Hinduísmo. www.pt.krishna.com. Por
Satyaraja Dasa (1955 - ). A CONTROVÉRSIA DA REENCARNAÇÃO. Introdução. “Que podemos saber da morte, nós que não podemos entender a
vida?” - Portões da Prece. O que é a vida? Quando nasce uma
criança, podemos ouvi-la e sentir seu calor, sintomas da vida. Às vezes o
recém-nascido está acordado; às vezes não. A criança crescerá, depois morrerá.
Para onde foi sua força vital? Que significou sua curta permanência aqui? Todos
os seres vivos nascem e depois morrem. A maioria de nós não sabe mais do que
isso. Porque muitas respostas para as questões da vida estão envoltas em
mistério religioso e filosófico, poucas pessoas tomam tempo para considerá-las
a fundo. Nascemos em ignorância, criados por pais que, com raras exceções,
também estão confusos sobre a natureza da vida., e a maioria deixa esta vida da
mesma maneira: em ignorância. Existe alguma escolha? Através dos séculos, um
número surpreendente de pensadores inteligentes e não fanáticos acreditaram que
há. “Tenho confiança”, disse Sócrates (470AC399), “que realmente
existe uma coisa como viver de novo, que os vivos surgem dos mortos e que as
almas dos mortos estão em existência.” Ralph Waldo Emerson (1803-1882)
concordava: “A alma vem de fora para o corpo humano, como para uma morada temporária
e torna a sair dela... passa para outras habitações, pois a alma é imortal.”
Passando para o início do século XX, o industrial Henry Ford (1863-1947) disse:
“Adotei a teoria da reencarnação quando tinha vinte e seis anos”. Essa
surpreendente declaração, coloca-o num grupo seleto de americanos dos séculos
XVIII, XIX e XX — Thomas Edson (1847-1931), Benjamin Franklin (1706-1790), Tom
Paine (1737-1809), Henry David Thoreau (1817-1963) e Walt Whitman (1819-1892)
entre outros — que acreditavam que a alma, a energia que anima o corpo, passa
para um novo corpo quando o atual morre. A Lógica da
Reencarnação. Aqueles que creem na reencarnação têm em comum um
sentido de direção, justiça e lógica a respeito de voltar a viver. Sem ela,
nosso universo seria cruel, aleatório e ilógico, no qual uma criança nasce
rica, outra pobre, uma com saúde e a outra com uma doença terminal. Quer
creiamos ou não em Deus, a reencarnação permite que vejamos a condição humana a
partir de uma perspectiva mais ampla. Em suas várias tradições históricas, a
reencarnação sugere coerentemente que esta vida é só um quadro num filme de
vidas e o corpo que temos agora não é o primeiro, apenas o mais recente. Os que
propõem a reencarnação dizem que “o tipo e modelo” de nosso veículo corporal são
o resultado de atividades que realizamos na estrada de nossas vidas anteriores
e as atividades executadas nesta vida contribuem para a espécie de veículo que
habitaremos em nosso próximo nascimento. O princípio de que a ação atual
influencia as vidas futuras chama-se karma, em sânscrito, e é esse
princípio que molda a lógica da reencarnação: para cada ação, reza a lei
do karma, há uma reação, muito semelhante à Terceira Lei do
Movimento de Isaac Newton (1643-1727). Pode-se ver a reencarnação como a colheita
dos frutos da ação: agindo bem, ganha-se um corpo bom; agindo mal, ganha-se um
corpo ruim. A natureza material, respondendo a nossos desejos e ações nesta
vida, prepara nosso próximo corpo. Se temos bom crédito, podemos passar para um
modelo melhor, com todas as características mais sofisticadas. Nosso veículo
corporal refletirá nosso saldo bancário kármico. O equivalente bíblico seria:
“Assim como semeardes, assim colhereis”. Em A República, Platão
(428AC348) parafraseou o mesmo princípio: “Deus não tem culpa: o homem escolheu
o próprio destino e fê-lo por suas ações”. Numa primeira avaliação, há algo de
frio e mecânico em tal lógica. Parece muito impessoal, muito arranjada para ser
uma explicação válida de como as coisas funcionam. Contudo, estudos mais
profundos sobre as várias tradições religiosas do mundo revelam sua beleza e
simetria. A reencarnação não acontece como um evento isolado. Ela se liga de
forma inseparável com o karma e outras leis universais para
formar uma visão tranquilizadora do universo como uma universidade da vida que
oferece ensino e formatura final — muito diferente da visão popular, mas
deprimente do universo como um deserto caótico. Esta última visão nos deixa
impotentes enquanto a primeira nos possibilita arquitetar nosso futuro. Por que
uma alma está enjaulada no corpo de um animal, enquanto outra goza as vantagens
da vida humana? A lógica da reencarnação ordena que, se nos comportarmos como
animais nesta vida, poderemos ter um corpo de animal da próxima vez. Alguém
poderá dizer: “Quem há de querer ser um animal?” Mas nossas atividades traem
nossos verdadeiros desejos, e certas atividades — apetites incontidos de várias
espécies — podem ser satisfeitos melhor nas espécies animais mais robustas.
Cada corpo é equipado com um determinado ponto forte sensorial. O corpo humano
não é tão rápido como o da gazela, não tem tanta capacidade reprodutora como o
do coelho, nem digere tão bem como o do tigre. A reencarnação sugere que
obtemos o que realmente desejamos, o que mostramos querer através de nossas
ações. E às vezes o corpo humano simplesmente não nos dará o conjunto de
sentidos de que precisamos para satisfazer nossos desejos. Poderíamos duvidar
se uma “alma humana” algum dia habitaria um corpo animal. Será que os animais
têm mesmo uma alma? Qualquer um que tenha olhado nos olhos de um animal de
estimação — um cachorro ou um gato — tem a resposta a essa pergunta. Uma pessoa
sensível poderá olhar dentro dos olhos de qualquer criatura viva e perceber o
vínculo genético que une tudo o que vive. Seja o que for aquilo que anima o ser
humano está claramente presente nos corpos de todas as criaturas que respiram.
Isto foi declarado eloquentemente pelo biólogo Edward Sykes: “Pode-se
argumentar que os animais não podem buscar a divindade, mas isso é muito
diferente de dizer que eles não têm alma... É por esta razão que a maioria das
tradições místicas aceitam a doutrina da transmigração, proclamando que a força
vital dos humanos pode um dia aparecer em espécies inferiores e vice-versa...
(1). Como veremos, as religiões do mundo abraçaram historicamente a
reencarnação, porque ela explica que um comportamento ético, moral leva ao
renascimento em forma humana. — A única espécie dotada de inteligência para
procurar Deus. Além disso, a reencarnação corresponde exatamente à lógica da
compaixão de Deus, já que ela fornece oportunidades repetidas para que as almas
condicionadas (corporificadas) se corrijam. As referências das escrituras
indicam uma visão partilhada pelos adeptos das grandes religiões do mundo: Deus
é visto como o Facilitador, um benigno e beneficente Ser Supremo que envia
sugestões úteis através de santos e de escrituras. Com a ajuda delas, o que
busca iluminação pode escapar completamente do ciclo de renascimentos. Definição.
O que queremos exatamente dizer com reencarnação? Esta pergunta tem duas
partes: primeira, uma definição dos termos, porque as palavras associadas com a
reencarnação contam muito sobre o próprio fenômeno. A segunda parte é mais
fundamental: o que é que reencarna de um corpo para outro? É a alma? A mente? A
inteligência? Qual parte de nós é a mais essencial, a parte que continuamos
sendo mesmo depois da morte? A palavra reencarnação compõe-se de cinco
elementos latinos: re-= “de novo”; en-= “para dentro”; carn-= “carne”; ação-=
“causar ou tornar-se”. Reencarnação então significa literalmente “o processo de
voltar à carne”.(2) Está implícita a ideia de que temos alguma coisa que é
separada da carne, ou corpo, que volta depois da morte. A palavra
transmigração, que muitas vezes é usada alternadamente com reencarnação, também
vem do latim: trans-= “através”; migr-= “ir ou mudar-se”; e -ação= “processo de
causar ou de tornar-se”. (3) Transmigração é “o processo de se mudar de um para
outro”. É usada com a mesma frequência de “reencarnação” para significar a
passagem da alma de um corpo para outro. Outras palavras usadas dessa maneira
são renascimento e até mesmo preexistência, que tem um sentido levemente
diferente (indicando nascimentos anteriores). Não se deve confundir reencarnação
com ressurreição, que tem definição muito diferente. Enquanto reencarnação se
refere à força vital (alma) que passa para fora do corpo, ressurreição se
refere à crença religiosa de que um dia seremos transladados de novo no mesmo
corpo, com a mesma identidade e conexões familiares que tivemos durante nosso
tempo na Terra. A maior parte das religiões Ocidentais incorpora algum tipo de
ressurreição em suas crenças. A reencarnação também faz parte da maioria das
tradições religiosas ocidentais, embora relegada em grande parte aos ramos
místicos ou esotéricos dessas tradições. No Oriente, tanto as religiões
convencionais como as seitas místicas aderem à doutrina da reencarnação, embora
poucas deem crédito à ideia de ressurreição. A opinião predominante no Oriente
é que depois da morte o corpo material se decompõe, e seus elementos são
reabsorvidos pela terra. É a alma não material que continua. O que é
que reencarna? A maioria das pessoas se identifica com seus corpos
grosseiro e sutil — a forma física e a mente/inteligência que a acompanha.
Quando se pergunta a alguém quem ele é, a resposta mais comum é um nome, uma
profissão, uma descrição de sua religião (isto é, de sua fé adquirida) ou de
sua filiação política. Às vezes, ele se identifica com as relações familiares,
sua herança ou suas “raízes”. Outros têm uma identificação mais psicológica e
se consideram sensíveis, racionais e honestos. A maior parte dos leitores seria
capaz de se identificar com os traços de personalidade sugeridos acima ou com suas
infinitas variações. E, à primeira vista, parece apropriado a pessoa se definir
com tais palavras e conceitos, ao menos em sentido prático, cotidiano. Mas,
deixamos de existir se mudamos de nome? Ou se perdemos o emprego? Ou se nos
convertemos a outra religião? Se nosso sentido de moral e ética ficar
comprometido? De fato, se todos os traços acima desaparecerem, nós nos
transformaremos numa não entidade? A pergunta continua: Quem somos além dessas
mutáveis designações materiais? Platão descreveu a existência neste mundo
como metasy, um “estado intermediário”. Para ele, os seres vivos
eram uma combinação de matéria e espírito, uma centelha do eterno presa na teia
da temporalidade, uma pitada de conhecimento submersa num oceano de ignorância,
uma entidade bem-aventurada, capturada num mundo de dor e loucura. A maioria
das formas de pensamento oriental concorda com essa opinião. Segundo a antiga
literatura védica da Índia, por exemplo, os seres vivos são essencialmente
criaturas espirituais que nasceram no mundo da matéria devido a uma série de
desejos complexos, mas sutis. Tais almas encarnadas chamam-se em
sânscrito tatashta-shakti. A raiz tatha significa
a linha hipotética que separa a terra do mar. Algumas vezes a água cobre a
terra, outras, ela se afasta. A verdadeira natureza dos seres vivos neste
mundo, às vezes, está encoberta pelo esquecimento, outras, ela se revela. Pode
alguém provar que somos essencialmente espirituais, que somos uma alma eterna
que mora provisoriamente num corpo material? Algumas pessoas acham que a
resposta pode estar na maneira como os cientistas lidam com as partículas
subatômicas: sua existência é aceita devido aos efeitos que produzem a seu
redor. Em outras palavras, embora as partículas subatômicas de fato não sejam
vistas, sabe-se que elas existem devido ao efeito que produzem. De igual
maneira, pode-se conhecer a existência da alma por uma análise detalhada dos
elementos materiais. No Oriente, essa análise se chama filosofia Sankhya, e é
uma ciência antiga, mas muito precisa. Outros acham que os métodos empíricos de
percepção direta são ferramentas insuficientes para observar fenômenos sutis e
devem ser suplementados por instrumentos mais intuitivos. A prova por
inferência não é exclusiva da ciência teológica; é uma ferramenta básica das
ciências físicas e faz parte de nossas próprias vidas diárias. Nunca vimos o
coração de nossos entes queridos, mas não duvidamos que eles existam. Jamais
vimos nossos antepassados, mas nossa existência é prova suficiente de que eles
também algum dia existiram. Talvez seja a importante significação de haver uma
alma invisível animando nosso próprio corpo que torna sua existência tão mais
difícil de aceitar do que a do próton. Que descobrimento mais chocante
poderíamos fazer do que descobrir nossa própria imortalidade? Em última
análise, sejam quais forem nossas crenças, alguma coisa separa os seres vivos
da matéria inorgânica. Algo está presente na vida que está ausente na morte. Os
componentes físicos e químicos do corpo permanecem no lugar quando ele morre: o
coração, o cérebro, a estrutura do esqueleto e cada elemento químico presente
no corpo durante a vida; mas algo mais, algo não-físico, ficou perdido. Como
quer que se escolha chamá-lo, essa força vital não-física distingue um corpo
vivo de uma concha química inerte. O que sabemos sobre esse elemento único que
permeia o corpo? Sabemos que a ciência clássica o rejeitou junto com o dogma
religioso — ao menos enquanto se referiam a ele como “a alma” — e sabemos que
ele foi aceito pelos religiosos em toda a história, com poucas exceções. Com o
interesse de encontrar um termo aceitável tanto pela ciência clássica como pela
religião, falaremos de “consciência”, porque a ciência estuda a consciência
como pelo menos uma força potencialmente não-material dentro do corpo, e as
pessoas religiosas, muitas vezes, aceitam a consciência como sinônimo ou, pelo
menos, como sintoma da alma. O Sintoma da Alma. A consciência
é a parte mais fundamental da experiência humana; nada é mais íntimo nem mais
imediato. Toda impressão sensorial — tal como ver as palavras nesta página —
significa alguma coisa para nós porque somos conscientes. Uma cadeira não
registra impressões sensoriais; ela não é consciente; ela não tem alma. Mas eu
sim, eu existo, tenho uma alma. Será que tenho alma ou tenho corpo? Quem sou eu
— a alma ou o corpo? Os antigos textos das escrituras, especialmente aqueles da
Índia, simplificam questões ontológicas fundamentais. Por exemplo, em certas
escolas clássicas que remontam à tradição do Vedanta, existe um exercício
elementar que é mais ou menos assim: Posso ter consciência de meu corpo? Posso
ter consciência da mão? Das pernas? Do rosto? Do coração? Da mente? Sim, posso
estar consciente de qualquer parte de meu corpo, seus prazeres, suas dores.
Agora, pode o corpo ter consciência de si mesmo? A resposta imediata é não. Meu
corpo não pode estar consciente de si mesmo; antes, eu tenho consciência de meu
corpo. Essa simples reflexão sobre a natureza da consciência deixa claro que
existe uma separação entre o corpo e o eu, o ser vivo interior que tem
consciência do corpo. Para ampliar essa ideia, admitamos que não sabemos se o
corpo é realmente consciente de si mesmo. Não sabemos por que não somos o
corpo. Em verdade, não posso dizer se meu dedo, peito ou cérebro estão
conscientes de si mesmos. Nem eles me dizem algo de suas (prováveis) percepções
porque nenhum deles é um ser, uma personalidade. Eles são, ao menos
empiricamente, inconscientes. Portanto, concluem os textos do Vedanta,
consciência é personalidade e personalidade é consciência. Os videntes védicos
extraíram várias implicações dessas conclusões, e estas, por sua vez, levam a
outros exercícios simples de compreensão. Meu dedo não é uma pessoa. Nem minha
perna, nariz, orelha, cérebro, ou todo o meu corpo. Esses acessórios do eu não
me podem dizer quem sou eu ou quem são eles, nem individual nem coletivamente,
porque nenhum deles é um eu, uma personalidade. Nenhum deles possui experiência
de si. Sou eu que experimento as coisas, através deles e neles. Conclui-se,
portanto, que eles são diferentes da pessoa no corpo que experimenta — porque
esta sou eu, o possuidor da consciência. Os mestres modernos do Vedanta, muitas
vezes, assinalam que a distinção entre o corpo e o eu estou refletida em nossa
linguagem, pois o pronome possessivo sugere que eu sou diferente de meu corpo.
A diferença entre o corpo e o eu, é percebida na vivência cotidiana. Para onde
vai a energia que existe dentro do corpo na hora da morte? Segundo a concepção
da Primeira Lei da Termodinâmica, ou a Lei da Conservação da Energia,
basicamente a energia não pode ser criada ou destruída. Se ela existe, ela
continua a existir. De igual forma, se a “alma” existe mesmo, como vimos que
existe, então ela deve continuar existindo. Como disseram os sábios da Índia:
“Para o existente não há cessação, e para o não-existente — como um sonho ou
uma ilusão — não há permanência”. A natureza fornece muitas insinuações que
sugerem uma resposta sensata. Consideremos, por exemplo, as mudanças que
sofremos em nosso corpo durante esta vida, da infância, para a juventude, para
a velhice — mudanças que ocorrem enquanto a pessoa permanece num mesmo corpo.
Fisiologicamente, as células de nosso corpo deterioram-se constantemente e
morrem, de modo que, depois de cerca de sete anos, a estrutura celular do corpo
foi substituída por completo. Em O Cérebro Humano, o Professor John
Pfeiffer (1920-1996) assinala que “seu corpo não contém nenhuma das moléculas
que continha há sete anos”. Ele compara o corpo vivo a um turbilhão. A forma
essencial parece ser a mesma, mas todos os ingredientes precipitam-se num ritmo
vertiginoso. Numa vida de setenta anos, uma pessoa fisiologicamente “morre” e
“renasce” dez vezes, e, embora as “mortes” intermediárias não envolvam
reencarnação como tal, elas nos permitem a notável experiência de olhar para
trás, nesta vida, para vidas anteriores: como bebês, crianças, jovens, adultos.
É obvio que, estritamente falando, elas não são vidas passadas: os indícios
existentes sugerem que a reencarnação só raramente nos permite levar a
lembrança de nossa vida anterior para nossa nova vida. Elas estão, mesmo assim,
além de eus físicos que não existem mais. Corpos diferentes, a mesma pessoa —
um simples exercício de ver a diferença entre o eu físico e o eu espiritual, em
ver quem parecemos ser e quem realmente somos. (4). E quanto à nossa perda de
memória de uma vida para outra: um conjunto crescente de evidências científicas
sugere existir forte razão para esse esquecimento. Parece que grandes
quantidades de oxitocina, um dos hormônios da glândula pituitária posterior
(que aumenta as contrações do útero durante o parto e impede hemorragia
subseqüente), produz perda de memória em animais de laboratório e faz que mesmo
animais bem treinados percam sua capacidade de realizar tarefas que, em outras
circunstâncias, são fáceis. Como a oxitocina da mãe banha o sistema da criança
durante as últimas fases da gravidez, não é absurdo supor que essa droga
natural leve embora as memórias das encarnações anteriores junto com a
lembrança consciente do nascimento. (5) Não que o apagamento do quadro da
memória não aconteça na vida fora do ventre. A incapacidade que adultos
inteligentes têm de lembrar seus primeiros anos e a frequente perda de memória
entre os idosos é, talvez, a maneira como a natureza ensina a relativa
insignificância da memória consciente. Além disso, é sem dúvida um ato de
misericórdia infundir o esquecimento em uma alma que está nascendo de novo:
imaginem a dificuldade de tentar viver uma vida enquanto perturbado pelas
lembranças da vida anterior. A pessoa mal conseguiria desenvolver relações com
sua nova família e amigos e aprender as lições necessárias, se fosse forçada a
lembrar suas encarnações anteriores. Os amores e as perdas anteriores poderiam
fazer que as novas aventuras na vida parecessem fúteis. A Reencarnação
e a Cultura Ocidental. Embora as ideias sobre a reencarnação em geral
estejam associadas a grandes pensadores do Oriente, esse conceito tem também
uma longa e honrosa história na cultura ocidental. As ideias reencarnacionistas
no Ocidente podem ser encontradas no século VI antes de Cristo, mais ou menos
na época de Orfeu e, pouco mais tarde de Pitágoras. Sócrates, que conhecemos
através dos escritos de seu discípulo, Platão, (século III A C.), explicou o
sentido da palavra “alma” fazendo referência aos poetas órficos, que viam o
corpo como uma prisão para a alma que cumpria sua pena presa no mundo da
matéria. O Orfismo se desenvolveu numa religião oculta e ficou bem conhecido
por causa de sua relação com o deus popular Dioniso, outro nome comumente
associado ao pensamento reencarnacionista. Pitágoras também se liga intimamente
à antiga doutrina da reencarnação. As Metamorfoses de Ovídio
contêm um discurso em que Pitágoras dá pleno apoio à idéia da transmigração.
Segundo Diógenes Laércio, do século I da era cristã, um dos mais importantes
biógrafos de Pitágoras, este foi o primeiro a dizer que “a alma, presa ora
nesta criatura, ora naquela, assim percorre uma ronda ordenada pela
necessidade”. Uma das mais conhecidas referências à crença de Pitágoras na
reencarnação, encontra-se numa afirmação de Xenófanes: “E uma vez, dizem,
passando quando batiam num cachorrinho, teve piedade dele, e falou o seguinte:
‘Pare! Pare de bater, porque ele é a alma de um homem que foi meu amigo. Eu
reconheci quando o ouvi chorar alto’”. (6) Diógenes também registra que
Pitágoras alegava ser capaz de lembrar suas vidas passadas. Iâmblico, biógrafo
do século IV da era cristã, acrescenta que Pitágoras fazia grandes esforços
para ajudar também outras pessoas a descobrirem detalhes de suas vidas
anteriores. (7) Dois outros filósofos gregos antigos, embora não tão populares,
também são relacionados com a reencarnação: Píndaro e Empédocles. Píndaro é
famoso como um dos maiores poetas líricos gregos e, na primeira metade do
século V A C., seus poemas eram uma fonte popular de material sobre a
reencarnação. Gordon Kirkwood escreve que Píndaro foi o primeiro dos poetas
gregos a falar sobre recompensa depois da morte para a justiça e a excelência
moral. (8) Empédocles, que viveu mais ou menos na mesma época, enfatizava outro
aspecto da transmigração. Ele ensinava que as almas deste mundo tinham sido
originalmente deuses em um reino superior que caíram no mundo corporificado
devido à realização de alguma ação inapropriada. Eles foram condenados, pensava
o filósofo, a um ciclo de trinta mil nascimentos, numa variedade de espécies,
inclusive plantas e peixes. No final, diz Empédocles, a pessoa é restaurada à
sua condição natural no reino espiritual superior, para não renascer mais. (9).
Quando passamos para época de Platão (um ou dois séculos mais tarde),
encontramos a culminação desses pensamentos sobre a reencarnação. O preeminente
filósofo grego e seu mestre, Sócrates, eram, pode-se afirmar, os mais
importantes defensores da doutrina da reencarnação. “O verdadeiro peso e
importância da metempsicose no Ocidente”, diz a Enciclopédia Britânica (11a.
Edição), “deve-se a ela ter sido adotada por Platão”. A primeira referência
clara à reencarnação nas obras de Platão está no Mênon, em que
Sócrates articula e aceita a idéia. Mais tarde, no Fédon, a ideia
se desenvolve mais completamente, e Sócrates se esforça muito para explicá-la,
dizendo que a alma é invisível, não composta, sempre a mesma e eterna; que a
alma é imortal e não deixa de existir após a morte. Sócrates diz que a pessoa
não aprende coisa nova de fato nesta vida, antes, recorda verdades de vidas
anteriores. (10) O argumento mais famoso no Fédon é o
argumento dos opostos, que era bem conhecido na antiga cultura grega. Sócrates
argumentava que os opostos estão em toda a parte. Nós os vemos em todos os
lugares — maior e menor, melhor e pior, mais forte e mais fraco, justo e
injusto e assim por diante. E os opostos surgem um do outro: um homem se torna
mais forte tornando-se menos fraco, por exemplo. Esse princípio, argumenta
Sócrates, deve aplicar-se à vida e à morte: os mortos vêm dos vivos e os vivos
vêm dos mortos. Essa conclusão está conforme a observação cotidiana, ao menos
em parte, pois todos já observaram alguma forma de morte, que é o resultado
natural da vida. Sócrates conclui que, “tornar-se vivo” é de fato “tornar-se o
oposto de morto”. Portanto, a vida vem da morte. A doutrina da reencarnação,
diz ele, facilita mais o percurso lógico da alma. Muitos dos argumentos lógicos
a favor da reencarnação encontrados no Fédon ecoam as palavras
da antiga escritura indiana, o Bhagavad-gita. De fato, as doutrinas
estão tão intimamente relacionadas que é provável que Platão tivesse
conhecimento do texto indiano. Vê-se isso de forma ainda mais clara na mais
famosa obra de Platão, A República, quando ele conta a história de
Er, que foi morto em combate, mas que “retornou” enquanto seu corpo estava
deitado numa pira funerária. Er descreve a permanência da alma com detalhes
gráficos, deixando claro que Platão aceitava totalmente a doutrina da
reencarnação apresentada antes por seu célebre mestre. Essas ideias têm
desenvolvimento mais completo no Fedro e no Timeu,
onde Sócrates articula uma forte crença na transmigração. O principal discípulo
de Platão, Aristóteles, porém, não partilhava do entusiasmo de seu mestre pela
ideia da reencarnação. Nem as escolas posteriores do estoicismo e do
epicurismo, que diminuíram a importância dessa doutrina. A era da ciência e do
materialismo trouxe consigo uma sensibilidade distintamente “deste mundo” que
quase acabou com a antiga idéia da reencarnação. Embora houvesse uma premissa
espiritual subjacente tanto ao estoicismo quanto ao epicurismo, e mesmo a
muitas das ideias promulgadas por Aristóteles, (cujas primeiras obras, tais
como o Eudemo, aceitavam a ideia de preexistência e reencarnação),
essas ideologias prepararam o campo para as filosofias mais empíricas que
vieram a seguir. A ciência e a tecnologia, com sua ênfase imediatista no aqui e
agora, devem muito ao caminho preparado por Aristóteles. Seria necessário
assinalar que Aristóteles, embora fosse um pensador brilhante, tem sido
severamente criticado por filósofos através dos séculos por sua teoria da
“separação de ideias”, ou “lógica das categorias”, que propõe que tudo se
encaixa em harmonia em seu compartimento: religião é religião, ciência é
ciência, história é história, etc. O problema, contudo, é que a realidade não
funciona dessa maneira. As categorias se sobrepõem. A religião interage com a
história, e a ciência com a religião, e assim por diante. A perspectiva de
Aristóteles, a esse respeito, foi a precursora da atual desacreditada visão
ocidental do mundo, no qual o funcionamento harmônico de várias categorias de
existência simplesmente não acontece. Segundo Aristóteles, por exemplo, a
ciência era capaz de se desenvolver sem o contrapeso da religião, e a religião
sem a ciência, tornando ambas as categorias de existência menos eficientes e
menos representativas da realidade como ela existe de fato no mundo de verdade.
Ainda se deve mencionar que, junto com a introdução da ciência e do pensamento
aristotélico, veio uma tendência dos religiosos de comprometer suas convicções
mais esotéricas a fim de reter algum grau de poder num mundo que se modificava
com rapidez. O cristianismo como é praticado pela maioria dos que vão à igreja
hoje, por exemplo, não menciona a reencarnação, embora, a noção de
transmigração tenha desempenhado um papel central na primitiva teologia cristã.
As formas de cristianismo amplamente aceitas hoje foram moldadas em grande
parte por Tomás de Aquino, que baseou toda a sua visão de mundo na lógica
aristotélica e rejeitou os aspectos mais místicos de sua própria tradição,
inclusive a idéia de reencarnação. Os cristãos que têm predileção por essa
forma de sua religião podem ter interesse em saber que a visão
aristotélico-tomista é contrabalançada pelas tradições platônico-franciscanas
que são igualmente cristãs, as mais simpáticas a uma filosofia que inclua a
reencarnação. Ambos os pontos de vista cresceram lado a lado, com defensores e
opositores ao longo de todo o caminho. O Império Romano em seus primórdios,
pouco depois da época de Jesus, viu um ressurgimento do pensamento
reencarnacionista. Plutarco (46-120 d.C.) escreveu com autoridade sobre o
conceito de transmigração, como o fez Porfírio no século III. Porfírio citou
muitas vezes os mitraístas como sua fonte de informação a respeito da reencarnação
e isso também levou os eruditos a acreditar que a idéia era dominante entre as
primitivas seitas cristãs. A reencarnação tem um papel poderoso em cada uma das
cinco maiores tradições religiosas do mundo — hinduísmo, budismo, judaísmo,
cristianismo e islamismo. Para finalizar, devemos examinar as evidências
científicas e filosóficas apresentadas aqui que indicam a possibilidade da
reencarnação e tirar conclusões baseadas nas implicações óbvias dessas
evidências.
Notas
1 Edward Sykes, Studies in Biology: Humans and Animals (New
York: Edington Press, 1987),págs. 25-30.
2 John Algeo, Reincarnation Explored (Wheaton, Ill.:The
Theosophical Publishing House, 1987), págs. 133-4.
3 Ibid.
4 Há um argumento de que, neurologicamente, as células do cérebro de fato
não são substituídas, mas apenas sofrem ''mudança radical''. Vemos isso como
petição de princípio. Quantas mudanças constituem uma substituição? Se uma
célula passa por uma mudança -- mudando de célula x para célula n -- a célula n
não substitui realmente a célula x? A questão continua a mesma: algo que ''não
varia nem muda no meio de coisas que variam e mudam'', como disse Platão, anima
o corpo neurobiológico.
5 Para saber mais sobre este assunto, veja Joe Fisher, The Case
for Reincarnation (New York: Bantam Books, 1984), pág. 83.
6 Ver Platão, Crátilo 400c.
7 Ver Diogenes Laertius, Lives of Eminent Philosophers,
trad., R.D.Hicks, Loeb Classical Library, dois volumes (London: William
Heinemann, 1925). Ver 2:333; 8.14.
8 Diogenes Laertius, 8.36.
9 Ver Iamblichus, Life of Pythagoras, trad.Thomas Taylor
(London: John M. Watkins, 1818), págs. 30-1.
10 Gordon Kirkwood, ed., Selections from Pindar, American
Philological Association Textbook Series, no.7(Chico, California: Scholars
Press, 1982), pág. 71.
11 Empedocles, Purifications, 146-7. É também digno de nota que
Empédocles considerava matar animais, mesmo que com a importante finalidade de
servir de alimento, como um pecado que causava o renascimento na espécie mais
baixa.Esta idéia foi depois atribuída a influências órficas e pitagóricas sobre
Empédocles. Veja Purificações, 118-27.
12 Fédon, 69d-72a. Ver também 78b-80c e 105c-106e para
argumentos completos sobre a eternidade da alma e o renascimento.
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