Judaísmo. www.morasha.com.br. Por Arnaldo Niskier
(1935 - ). Foi Presidente da Academia Brasileira de Letras. NOVAS ROUPAGENS DE
ANTIGAS IDEOLOGIAS. O nazismo morreu? E o fascismo? São doenças que vão e
voltam, como certas pragas que merecem a nossa vigilância permanente. Se o
indivíduo tem uma formação nazista - e isso é quase de berço - como se pode
supor que ele seja bonzinho, apesar de nazista? Ainda recentemente, tivemos
esse tipo de discussão com certas lideranças. O governo austríaco mereceu a
mais ampla repulsa das nações democráticas do planeta. Não se pode ter
contemplação com essa gente, que busca reviver, com novas roupagens, a
ideologia que custou a morte de 20 milhões de pessoas inocentes, das quais seis
milhões de judeus. O nazismo morreu? E o fascismo? São doenças que vão e
voltam, como certas pragas que pedem a nossa vigilância permanente. No mundo
que comemora a descoberta do mapa genético dos seres humanos para curar doenças
antes insuperáveis, como se pode conceber a existência de amantes do pensamento
racista, preconceituoso e discriminatório, que marca hoje os neonazistas em
todas as latitudes? Não subsiste a ideia confortável, mas falsa, de que isso é
coisa da Europa. Lá nasceu e prosperou a ideia que teve em Hitler (1889-1945) o seu maior nome,
mas antes mesmo da explosão da comunicação universal, que é mais recente, os
seus lamentáveis princípios alcançaram outros continentes, chegando mesmo ao
Brasil, onde se assinala a presença de skinheads caboclos, capazes de cometer
toda espécie de violência contra minorias, como judeus, negros, ciganos e
homossexuais, como se a esses fosse vedada a possibilidade de viver. A cada
momento, sinagogas são profanadas e livros como o famigerado "Protocolos
dos sábios de Sião" são editados, para despertar a nossa vigilância. Na
semana passada, depois de assistir ao lançamento do segundo romance de Arnaldo
Bloch (1965 - ), "Talk Show", (ano 2000), passamos defronte à recém-inaugurada
sinagoga do Beit Lubavitch, no Leblon, e vimos com pesar um dos seus muros
completamente grafitado. Isso tem cabimento? O fascismo faz uma dupla natural
com o nazismo. A derrota na II Guerra Mundial, com a liquidação do Duce - Mussolini
(1883-1945), não foi lição suficiente para a sua eliminação e ele aparece,
hoje, com diversas facetas igualmente perversas. Como judeus brasileiros, todos
esses elementos mexem com a nossa sensibilidade, a que se deve agregar outra
escola de violência e terror que é o fundamentalismo islâmico, aparentemente em
fase de progressiva expansão. O Irã e o Iraque, como temos visto pelos veículos
de comunicação de massa, sem contar outros países de menor expressão, valorizam
a ideia de que se deve resistir à modernização das sociedades, para implantar
sistemas de governo ditatoriais e fechados. Nada de acordos de paz, nada de
ampliação das oportunidades de acesso feminino ao trabalho regular ou até mesmo
à educação, para que se mantenham os privilégios de famílias e homens que
comandam a política e os interesses nessas nações atrasadas. A quem essa
conduta serve? Governos de pai para filho, como se tornou comum, são
democráticos? Site nazista. Não temos direito ao sossego. Sempre costumo dizer
que é difícil ser judeu, em qualquer circunstância. Difícil e honroso, é claro.
Outro dia minha sogra, Paulina Dain Buchmann, foi alertada por sua amiga,
Bertha Bronstein: "Sabe que no computador do meu filho apareceu uma lista
de 200 judeus brasileiros que devem ser discriminados?" São pessoas que,
felizmente ainda vivas, têm presente na memória o que representou o Holocausto.
Viveram essa época negra da história, perderam parentes, sofreram muito. Sempre
sobra, no seu espírito, a insegurança, de alguma forma, de que esses dias
terríveis possam voltar. E agora aparece, na indescritível Sociedade da
Informação, um grupo de neonazistas brasileiros, possivelmente inspirados por
movimentos de fora, para apontar à execração pessoas que são ou supostamente
poderiam ser judeus brasileiros. O site, como disse Fritz Utzeri (1945-2013),
pode ser encarado como "uma lista de Schindler ao contrário". Coloca
em dúvida a cidadania brasileira dos elementos citados, muitos dos quais
prestam serviços inestimáveis ao País. Eis o endereço do site, com vistas às
autoridades que dispõem de leis antirracistas para aplicar nesses bandidos:
http://www.front14.org/nsww/1s.html. Não seria o caso de ir até as últimas
consequências na condenação dessa gente? Não é uma nova roupagem, agora
eletrônica, de um ódio secular e injustificável? Somos irmãos. O avanço dos
estudos genéticos, com a elucidação do genoma humano, leva à crença de que, por
exemplo, judeus e árabes são irmãos (e não mais somente primos, como se
acreditou durante tanto tempo). Acreditando no mesmo D'us único e
todo-poderoso, tiveram momentos de grande entendimento, como nos mil anos que
conviveram na Espanha. Por que, hoje, também esse sentimento não pode
prevalecer, para o bem dos povos respectivos? O entendimento com o cristianismo
hoje é uma realidade, devida em grande parcela à compreensão desse grande
humanista que é o Papa João Paulo II. Quando ele afirmou, há alguns anos, que
"devemos prestar mais atenção no que dizem os nossos irmãos mais velhos,
os judeus", fincou raízes fortíssimas na valorização da proclamada
civilização judaico-cristã, colocando de lado elementos que aparentemente
justificavam o antissemitismo, como o alegado deicídio atribuído aos judeus.
Foi com esse novo espírito de entendimento que a Editora Vozes, católica,
encomendou-me o "Livro da Sabedoria Judaica", que hoje alcançou
diversas edições, inclusive no mundo hispânico, a partir do México. É por esse
caminho que se pode e se deve alargar o entendimento. Praticar o bem. Se se
deve praticar eficazmente o bem, como queria o filósofo Kant (1724-1804), a
primeira tarefa é fazer da lei moral o grande instrumento de ação. E isso parte
do pressuposto de que se deve ter o homem bom. A razão é de Kant: "Como
pode uma árvore má produzir bons frutos?" Aí vem o papel da educação,
também no conceito do grande filósofo alemão: "O homem só é homem pela
educação". Para que, bem formado, possa praticar os mandamentos que se
encontram na lei de D'us. Semelhante conhecimento de todos os nossos deveres
como mandamentos divinos é, de acordo com os conceitos de Kant, a essência da
religião. Pode existir o encontro entre a filosofia kantiana e o judaísmo. Há
aspectos comuns entre a compreensão de Kant e a confiança judaica no D'us que
abrirá ao seu povo um novo caminho para o cumprimentos dos seus mandamentos,
contra todas as resistências externas dos inimigos ou de um coração pecador.
Isso explica porque filósofos judeus se acercaram do pensamento de Kant, especialmente
Hermann Cohen (1842-1918), Franz Rosenzweig (1886-1929) e Martin Buber
(1878-1965), enquanto no país que foi berço dessa ideias prosperou uma
ideologia que trouxe como consequência a bestialidade da II Guerra Mundial. A
qualidade ético religiosa tão proclamada não foi suficiente para deter os que,
mesmo falando em nome da religião, na verdade não passaram de monstros morais.
Quando o mundo se depara com a revivescência do nazismo, pode-se recordar
Cohen: "O indivíduo emerge para a humanidade ética". E ela pressupõe
respeito e humanidade. A menos que o D'us de que falamos não seja o mesmo D'us
dos criminosos de guerra. É uma hipótese que merece um estudo aprofundado. O
exemplo de Anne Frank (1929-1945). A vida de Anne Frank, em sua curta
existência, tornou-se um símbolo. Conheci a casa, em Amsterdã, onde viveu o seu
martírio. Olhei pela janela em que ela via o céu e, como manifestação humana,
somente havia o campanário da igreja próxima. A casa foi preservada, para que
se recorde sempre o significado do seu sacrifício. Ela morreu no campo de concentração
de Bergen-Belsen, em 1945. Os dois anos de clausura, no sobrado holandês, foram
registrados no seu histórico Diário, para que nada seja esquecido, desse
período trágico. É isso que fazemos, quando recordamos, a qualquer pretexto, o
que representou a perseguição nazista ao nosso povo. Para que não volte jamais.
Brasil: 500 anos de liberdade E o Brasil, em todo esse processo? É sabido que,
desde os primórdios, judeus e cristãos novos habitaram a terra brasilis. Houve
Tribunal do Santo Ofício entre nós, com o sacrifício de dezenas de crentes na
fé mosaica. Mas é indiscutível que vivemos, com raras exceções, numa pátria em
que prevalece a liberdade. As agressões a esse sentimento profundo são exceções
que cumpre condenar, pois causa repugnância qualquer tipo de preconceito ou
discriminação. Tivemos, na história, o registro de grandes amizades. Essa doce
exemplaridade talvez encontre no homem dos Sermões a sua maior figura. O padre
Antônio Vieira (1608-1697), maior representante da eloquência sacra em nossa
literatura, manteve em seus quase 90 anos de vida uma relação de intensa
simpatia com os judeus. Sua família, isenta de preconceitos, registrou diversos
casamentos considerados mistos, na ocasião, como o da irmã Leonarda, casada com
Simão Álvares de Lapenha, com quem teve filhos; Maria de Azevedo casou com
Jerônimo Sodré Pereira; Catarina Ravasco de Azevedo com Rui de Carvalho
Pinheiro e Inácia de Azevedo com Fernão Vaz da Costa. Todos de sangue semita. A
Companhia de Jesus era fortemente influenciada pela chamada "gente de
nação", o que levou Vieira a uma grande identificação com o Velho
Testamento e à defesa candente dos cristãos-novos perseguidos pelo Santo Ofício
e a Ordem Dominicana. Acabaria, ele mesmo, sendo vítima da Inquisição. Foi
pesquisado se tinha sangue impuro, "pois só um judeu defenderia tão
ardorosamente outros judeus". Nada encontraram, era mesmo idealismo do
pregador messiânico, que, chegando à condição de confidente de Dom João IV,
sugeriu-lhe retomar Pernambuco dos holandeses, mas não pela guerra, e sim por
uma compra com o dinheiro emprestado pelos judeus, desde que lhes fosse
permitida a livre entrada no país. É dessa época a construção da primeira
sinagoga brasileira - Kahal Zur Israel (Rochedo de Israel), que começou a ser
pensada em 1630, com a chegada dos primeiros israelitas oriundos da Holanda a
Recife. Eles queriam uma sinagoga e uma escola, da mesma forma que o padre José
de Anchieta, um século antes, falava em construir uma escola ao lado de cada
igreja. São semelhanças que devem ser lembradas. Em 1642 pregou Vieira pela
primeira vez em Lisboa. Havia necessidade de obter recursos financeiros para a
aquisição de navios e armamentos, além da contratação de mercenários, como era
costume na época. Sugeriu ao monarca a cooperação dos judeus - cristãos-novos
ou não - lançando o opúsculo Razões apontadas a el rei D. João IV (1604-1656) a
favor dos cristãos-novos para se lhes haver de perdoar a confiscação de seus
bens, que entrarem no comércio deste Reino. Pode-se compreender o alcance da
sugestão pelo que afirma Mendes dos Remédios, no seu clássico Os Judeus em
Portugal: "Defesa pronta, desassombrada, eloquente, vigorosa, linguagem
forte, lógica incisiva e fulminante. Esse escrito estalou como um trovão... O
que não devia causar menos espanto, apreensão e temores era o saber-se que o
paladino dos cristãos-novos e autor daquela Proposta era um jesuíta, homem
então na pujança da vida e do talento, bem aceito na corte, adorado nos meios
aristocráticos e devotos da capital, intimorato, eloquente, generoso, e cujo
saber e habilidade não conheciam limites - o padre Antônio Vieira". Os
inimigos eram os castelhanos e os holandeses, estes já instalados no Nordeste
brasileiro, especialmente em Pernambuco. O pragmatismo de Vieira pode ser
medido por essa afirmação: "Favorecer aos homens de nação ou admiti-los
neste Reino, na forma que se propõe, não é contra lei alguma, divina ou humana,
antes é muito conforme aos sagrados cânones... O judaísmo não passa de homens
da mesma nação". Com o seu apoio, organizou-se a Companhia de Comércio
para o Brasil, fundamental para a reconquista de Pernambuco, apesar da forte
oposição encontrada. Mas Vieira era muito firme nas suas convicções: "O
Papa, em Roma, admitia judeus públicos (os que viviam na lei de Moisés) e
sinagogas, por que se não havia de consentir em Portugal? O modo de processar
na Inquisição os apóstatas era iníquo". Por isso, a ele se atribui, quando
estava em Roma, a autoria do Memorial a favor da gente de nação hebreia. Foi um
grande e inesquecível amigo dos judeus. Exemplos assim de intercâmbio entre
católicos e judeus servem para consolidar a crença de que devemos ser amigos e
lutar, juntos, pelos mesmos ideais de compreensão e solidariedade.
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