que Jesus Cristo
levantou o véu e, sem ter o poder em suas mãos, ensinou com toda a firmeza e um
legislador que as almas imortais passam para uma outra vida, na qual devem
receber o salário por suas ações. Moises já tinha fornecido belas ideias sobre
a grandeza e sobre a bondade de Deus, com as quais muitas nações civilizadas
concordam atualmente. Mas Jesus Cristo estabeleceu todas as consequências disso
e fazia ver que a bondade e a justiça divinas repercutem perfeitamente no que
Deus prepara às almas. Eu não entro aqui nas outras questões da doutrina cristã
e apenas faço ver com Jesus Cristo acabou por transformar a religião natural em
lei, e conferir a ela autoridade de um dogma público. Ele fez sozinho o que
tantos filósofos em vão tinham tentado fazer. E os cristãos tiveram enfim a
preeminência no império romano, senhor da melhor parte da Terra conhecida; a
religião dos sábios tornou-se a dos povos. Maomé, desde então, não se separou
destes grandes dogmas da teologia natural. Seus seguidos os propagaram até
entre as nações mais distantes da Ásia e da África onde o cristianismo não
tinha sido levado; e aboliram em muitos países as superstições pagãs,
contrárias à verdadeira doutrina da unidade de Deus e da imortalidade das
almas. Vemos que Jesus Cristo, ao finalizar aquilo que Moises tinha começado,
quis que a divindade fosse o objeto não apenas do nosso temor e de nossa
veneração, mas também de nosso amor e de nosso carinho. Isso era tornar
antecipadamente os homens bem-aventurados e lhes dar aqui na Terra uma amostra
da felicidade futura. Pois não há nada mais agradável do que amar o que é digno
de amor. O amor é aquela afeição que nos faz descobrir prazer nas perfeições
daquilo que amamos, e não há nada mais perfeito do que Deus, nem nada mais
agradável. Para amá-lo, basta considerar suas perfeições; o que é fácil, porque
descobrimos em nós suas ideias. As perfeições de Deus são aquelas da nossa
alma, mas ele as possui sem limites; ele é um oceano do qual só recebemos
gotas: em nós, existe algum poder, algum conhecimento, alguma bondade, mas em
Deus eles existem plenamente. A ordem, as proposições, a harmonia nos encantam,
a pintura e a música são exemplos disso, Deus é todo ordem, sempre mantém a
justiça das proposições, e faz a harmonia universal: toda beleza é uma efusão
dos seus raios. Segue-se evidentemente que a verdadeira piedade, e mesmo a
verdadeira felicidade, consistem no amor de Deus, mas em um amor esclarecido,
cujo ardor esteja acompanhado de luz. Tal espécie de amor faz surgir este prazer
nas boas ações que dá relevo à virtude e, relacionando tudo a Deus, como o
centro, transporta o humano no divino. Pois ao fazermos nosso dever, ao
obedecermos à razão, cumprimos as ordens da suprema razão, dirigimos todas as
nossas intenções ao bem comum que não é diferente da glória de Deus,
descobrimos que não há maior interesse particular do que desposar o (interesse)
geral. E nós mesmos nos satisfazemos ao ter prazer em proporcionar as verdadeiras
vantagens dos homens. Quer consigamos, que não consigamos, ficamos contentes
com o que aconteceu quando somos obedientes à vontade de Deus e quando sabemos
que o que ele quer é o melhor. Mas, antes que ele declare sua vontade por meio
do que acontece, tentamos encontrá-la fazendo o que parece mais conforme às
suas ordens. Quando estamos imbuídos desse espírito, não somos desencorajados
pelos insucessos, só nos lamentamos por nossas faltas; e a ingratidão dos homens
não faz relaxar quanto ao exercício da nossa disposição para fazer o bem. Nossa
caridade é modesta e plena de moderação, ela não pretende dominar. Igualmente atentos
às nossas falhas e aos talentos de outrem, somos levados a criticar nossas
ações e a desculpar e retificar as dos outros: isso para aperfeiçoamento a nós
mesmos e para não prejudicar ninguém. Não existe piedade onde não existe
caridade, e sem sermos prestativos e dispostos a fazer o bem, não poderíamos
mostrar uma devoção sincera. A boa disposição natural, a educação vantajosa, a
frequentação de pessoas piedosas e virtuosas podem contribuir muito para
colocar as almas nessa bela situação, mas o que mais as aproxima disso são os
bons princípios. Eu já disse, é preciso associar a luz ao ardor, é preciso que
as perfeições do entendimento façam cumprir as da vontade. A prática da
virtude, tanto quanto a do vício, pode ser o resultado de um simples hábito;
podemos pegar gosto por isso. Mas quanto a virtude é racional, quando ela se relaciona
a Deis, que é a suprema razão das coisas, ela está fundada em conhecimento. Não
se pode amar Deus sem conhecer suas perfeições, e esse conhecimento encerra os
princípios da verdadeira piedade. O objetivo da verdadeira religião deve ser de
imprimi-los nas almas, mas não sei como aconteceu que os homens, que os
doutores da religião, com tamanha frequência tenham se afastado tanto desse
objetivo. Contra a intenção do nosso divino mestre, a devoção foi conduzida de
volta às cerimonias e a doutrina se encheu de fórmulas.Com bastante frequência
essas cerimonias não eram muito adequadas para sustentar o exercício da
virtude, e as fórmulas algumas vezes não eram muito claras. Como acreditar
nisso? Cristãos pensavam que poderiam ser devotos sem amar seu próximo e piedosos
sem amar a Deus. Ou mesmo acreditou-se poder amar seu próximo sem servi-lo e poder
amar a Deus sem conhecê-lo. Muitos séculos passaram sem que o público se
apercebesse bem desta falha; e há ainda muitos vestígios do reino das trevas.
Vemos algumas vezes pessoas que falam muito sobre a piedade, sobre a devoção e
sobre a religião que estão, de fato, ocupadas em ensiná-las, mas não as achamos
nem um pouco instruídas quanto às perfeições divinas. Elas concebem mal a
bondade e a justiça do soberano do universo; elas imaginam um Deus que não
merece ser imitado nem amado. É isso que me pareceu uma consequência perigosa,
já que é de extrema importância que a fonte mesma da piedade não esteja
corrompida. Os antigos erros daqueles que acusaram a divindade, ou daqueles que
fizeram disso um mau princípio, foram renovados algumas vezes em nossos dias:
recorreu-se ao poder invencível de Deus quando se tratava, sobretudo, de fazer
ver sua bondade suprema. E empregou-se um poder despótico quando devíamos
conceber um poder regulado pela mais perfeita sabedoria. Eu observei que essas
opiniões, capazes de prejudicar, estavam apoiadas particularmente sobre noções
confusas que tinham sido formadas com relação à liberdade, à necessidade e ao
destino; e peguei a pena em mais de uma ocasião para fornecer esclarecimentos
sobre essas importantes matérias. Mas, por fim, fui obrigado a reunir meus
pensamentos sobre todos esses assuntos ligados entre si, e partilhá-los com o
público. É isso que comecei empreender nos Ensaios que ofereço aqui, sobre a
bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. Abraço. Davi.
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