Religião
Afrodescendente. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO II.
Universidade de São Paulo – USP. Em seguida, "a cabeça, os intestinos, as
asas e as patas são cozidas no azeite de dendê, com camarões e cebolas, mas sem
sal", e este prato é depositado, juntamente com outros alimentos, diante
dos tambores, onde ficarão um dia inteiro para que tenham tempo suficiente para
"comer". Compreende-se por que razão os instrumentos apresentam algo
de divino, que impede sejam vendidos ou emprestados sem cerimônias especiais de
dessacralização ou de consagração, interessando-nos saber que somente por meio
da música fazem baixar os deuses na carne dos fiéis. Eis porque, uma vez
terminado o padê de Exú, a cerimônia prossegue com o toque musical dos tambores
que, sozinhos, sem acompanhamento de cânticos nem de danças, falam aos Orixá e
pedem lhes que venham da África para o Brasil. Em geral, os etnógrafos não têm
prestado muita atenção a este diálogo preliminar dos tambores e das divindades.
Creio que seu estudo revelaria a existência, na Bahia, de fenômenos análogos
aos que Fernando Ortiz tão bem analisou para Cuba, onde, como se sabe, a
religião é igual, isto é, yoruba. Mas não são apenas os três tambores que têm o
poder de evocar a vinda dos Orixá; os agidavi também, isto é, as varetas com as
quais são batidos e que, antes de serem utilizados, dormiram "junto dos
deuses", no santuário, para se impregnarem de força sagrada; ou, mais exatamente
sem dúvida, para entrarem em correspondência com os Orixá. O agôgô (corruptela
de akoko, que quer dizer tempo, hora, em língua yoruba), sino simples ou duplo,
algumas vezes mero pedaço de metal batido por outro pedaço de metal, desempenha
também papel importante no candomblé. Quando as possessões estão custando para
se produzir, sacerdote ou sacerdotisas agitam o aja junto ao ouvido das filhas
de santo que dançam e não é raro que, importunada por esse ruído agudo e
alucinante, a divindade se decida a montar em seu cavalo. Infelizmente, não
sabemos se este último instrumento de música sofre uma preparação religiosa
análoga à dos tambores ou dos simples agidavi. As danças preliminares. Em
seguida são chamados os deuses, numa certa ordem que varia de candomblé para
candomblé, mas que, por ocasião das festas públicas, são muitas vezes a mesma
em santuários determinados. Esta ordem é conhecida como xiré: começa
obrigatoriamente por Exu para terminar por Oxalá, que é o Senhor do céu e o
mais elevado dos Orixá. Mas com exceção do primeiro e do último termo do xiré,
reina a maior variedade na ordem dos termos intermediários; quando muito
poder-se-ia dizer que, nas manifestações, muitas vezes se começa pelas
divindades mais jovens ou mais violentas, como Ogun, para ir progressivamente
para as mais velhas ou as mais calmas. Cada divindade recebe um mínimo de três
cânticos; e ainda me lembro do protesto dos fiéis, uma noite em que não sei por
que razão um dos seus deuses só recebeu dois, em lugar dos três cânticos
regulamentares. O número de três não é, porém, senão um mínimo; pode-se cantar
quantidade maior de cânticos. Nos candomblés bantos, as palavras são geralmente
portuguesas, mas nos candomblés yoruba ou dahomeanos, os cânticos são "na
língua", isto é, em africano, o idioma variando naturalmente de acordo com
a origem étnica da "nação" egba, fon, etc. Para empregar um termo
wagneriano, constituem, juntamente com os ritmos sonoros dos tambores que os
acompanham outros tantos, motivos destinados a atrair os Orixá. Os cânticos,
todavia, não são apenas cantados, são também dançados", pois constituem a
evocação de certos episódios da história dos deuses, são fragmentos de mitos, e
o mito deve ser representado ao mesmo tempo que falado para adquirir todo o
poder evocador. Ao gesto juntando-se à palavra, a força da imitação mimética
auxiliando o encantamento da palavra, os Orixá não tardam a montar em seus
cavalos à medida que vão sendo chamados. Pode acontecer, porém, que a cerimônia
prossiga durante muito tempo sem que haja possessões. Neste caso, os tambores
fazem soar o toque adarrum, que não é acompanhado de cânticos, pois trata-se de
chamar desta vez, não apenas uma, mas todas as divindades ao mesmo tempo. Seu
ritmo cada vez mais rápido, cada vez mais implorante, acaba por abrir os
músculos, as vísceras, as cabeças à penetração do deus que se esperou durante
tanto tempo. Produzida a “crise” de possessão, as ekedy encarregadas de velar
os filhos e filhas de santo, retiram-lhe o casaco se se trata de um homem, ou,
em se tratando de mulher, o xale que a poderia estrangular no caso de
convulsões, e antes de mais nada, os sapatos. O gesto é altamente simbólico:
trata-se de despojar o indivíduo de sua personalidade brasileira para que
retome à condição de africano. Os sapatos tiveram importância capital na vida
do negro americano. Foram o sinal da sua libertação; quando um escravo era
alforriado, seu primeiro cuidado era comprar um par de sapatos para se igualar
ao branco, embora muitas vezes não os calçasse, pois, seus pés habituados a
andar nus não os suportavam. Trazia-os, porém, suspensos ao pescoço pelo
amarrilho, ou levava-os na mão; em casa, colocava-os bem à vista sobre um
móvel, em lugar de honra. Quando o Orixá baixa, o negro é recolocado na
condição de africano, de participante da vida tribal de seus pais; então pisará
com seus pés nus a terra, que é também uma deusa. A violência da “crise” varia
segundo as circunstâncias, o temperamento do indivíduo, a natureza do deus que
o possui. No caso de certas faltas, pode mesmo tomar a forma de castigo. Se é
muito violenta, o sacerdote ou sacerdotisa que dirige o culto, babalorixá ou
ialorixá, coloca a mão na nuca do cavalo para acalmá-lo, ou assopra-lhe no
ouvido. As ekedy então auxiliam o indivíduo, que titubeia sob o abraço divino,
a sair do salão de dança para ir ou para o pegi, onde estão as pedras dos
Orixa, ou para um quarto vizinho; se caiu ao chão, carregam-no como um corpo
morto, ainda agitado por movimentos convulsivos. O êxtase tomará ali forma mais
calma, não desaparecendo, terminando somente com os últimos cânticos. O fiel é
revestido com as roupas litúrgicas de sua divindade, colocam-lhe nas mãos os
objetos simbólicos da nova posição, espada de Ogum, arco de Oxossi, xaxara
(membro viril) de Omolú, abébé (leque) de Oxun, paxoro (vara de ferro) de
Oxalá. Cada integrante da confraria só pode receber o deus ao qual está ligado
pelos ritos de iniciação. Certo número de casos excepcionais, podem, todavia,
suceder, e deles diremos algumas palavras. Há alguns Orixá que não "baixam",
como por exemplo Xangô Dada em Porto Alegre, ou Orunmila, na Bahia; nesse caso,
a pessoa que lhe foi consagrada recebe uma divindade da mesma família; é esta a
ocasião única em que é permitida a possessão por divindade diferente daquela a
que se pertence de direito. Pode também acontecer que um Orixá turbulento ou
ciumento monte cavalo que não é o seu, embora o caso seja muito raro (nunca
assisti a nenhum). O sacerdote deve então despachá-lo imediatamente, mandá-lo
embora. Exú não se encarna nunca embora por vezes tenha filhos; conhecemos pelo
menos uma filha de Exu e citaram-nos nomes de outros. Mas a possessão de Exú se
diferencia da dos outros Orixá pelo seu frenesi, seu caráter patológico,
anormal, sua violência destruidora.Se quisermos uma comparação, é um pouco a
diferença que fazem os católicos entre o êxtase divino e a possessão demoníaca.
Se Exú ataca um membro do candomblé, é preciso, pois, despachá-lo também,
afugentá-lo imediatamente. Mas, com exceção destes casos aberrantes que,
afirmamos outra vez, são extremamente raros, a função desta parte do ritual que
descrevemos tem realmente por objetivo a possessão dos homens pelos seus
deuses. Por outro lado, nem todos os iniciados são possuídos. Não falamos das
mulheres menstruadas, que não devem nem mesmo assistir à festa pois as
divindades têm horror ao sangue catamenial; se uma delas ousa desobedecer,
imediatamente os tambores o reconhecem, pois, sua simples presença perturba o
toque musical. Porém as que estão grávidas ou de luto, mesmo presentes, nunca
são "montadas" pelo seu Orixá. Numerosos membros de outros terreiros
ou de outras seitas comparecem como visitantes ou como curiosos às cerimônias
tradicionais dos grandes candomblés. Não é de bom-tom e é mesmo muito mal visto
para os de fora caírem então em transe. O êxtase só é permitido no
enquadramento do santuário onde foi feita a iniciação. Acontece, no entanto, às
filhas de santo em visita, sentirem o apelo insistente da divindade desabrochar
no íntimo; bebem então grandes copos de água gelada, que têm o poder de impedir
que se produza a possessão. Um último caso pode finalmente se dar: o de pessoa
não iniciada, que veio assistir às danças somente pelo prazer do espetáculo, e
que bruscamente se vê presa também da crise de possessão. Diz-se neste caso que
a pessoa foi atacada por um santo bruto, o que significa simplesmente que a
crise não foi controlada, orientada pela coletividade. É então conduzida para o
interior do santuário, a fim de ser iniciada e de se tornar uma filha de santo.
Com efeito, a iniciação não tem outro objetivo senão socializar a crise para
que daí por diante se processe segundo os padrões africanos. A dança dos
deuses. Depois de um intervalo, durante o qual às vezes é servido um lanche aos
convidados importantes, filhas e filhos de santo retornam ao salão de dança.
Mas não são mais, nesse momento, apenas filhos e filhas de santo, são os
próprios deuses encarnados que vêm se misturar um momento aos adeptos
brasileiros. O ritmo da cerimônia não se modifica; têm lugar as mesmas
evocações dos Orixá em ordem determinada, sempre com o mesmo mínimo de três
cânticos regulamentares, com os mesmos leit-motiv (estado de espírito)
wagnerianos, diante de um público cheio de fervor e respeito. Os gestos, porém,
adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são
mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores
nas noites baianas; eis Omolú recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e
branco, Yemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos se metamorfosearam
em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas
dessa vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogun guerreiro
brilha no fogo da cólera, Oxun é roda feita de volúpia carnal. Por um momento,
confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da
escravidão. Eis presentes aqui os Orixá, saudando os tambores, fazendo ika ou
dobale diante dos sacerdotes supremos, dançando, muitas vezes revelando o
futuro ou dando conselhos. Não existem mais fronteiras entre natural e
sobrenatural; o êxtase realizou a comunhão desejada. 7. Ritos de saída e de
comunhão. O êxtase só chega ao fim quando forem cantados os cânticos de unló,
cujo objetivo é justamente mandar embora os Orixá. Estes são entoados na ordem
inversa das invocações, começando pelas divindades chamadas em último lugar
para terminar por aquelas que vieram primeiro; à medida que a litania de nomes
vai se desenrolando, as pálpebras fechadas vão se abrindo, o rosto perde a
máscara da divindade, a personalidade normal reaparece. O último cântico tem
lugar no pegí, como se o desejo fosse de que a força mística, que tinha rompido
as amarras, regresse às pedras banhadas de sangue, aos pedaços de ferro que
estão "comendo" a oferenda alimentar. E este último cântico, ao
contrário dos precedentes, segue a ordem do xiré: atáu ecúô é di bom jeú Exú
vai unló é di bom jeô atáu ecúô é di bom jeô Ogum vai un Oxum Emanjá Xangô
Orixalá. Todavia, antes que todos se separem, um repasto de comunhão permitirá
unir divindades, membros da confraria e aqueles dos espectadores que ainda
permaneceram no recinto. As filhas de santo trazem, em pratos da cor de seus
Orixá, um pouco do alimento, parte do qual fora colocado no pegí: branco para
Oxalá, azul para Yemanjá, violeta para Nanan (...). Sentam-se em torno de uma
toalha posta no próprio chão, sobre a qual depositaram o alimento sagrado. Cada
qual toma um bocado do prato de seu deus, com as duas mãos em forma de concha,
e engole-o com um movimento da boca que vai do punho à ponta dos dedos. Depois,
oferece um bocado do prato aos filhos dos outros Orixá, de modo a cimentar a
solidariedade do grupo por meio da partilha de alimentos. O resto, sobre folhas
de bananeira, é oferecido aos espectadores que estão de pé em torno das filhas
de santo sentadas no chão, os diferentes alimentos dos múltiplos Orixá
fraternalmente misturados nesta espécie de bandeja vegetal; é obrigat6rio comer
com a mão. Não se deve confundir este repasto, que é uma comunhão, com a colação
algumas vezes servida aos convidados importantes entre a dança de chamada e a
dança dos deuses. Trata-se aqui de algo muito diferente, de uma tríplice
solidariedade a realizar, antes do regresso ao mundo profano: primeiro, entre o
divino e o humano; depois, entre os membros da confraria que pertencem a
divindades diferentes; e às vezes rivais; finalmente, também, entre a confraria
e os não-iniciados, para que um pouco da África, que se perdeu e tornou a
encontrar, nestes penetre igualmente. O grupo dos fiéis ultrapassa a confraria
dos filhos e filhas de santo. A entrada num candomblé se faz progressivamente e
há graus de incorporação, o mais baixo dos quais é o simbolizado pela lavagem
do colar. A. Cada membro da seita tem um colar que lhe é pr6prio, cujas contas
são da cor da divindade à que pertence: brancas para Oxalá, alternadamente
brancas e vermelhas para Xangô, verdes para Oxossi, amarelas para Oxun (...).
Mas o colar não tem valor por si mesmo, deve sofrer previamente determinada
preparação, deve ser "lavado". O indivíduo que deseje, pois,
participar da vida de um candomblé, deve começar por consultar o babalaô ou
adivinho, que interrogará por ele o colar de Ifa ou os búzios, a fim de
descobrir o nome do Orixá que é o "dono de sua cabeça". Basta, em
seguida, fabricar o colar correspondente ao seu Orixá, ou mesmo comprá-lo
simplesmente no mercado municipal, levando-o ao babaloríxá ou à ialorixá do
terreiro ao qual quer pertencer, e que o lavarão. Manuel Raimundo Querino
(1851-1923) fornece descrição da cerimônia: imersão do colar em bacia cheia
d'água, trituração de folhas ligadas à divindade em questão (como veremos, cada
deus tem, com efeito, suas folhas especiais), lavagem das contas com
"sabão da Costa", isto é, da costa africana (sabão negro e mole),
transmissão do colar à pessoa que deve usá-lo, com as respectivas recomendações
sobre as futuras obrigações, e finalmente festa íntima com cânticos e refeição.
A descrição, porém, é incompleta e deixa mesmo escapar o essencial. Para que o
colar tenha valor, é preciso: 1) que tenha ficado uma noite inteira sobre a
peara do deus a que pertence e que o sangue de uma ave morta em sacrifício,
juntamente com as ervas apropriadas, tenha lavado ao mesmo tempo pedra e colar.
Mas não basta ainda: é preciso mais que 2) a esta primeira participação se
junte uma segunda, entre pedra, colar e cabeça do indivíduo que celebra o
ritual. Digo "cabeça" e não "indivíduo" porque a cabeça é
considerada a moradia do Orixá. Lavar-se-á então a cabeça, e muitas vezes
também o corpo inteiro, com a água e as ervas que serviram para a lavagem de
colar e pedra. Assim entram em contato os membros do trinômio, deus, homem e
colar, permitindo a passagem da corrente mística entre o primeiro e o último,
por intermédio do segundo. Eis por que o colar só tem valor para o
proprietário. Se este o perde e outro pessoa o usa, não terá nenhum poder para
esta, pois não foi posto em participação, nem direta, nem indireta, com a
cabeça dela. Continuar Página 35 segundo parágrafo. Livro O Candomblé da Bahia
– Rito Nagô. Abraço. Davi
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