Budismo. www.budavirtual.com.br. Texto
de Yongey Mingyur Rinpoche (1975- ). Tradução de Marcos Bauch. TRATE
A TODOS COMO UM BUDA. “As poucas vezes em que pessoas me perguntam sobre ética
são quando ocorrem escândalos ou controvérsias nas comunidades budistas”, diz
Mingyur Rinpoche. Mas, como ele observa, a conduta ética sempre foi central
para o caminho budista. Aqui, ele explica o que significa viver uma vida
virtuosa, o que um aluno deve procurar em um professor, o que fazer quando
ocorrerem violações éticas graves e muito mais. Como professor budista, muitas
vezes me perguntam sobre meditação e princípios budistas profundos, tais como
interdependência e vacuidade. Fico feliz em compartilhar o que sei sobre esses
tópicos. Mas tenho notado que as pessoas raramente me perguntam sobre ética e
como viver uma vida virtuosa. É verdade que a meditação é
importante na tradição budista. Não há dúvida sobre isso. O mesmo pode ser dito
sobre estudar ideias e filosofias budistas. Mas, em muitos aspectos, a ética e
a virtude são o fundamento do caminho budista. O próprio Buda viveu uma vida de bondade, humildade e compaixão.
Ele incorporou completamente os ensinamentos que deu, e a sangha que cresceu ao
seu redor seguia seu exemplo. Houve muitas ocasiões em que os alunos começaram
a sair dos trilhos e agiram de forma inadequada – algumas vezes de forma
hilária -, mas esses incidentes foram utilizados como oportunidades para
esclarecer valores importantes e para mostrar à comunidade como viver uma vida
de virtude. Desde os primórdios do budismo, a conduta ética foi tão central
para o caminho quanto a meditação, o estudo e a contemplação. Hoje em dia, as poucas vezes em que as pessoas me perguntam sobre
ética são quando ocorrem escândalos ou controvérsias nas comunidades budistas.
Apesar da clara importância da não-violência e da compaixão na tradição
budista, muitos estudantes não sabem como lidar com essas situações. Eu consigo
entender por que eles ficam confusos. Existem muitas linhagens e escolas
budistas diferentes e é difícil acompanhar todos os seus diferentes
ensinamentos, práticas e estruturas éticas. Isto é
especialmente verdadeiro na tradição tibetana, onde temos TRÊS ABORDAGENS DIFERENTES – QUE CHAMAMOS DE YUNAS OU
“VEÍCULOS” – unidas em um único caminho de prática budista.
Estes são, o veículo Fundamental da liberação individual, o veículo Mahayana da
grande compaixão e o veículo Vajrayana do despertar indestrutível. Essa
combinação é um dos aspectos únicos e belos do budismo tibetano, mas que nem
sempre torna as coisas mais simples. ÉTICA
NO BUDISMO TIBETANO. No
budismo tibetano praticamos os três yanas juntos, e isso
inclui a prática da ética. Deixe-me esclarecer. O princípio ético mais básico no yana da
liberação individual é a não-violência, o compromisso de evitar prejudicar os
outros a todo custo. Quando adicionamos o Mahayana,
não nos esquecemos da não-violência, mas damos um passo adiante, com a prática
de bodhichitta. Este é o compromisso de ajudar todos os seres a se
tornarem completamente iluminados. Por fim, o Vajrayana traz a
noção de percepção pura. Ao praticar o Vajrayana, permanecemos firmemente
fundamentados na não-violência e na motivação altruísta de bodhichitta,
mas tomamos a visão da fruição. Nós tratamos tudo e todos como a personificação
do despertar. Comprometemo-nos a ver a nós mesmos, aos outros e ao mundo que
nos rodeia como fundamentalmente puro, completo e perfeito. Este ideal de percepção pura é incorporado no princípio de samaya,
os compromissos formais aos quais um praticante Vajrayana adere. Há muitos
detalhes sobre samaya, mas colocando de forma simples, a essência
de samaya é praticar a percepção pura da melhor forma, dentro
de suas habilidades. Muitas pessoas não compreendem samaya e
pensam que se refere apenas a ver o professor como um buda, um ser
completamente iluminado. Isso é parte dosamaya, mas falta o ponto
chave. Samaya é sobre ver tudo e todos pela da lente da
percepção pura. O único propósito de ver o professor como um buda é para que
possamos ver essas mesmas qualidades despertas em nós mesmos, nos outros e no
mundo que nos rodeia. É uma ferramenta que nos ajuda a ganhar confiança na
pureza da nossa verdadeira natureza. A prática Vajrayana está
enraizada nos ideais de não-violência e grande compaixão. Não há Vajrayana sem
eles. Então como podemos usar esses princípios para nos guiar em questões
importantes, como encontrar um professor autêntico e trabalhar com os
inevitáveis desafios que surgem na vida em comunidade? O
PONTO DA PRÁTICA. O
primeiro ponto que eu gostaria de trazer é, provavelmente, óbvio. Nossa prática
deveria revelar o melhor em nós enquanto seres humanos. Ela deveria aflorar a
nossa sabedoria inata, a nossa sanidade básica e a bússola moral que todos nós
temos (mesmo que a gente não saiba disso). A maneira mais básica de medir nossa prática, portanto, é o grau
em que nos aproximamos dos ideais simples de bondade, humildade, honestidade e
sabedoria. Se – como indivíduos ou como comunidades – nos vemos indo na direção
contrária, algo está fora do trilho. Nenhum de nós atuará perfeitamente em
todas as situações, mas com o tempo deveria haver um movimento claro em direção
a esses valores humanos básicos e universais. Isto é especialmente verdadeiro para professores espirituais.
Professores budistas são modelos e guias para as comunidades que lideram, e
representam a tradição budista para o mundo não-budista. Se, como estudantes
dos ensinamentos do Buda, nos esforçamos em sermos gentis, humildes e dedicados
à prática, então faz sentido achar que nossos guias deveriam personificar essas
qualidades. Eles deveriam nos inspirar com a sua bondade e devoção. Eles
deveriam incutir confiança pelo cuidado e preocupação que eles demonstram com
os outros. Claro, não devemos esperar a perfeição, mas nem é preciso dizer que
as pessoas que guiam outro deveriam praticar o que pregam. ENCONTRANDO
UM PROFESSOR GENUÍNO. Quando
se trata de encontrar um professor genuíno, existem quatro coisas que são
especialmente importantes. O primeiro é que o professor deveria fazer parte de uma linhagem
autêntica. Os professores genuínos não se promovem; eles promovem sua linhagem.
Se um professor se gaba de suas qualidades e realização e faz de sua prática um
show, isso provavelmente é uma indicação de que algo não está certo. Mas se um
professor estudou e praticou sob a orientação de outros professores respeitados
e honra sua linhagem ao defender seus valores e tradições, isso é um bom sinal.
A linhagem sozinha não faz um professor ser genuíno, mas é importante. A segunda qualidade que devemos procurar é o comprometimento em
estudar e praticar. Este é bastante óbvio. Você não tomaria aulas de piano de
alguém que não toca bem, não é mesmo? Claro que não. O mesmo se aplica aqui. Se
você confia seu bem-estar espiritual à alguém, você deve ter certeza de que
essa pessoa conhece o caminho em primeira mão. Para isso, eles devem ter um
compromisso claro com sua própria prática e treinamento. A terceira qualidade essencial é a compaixão. Como estudantes,
precisamos ter certeza de que nosso professor está do nosso lado – de que eles
levem nossos melhores interesses no coração e se preocupem profundamente
conosco e com nosso progresso no caminho. A confiança é fundamental aqui.
Um professor genuíno é confiável e coloca as necessidades do aluno em primeiro
lugar. O sinal de que um professor tem essa qualidade é que os alunos se sentem
seguros e protegidos sob seus cuidados. Eles sabem que, não importa o que
estiver acontecendo em sua vida, seu professor sempre estará lá para
orientá-los e apoiá-los. A quarta e última qualidade é
aquela que se relaciona mais diretamente com a ética. Um professor genuíno
deveria sustentar seus votos e preceitos. Na tradição tibetana, isso significa
que ele mantém todos os votos monásticos ou leigos que tenha tomado, adere aos
votos de bodhisattva do Mahayana e mantém os votos de samaya do
Vajrayana. Isso não é algo fácil, mas é muito importante.
Há muitos detalhes incluídos neste ponto, e, como estudantes, talvez não
possamos saber exatamente quais os votos que uma pessoa detém. Mas podemos
perguntar e verificar se há alguma dúvida sobre o comportamento ou a conduta de
um professor. Esse é uma boa forma de começar. Nestes tempos, não é fácil encontrar um professor perfeito. O tempo
do Buda, quando as pessoas pareciam se iluminar simplesmente aparecendo na
frente dele, já se foi. Podemos não encontrar um professor que incorpora
perfeitamente essas quatro qualidades, mas ele deve ter todas elas até certo
ponto. Se uma ou mais dessas qualidades está completamente ausente em um
professor, provavelmente é melhor seguir procurando. DEIXANDO
UM PROFESSOR. Essas quatro
qualidades são uma boa orientação geral a seguir ao procurar um professor. Mas,
mesmo quando fazemos o nosso melhor para primeiro investigar um professor,
muitas vezes nós só conhecemos o professor realmente depois que nos tornarmos
seus alunos. No mundo moderno, a maioria de nós não tem um mosteiro ou um
especialista budista por perto. Nós não conhecemos, necessariamente, todos os
detalhes sobre um professor, ou nem mesmo temos alguém a quem possamos
perguntar. Então, o que fazemos quando descobrimos que um professor não é
exatamente o que esperávamos? Muitos estudantes do budismo tibetano pensam, erroneamente, que
não podem ou não devem abandonar um professor depois de se comprometerem com
ele. Não é bem o caso. O ponto principal da relação professor-aluno é que ela
deve beneficiar o aluno. Não deveria visar o ganho ou lucro do professor. Se
você tentou o seu melhor e descobriu que não deu certo, você pode procurar
outro professor. Isso não é um problema ou falha pessoal. É bom senso. A melhor maneira de sair é fazê-lo sem falar mal do professor ou
criar dificuldades para aqueles que podem se beneficiar do professor e da
comunidade. Saia de forma amigável, ou pelo menos, não saia em condições ruins.
Basta seguir em frente com humildade e não se sinta mal com o fato de que não
funcionou. A ressalva que eu gostaria de acrescentar aqui
é que é importante ser honesto consigo mesmo. Deixar um professor ou uma
comunidade em que você não se ajustou bem é compreensível, mas se você achar
todos os professores indignos do seu tempo, então talvez você possa olhar mais
fundo, olhar os seus próprios padrões, para ver o que está acontecendo. Pode
ser difícil fazer qualquer progresso no caminho se você estiver procurando pela
perfeição. VIOLAÇÕES ÉTICAS GRAVES. Contudo, o assunto é totalmente
diferente quando um professor está cometendo graves violações éticas. Deixar um
professor em condições amigáveis faz sentido quando o caso é apenas uma questão
de adequação entre professor e aluno. Quando o caso é que pessoas estão sendo
feridas ou leis estão sendo quebradas, a situação é diferente. Nesse caso, a violação das normas éticas precisa ser abordada. Se
ocorreu abuso físico ou sexual, ou se há impropriedade financeira ou outras
violações éticas, é do melhor interesse dos alunos, da comunidade e, em última
instância, do professor, resolver os problemas. Acima de tudo, se alguém está
sendo prejudicado, a segurança da vítima vem em primeiro lugar. Este não é um
princípio budista. Este é um valor humano básico e nunca deve ser violado. A resposta apropriada depende da situação. Em alguns casos, se um
professor atuou de forma inadequada ou prejudicial, mas reconhece o erro e se
compromete a evitá-lo no futuro, então, lidar com o assunto internamente pode
ser adequado. Mas se existe um padrão recorrente de violações éticas, ou se o
abuso é extremo, ou se o professor não está disposto a assumir a
responsabilidade, é apropriado trazer o comportamento à público. Nestas circunstâncias, não é uma violação de samaya trazer
informações dolorosas à tona. Apontar comportamentos destrutivos é um passo
necessário para proteger aqueles que estão sendo prejudicados ou que correm o
risco de serem prejudicados no futuro e salvaguardar a saúde da comunidade. LOUCA
SABEDORIA. A tradição Vajrayana
tem histórias de iogues, ioguines e professores excêntricos que usaram métodos
extremos para orientar seus alunos. A história de Marpa pedindo a Milarepa para
construir e depois desmantelar uma série de torres de pedra é, talvez, o
exemplo mais famoso disso. Esta tradição de “louca sabedoria” pode ser
autêntica, mas, infelizmente, muitas vezes é invocada como uma racionalização
para comportamentos antiéticos que não tem nada a ver com sabedoria ou
compaixão. A coisa mais importante a saber sobre esses estilos de ensino
incomuns é que eles são destinados a beneficiar o aluno. Se eles não estão
enraizados na compaixão e na sabedoria, eles não são genuínos. Ações que são
enraizadas na compaixão e na sabedoria – mesmo quando pareçam ser estranhas,
excêntricas ou mesmo iradas – não provocam medo ou ansiedade. Elas fazem
florescer a compaixão e sabedoria no aluno. Em outras
palavras, os resultados de uma verdadeira “louca sabedoria” são sempre
positivos e visíveis. Quando um professor usa uma abordagem extrema, enraizada
na compaixão, o resultado é crescimento espiritual e não trauma. Trauma é um
sinal claro de que o comportamento de “louca sabedoria” não contava com a
sabedoria para ver o que realmente beneficiaria o aluno, ou a compaixão que
coloca o interesse do aluno em primeiro lugar, ou ambos. Também vale a pena notar que esses estilos de ensinamentos
extremos que vemos na história do Vajrayana ocorreram em um contexto de vínculo
espiritual muito maduro entre professor e aluno. Eles não eram tão comuns. Marpa
não fez todos os seus alunos construírem torres de pedra. Na verdade, ele
tratou seus outros alunos de forma muito diferente de como tratou Milarepa. Mas
ele viu o potencial de Milarepa e a abordagem que o beneficiaria mais. O resto
é história. Milarepa se iluminou e se tornou um dos maiores sábios do Tibete. Não só esses métodos de ensino extremos são usados apenas com
estudantes muito maduros e no contexto de uma relação de confiança e devoção
estáveis, eles também são um último recurso. Diz-se que existem quatro tipos de
atividades iluminadas: pacíficas, magnetizadoras, enriquecedoras e iradas. A
atividade irada é usada apenas para aqueles que não são receptivos a abordagens
mais sutis. Então, novamente, esse estilo não é uma norma, mas algo assim só é
empregado em certas circunstâncias. Assim, devemos distinguir os
professores excêntricos ou provocativos – mas fundamentalmente compassivos e
habilidosos – daqueles que realmente estão prejudicando os alunos e causando
trauma. Estas são duas coisas muito diferentes, e é importante que não as
misturemos. Há muitos professores que forçam e provocam estudantes para
ajudá-los a aprender sobre suas próprias mentes, mas isso não é abuso. O abuso
físico, sexual e psicológico não são ferramentas para ensinar. O VAJRAYANA
NO MUNDO MODERNO. Agora
que o mundo está tão interligado, a ética é mais importante do que nunca. Em
certo sentido, nós, praticantes budistas, estamos todos representando os
ensinamentos do Buda para o mundo. Qualquer um pode aprender sobre este professor
ou aquela sangha com alguns cliques do mouse e uma rápida pesquisa no Google.
Isso é bom, porque torna toda a tradição mais transparente. O comportamento
ético – e as violações éticas – são mais visíveis do que em tempos anteriores. Nem é preciso dizer que, quando
se espera que escolas, empresas e outras instituições públicas adotem um código
de conduta e as leis da terra, as organizações espirituais deveriam ser modelos
de comportamento ético. E os professores ainda mais. Ao longo da história, um
dos papéis mais importantes dos professores budistas e da sangha budista foi
exatamente esse. Eles serviam como modelos de comportamento ético para suas
comunidades. O budismo Vajrayana é considerado um tesouro
precioso pelos tibetanos. É nossa herança espiritual e nosso presente para o
mundo. Agora que os ensinamentos e práticas dessa tradição estão se espalhando
pelo mundo, é importante entendermos a tradição e como trabalhar com seus
ensinamentos poderosos. Como eu disse, o cerne da
tradição Vajrayana é que nos esforcemos para personificar a visão pura. Olhamos
nossos pensamentos e emoções – até os mais difíceis – como manifestações da
consciência além do tempo. Vemos cada pessoa como um Buda, e nós as tratamos
como tal. Vemos o mundo em que vivemos como uma terra pura, iluminada do jeito
que é. Esta tradição, de tratar tudo e todos como se
estivéssemos encontrando o Buda face-a-face, é a nossa principal prática no
Vajrayana. É o sangue da nossa tradição e o padrão ético mais elevado a que
podemos aspirar. Hoje em dia, com confusão e conflito por todos os lados, o
mundo precisa disso mais do que nunca. www.budavirtual.com.br.
Abraço. Davi
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