Espiritismo. www.febnet.org.br. Texto de Allan Kardec (1804-1869). Livro O Céu e o Inferno.
Capítulo 5. O PURGATÓRIO. O Evangelho não faz menção alguma do purgatório,
que só foi admitido pela Igreja no ano de 593. É incontestavelmente um dogma
mais racional e mais conforme com a Justiça de Deus que o inferno, porque
estabelece penas menos rigorosas e resgatáveis para as faltas de gravidade
mediana. O princípio do purgatório funda-se na equidade, pois é a detenção
temporária a concorrer com a perpétua condenação. Que julgar de um país que só
tivesse a pena de morte para todos os delitos? Sem o purgatório, só há para as
almas duas alternativas extremas: a suprema felicidade ou o eterno suplício. E
nessa hipótese, que seria das almas somente culpadas de ligeiras faltas? Ou
compartilhariam da felicidade dos eleitos, ainda quando imperfeitas, ou
sofreriam o castigo dos maiores criminosos, ainda quando não houvessem feito
muito mal, o que não seria nem justo, nem racional. 2. Necessariamente, porém,
a noção do purgatório deveria ser incompleta, porque apenas conhecendo a
penalidade do fogo fizeram dele uma atenuante do inferno, visto que as almas aí
também ardem, embora em fogo mais brando. Sendo o dogma das penas eternas
incompatível com o progresso, as almas do purgatório não se livram dele por
efeito do seu adiantamento, mas em virtude das preces que se dizem ou que se
mandam dizer em sua intenção. E se foi bom o primeiro pensamento, outro tanto
não acontece quanto às consequências dele decorrentes, pelos abusos que
originaram. As preces pagas transformaram o purgatório em mina mais rendosa que
o inferno. Nota de Allan Kardec: O purgatório originou o comércio escandaloso
das indulgências, por intermédio das quais se vende a entrada no Céu. Este abuso
foi a causa primária da Reforma, levando Martinho Lutero (1483-1546) a rejeitar
o purgatório. Jamais foram determinados e definidos claramente o lugar do
purgatório e a natureza das penas aí sofridas. À Nova Revelação estava
reservado o preenchimento dessa lacuna, explicando-nos a causa das terrenas
misérias da vida, das quais só a pluralidade de existências poderia mostrar-nos
à justiça. Essas misérias decorrem necessariamente das imperfeições da alma,
pois se esta fosse perfeita não cometeria faltas nem teria de sofrer-lhe as
consequências. O homem que na Terra fosse em absoluto sóbrio e moderado, por
exemplo, não padeceria enfermidades oriundas de excessos. O mais das vezes ele
é desgraçado por sua própria culpa, porém, se é imperfeito, é porque já o era
antes de vir à Terra, expiando não somente faltas atuais, mas faltas anteriores
não resgatadas. Repara em uma vida de provações o que a outrem fez sofrer em
anterior existência. As vicissitudes que experimenta são, por sua vez, uma
correção temporária e uma advertência quanto às imperfeições que lhe cumpre
eliminar de si, a fim de evitar males e progredir para o bem. São para a alma
lições da experiência, rudes às vezes, mas tanto mais proveitosas para o
futuro, quanto profundas as impressões que deixam. Essas vicissitudes ocasionam
incessantes lutas que lhe desenvolvem as forças e as faculdades intelectivas e
morais. Por essas lutas a alma se retempera no bem, triunfando sempre que tiver
denodo para mantê-las até o fim. O prêmio da vitória está na vida espiritual,
onde a alma entra radiante e triunfadora como soldado que se destaca da refrega
para receber a palma gloriosa. 4. Em cada existência, uma ocasião se depara à
alma para dar um passo avante; de sua vontade depende a maior ou menor extensão
desse passo: franquear muitos degraus ou ficar no mesmo ponto. Neste último
caso, e porque cedo ou tarde se impõe sempre o pagamento de suas dívidas, terá
de recomeçar nova existência em condições ainda mais penosas, porque a uma
nódoa não apagada ajunta outra nódoa. É, pois, nas sucessivas encarnações que a
alma se despoja das suas imperfeições, que se purga, em uma palavra, até que
esteja bastante pura para deixar os mundos de expiação pelos mundos felizes, e,
mais tarde estes para gozar da suprema felicidade. O purgatório não é,
portanto, uma ideia vaga e incerta; é antes uma realidade material que vemos,
tocamos e sentimos. Ele existe nos mundos de expiação como a Terra, onde os
homens expiam o passado e o presente, em proveito do futuro. Contrariamente, porém,
à ideia que dele se faz, depende de cada um prolongar ou abreviar a sua
permanência, segundo o grau de adiantamento e pureza atingido pelo próprio
esforço sobre si mesmo. O livramento se dá, não por conclusão de tempo nem por
alheios méritos, mas pelo próprio mérito de cada um, consoante estas palavras
do Cristo: “A cada um segundo as suas obras”, palavras que resumem
integralmente a Justiça de Deus. Aquele, pois, que sofre nesta vida pode
dizer-se que é porque não se purificou suficientemente em sua existência
anterior, devendo, se o não fizer nesta, sofrer ainda na seguinte. Isto é ao
mesmo tempo equitativo e lógico. Sendo o sofrimento inerente à imperfeição,
tanto mais tempo se sofre quanto mais imperfeito se for, da mesma forma por que
tanto mais tempo persistirá uma enfermidade quanto maior a demora em tratá-la.
Assim é que, enquanto o homem for orgulhoso, sofrerá as consequências do
orgulho; enquanto egoísta, as do egoísmo. Devido às suas imperfeições, o
Espírito culpado sofre primeiro na vida espiritual, sendo-lhe depois facultada
a vida corporal como meio de reparação. É por isso que ele se acha nessa nova
existência, quer com as pessoas a quem ofendeu, quer em meios análogos àqueles
em que praticou o mal, quer ainda em situações opostas à sua vida precedente,
como, por exemplo, na miséria, se foi mal rico, ou humilhado, se orgulhoso. A
expiação no mundo dos Espíritos e na Terra não constitui duplo castigo para o
Espírito, porém um complemento, um desdobramento do trabalho efetivo a
facilitar o progresso. Do Espírito depende aproveitá-lo. E não lhe será
preferível voltar à Terra, com probabilidades de alcançar o Céu, a ser
condenado sem remissão, deixando-a definitivamente? A concessão dessa liberdade
é uma prova da sabedoria, da bondade e da Justiça de Deus, que quer que o homem
tudo deva aos seus esforços e seja o obreiro do seu futuro; que, infeliz por
mais ou menos tempo, não se queixe senão de si mesmo, pois que a rota do
progresso lhe está sempre franca. 7. Considerando-se quão grande é o sofrimento
de certos Espíritos culpados no mundo invisível, quanto é terrível a situação
de outros, tanto mais penosa pela impotência de preverem o termo desses
sofrimentos, poder-se-ia dizer que se acham no inferno, se tal vocábulo não
implicasse a ideia de um castigo eterno e material. O purgatório 59 Mercê,
porém, da revelação dos Espíritos e dos exemplos que nos oferecem, sabemos que
o prazo da expiação está subordinado ao melhoramento do culpado. O Espiritismo
não nega, pois, antes confirma, a penalidade futura. O que ele destrói é o
inferno localizado com suas fornalhas e penas irremissíveis. Não nega,
outrossim, o purgatório, pois prova que nele nós achamos, e definindo-o
precisamente, e explicando a causa das misérias terrestres, conduz à crença
aqueles mesmos que o negam. Repele as preces pelos mortos? Ao contrário, visto
que os Espíritos sofredores as solicitam; eleva-as a um dever de caridade e
demonstra a sua eficácia para os conduzir ao bem e, por esse meio,
abreviar-lhes os tormentos. Falando à inteligência, tem levado a fé a muito
incrédulo, incutindo a prece no ânimo dos que a escarneciam. O que o
Espiritismo afirmar é que o valor da prece está no pensamento, e não nas
palavras, que as melhores preces são as do coração, e não dos lábios, e,
finalmente, as que cada qual murmura de si mesmo, e não as que se mandam dizer
por dinheiro. Quem, pois, ousaria censurá-lo? Seja qual for a duração do
castigo, na vida espiritual ou na Terra, onde quer que se verifique, tem sempre
um termo, próximo ou remoto. Na realidade não há para o Espírito mais que duas
alternativas, a saber: punição temporária e proporcional à culpa, e recompensa
graduada segundo o mérito. Repele o Espiritismo a terceira alternativa, da
eterna condenação. O inferno reduz-se à figura simbólica dos maiores
sofrimentos cujo termo é desconhecido. O purgatório, sim, é a realidade. A
palavra purgatório sugere a ideia de um lugar circunscrito: eis por que mais
naturalmente se aplica à Terra do que ao Espaço infinito onde erram os
Espíritos sofredores, e tanto mais quanto a natureza da expiação terrena tem os
caracteres da verdadeira expiação. Melhorados os homens, não fornecerão ao
mundo invisível senão bons Espíritos; e estes, encarnando-se, por sua vez só
fornecerão à humanidade corporal elementos aperfeiçoados. A Terra deixará,
então, de ser um mundo expiatório e os homens não sofrerão mais as misérias
decorrentes das suas imperfeições. Aliás, por esta transformação, que neste
momento se opera, a Terra se elevará na hierarquia dos mundos. Nota de Allan
Kardec: Vede O evangelho segundo o espiritismo, cap. XXVII, item Ação da prece.
Nota de Allan Kardec: Idem, cap. III, item Progressão dos mundos. Por que não
teria o Cristo falado do purgatório? É que, não existindo a ideia, não havia
palavra que a representasse. O Cristo serviu-se da palavra inferno, a única
usada, como termo genérico, para designar as penas futuras, sem distinção.
Colocasse Ele, ao lado da palavra inferno, uma equivalente a purgatório e não
poderia precisar-lhe o verdadeiro sentido sem ferir uma questão reservada ao
futuro; teria, enfim, de consagrar a existência de dois lugares especiais de
castigo. O inferno em sua concepção genérica, revelando a ideia de punição,
encerrava, implicitamente, a do purgatório, que não é senão um modo de
penalidade. Reservado ao futuro o esclarecimento sobre a natureza das penas,
competia-lhe igualmente reduzir o inferno ao seu justo valor. Uma vez que a
Igreja, após seis séculos, houve por bem suprir o silêncio de Jesus quanto ao
purgatório, decretando-lhe a existência, é porque ela julgou que Ele não havia
dito tudo. E por que não havia de dar-se sobre outros pontos o que com este se
deu? www. febnet.org.br. Livro O Céu e o Inferno. Abraço. Davi
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