Budismo. Texto de Tenzin Gyatso (O 14º Dalai Lama). VALORES UNIVERSAIS.
Os valores universais da bondade, afetuosidade, sinceridade e compaixão são
apreciados por todas as pessoas. Eles são o segredo das amizades duradouras e
da felicidade. Desconforto Físico e Mental. ALCANÇAR A PAZ ATRAVÉZ DA PAZ
INTERIOR. A paz é uma preocupação de todos nós,
no Oriente, no Ocidente, no Norte ou no Sul. Ricos ou pobres, todos nós
deveríamos estar verdadeiramente preocupados com a paz. Todos nós somos seres
humanos e por isso temos geralmente as mesmas preocupações: ser feliz, ter uma
vida feliz. E todos merecemos uma vida feliz. Aqui, nós estamos falando a esse
nível. Cada um de nós tem a sensação do "eu" ou do "self"
sem entendermos por completo o que é esse "eu" ou "self".
No entanto, apesar disso, temos um forte sentimento do "eu". Com esse
sentimento vem o desejo de sermos felizes e não sofrermos. Este desejo surge ou
aparece automaticamente. Com base nisto, todos nós temos o direito a ser feliz. No entanto, obstáculos e muitas
coisas desagradáveis irão com certeza acontecer durante as nossas vidas.
Existem duas categorias de sofrimento. Uma delas se deve a causas físicas, como
por exemplo a doenças e ao envelhecimento. Assim como eu, que já tenho alguma
experiência nesta área - já me é difícil ouvir, ver e andar. Estas coisas irão
com certeza acontecer. A outra categoria é principalmente a nível mental. Se, a
nível físico, tudo for confortável e luxuoso, e se apesar disso ainda tivermos
stress e dúvidas interiores, nos sentiremos sós. Teremos ciúmes, medo e ódio, e
por isso nos sentiremos infelizes. Assim, apesar de a nível físico tudo estar
bem, a nível mental podemos estar com muito sofrimento. Para o conforto físico, então, sim,
com dinheiro podemos reduzir um pouco o sofrimento e obter satisfação física. No
entanto, esse [bem estar a] nível físico, que inclui o poder, nome e fama, não
nos pode trazer a paz interior. A verdade é que às vezes ter muito dinheiro e
riquezas só nos traz mais preocupações. Ficamos muito preocupados com o nosso
nome e fama, e isso conduz a alguma hipocrisia, algum desconforto e algum
estresse. Assim, a felicidade mental é menos dependente de recursos externos do
que do nosso modo de pensar interior. Podemos ver que há pessoas que, embora pobres, são felizes e muito
fortes a nível interior. De fato, se tivermos contentamento interior, podemos
tolerar qualquer tipo de sofrimento físico e conseguimos transformá-lo por mais
difícil que seja. Assim, entre a dor física e a mental, penso que a dor mental
é mais severa porque enquanto o desconforto físico pode ser subjugado pelo
conforto mental, o desconforto mental não pode ser eliminado pelo conforto
físico. Os problemas mentais das pessoas são
mais fortes e mais severos do que os dos animais. A nível físico talvez o
sofrimento de ambos seja igual, mas em relação aos seres humanos, por causa da
nossa inteligência, temos dúvidas, inseguranças e estresse. Estes levam à
depressão e tudo isso surge por causa da nossa inteligência superior. Para
contrariá-los devemos usar também a nossa inteligência humana. A nível
emocional, algumas emoções, assim que surgem, fazem com que percamos a nossa
paz de espírito. Certas emoções, por outro lado, ainda nos dão mais força.
Estas são a base da confiança e força interior e nos levam a um estado de
espírito mais calmo e tranquilo. Duas Categorias de
Emoções. Temos, portanto, duas categorias de
emoções. Uma delas é muito prejudicial à paz de espírito; são as emoções
destrutivas, como a raiva e o ódio. Não só destroem a nossa paz de espírito
aqui e agora, são também muito destrutivas para a nossa fala e os nossos
corpos. Por outras palavras, elas afetam a nossa maneira de agir, levando-nos a
agir de uma forma prejudicial, sendo portanto destrutivas. Outras emoções,
porém, como a compaixão, trazem-nos paz e força interior. Trazem-nos por
exemplo a força do perdão. Mesmo que em determinado momento possamos ter
problemas com alguém, o perdão eventualmente nos levará à tranquilidade e à paz
de espírito. A pessoa com quem estávamos tão incompatibilizados até poderá tornar-se
o nosso melhor amigo. Paz Exterior. Quando
falamos sobre a paz temos de falar sobre estas emoções e sobre a paz interior.
Temos portanto de descobrir quais são as emoções que levam à paz interior. Mas
primeiro quero falar um pouco sobre a paz exterior. A paz exterior não é apenas a mera
ausência de violência. Durante a Guerra Fria aparentemente tivemos paz, mas
essa paz era baseada no medo, medo de um holocausto nuclear. Ambos os lados
estavam com medo que o outro lançasse as bombas, por isso essa paz não era
genuína. A verdadeira paz tem de vir da paz interior. Sempre que houver um
conflito, acho que devemos encontrar uma solução pacífica e com isto quero
dizer através do diálogo. A paz tem muito a ver com a bondade e o respeito pela
vida dos outros, com o resistir [à vontade de] fazer mal aos outros e com a
atitude de que a vida dos outros é tão sagrada quanto a nossa. Temos que
respeitar isso e, nessa base, se pudermos também ajudar os outros, então
tentamos ajudar. Quando enfrentamos dificuldades e
alguém nos vem ajudar, é claro que apreciamos a ajuda. Se alguém estiver
sofrendo, mesmo que proporcionemos uma simples compreensão humana, essa pessoa
irá apreciar e sentir-se muito feliz. Assim, da compaixão interior e paz
mental, todas as ações se tornam pacíficas. Se conseguirmos estabelecer a paz
interior, então conseguiremos também trazer a paz exterior. Como seres humanos, temos sempre
pontos de vista diferentes nas nossas interações com os outros. Mas, com base
em fortes conceitos de "eu" e "eles", então obtemos, além
disso, conceitos de "meu interesse" e "seu interesse". Com
base nisso, podemos até chegar à guerra. Pensamos que a destruição do nosso
inimigo irá ser a causa da nossa vitória. Mas agora temos uma nova realidade.
Somos muito interdependentes uns dos outros sob o ponto de vista económico e
ecológico. Assim, os conceitos de "nós" e "eles" já não são
relevantes. Aqueles que considerávamos "eles" se tornaram agora parte
de "nós". Assim, o factor chave para o desenvolvimento da paz mental
é a compaixão, baseada no reconhecimento de que somos seis bilhões de pessoas
neste planeta e todos nós temos o mesmo direito à felicidade. Com base nisto,
levamos todos a sério e assim devemos conseguir estabelecer a paz exterior. Começar em Pequeno Nível. Precisamos
assim, para a paz, começar a desenvolver a paz em nós próprios, depois em
nossas famílias e a seguir em nossas comunidades. No México, por exemplo, um
amigo meu criou uma "Zona de Paz" na sua própria comunidade. Ele
conseguiu isto fazendo com que todos na sua comunidade concordassem com o
seguinte: tentarem deliberadamente evitar a violência dentro desta Zona de Paz.
Se tivessem que lutar ou discordar, concordarem todos eles em fazê-lo fora dos
limites dessa zona. Isso é muito bom. É difícil pedir a paz mundial, embora eventualmente, a nível mundial,
isso seria melhor. Mas o que é mais realista é começar agora a um nível
pequeno, conosco, com a família, comunidade, distrito e assim por diante,
criando coisas como essas zonas de paz. A paz interior está, deste modo, muito
ligada à compaixão. As coisas estão neste momento a mudar
muito no mundo. Lembro-me de há alguns anos, um amigo alemão, o falecido
Friedrich von Weizsäcker, que considero como meu professor, me ter dito que
quando era jovem, do ponto de vista de cada alemão, os franceses eram
considerados inimigos e, do ponto de vista dos franceses, os inimigos eram os
alemães. Mas agora as coisas estão diferentes. Agora temos uma força unificada,
a União Europeia. Isto é muito bom. Antes, cada Estado, do seu ponto de vista,
considerava a sua própria soberania como algo muito precioso. Mas agora há uma
nova realidade na Europa, há um interesse comum mais importante do que os
interesses individuais. Se a economia melhorar, cada Estado-Membro beneficiará.
Portanto, agora é importante propagar este pensamento aos seis bilhões de
pessoas do planeta. Precisamos de pensar em todos como pertencendo à grande
família humana. Compaixão como fator biológico. Agora, quanto à compaixão, todos os mamíferos que nascem de mães – seres
humanos, mamíferos, aves, e assim por diante – dependem, para o seu
desenvolvimento, do carinho e afeição. Este é o caso, com a exceção apenas de
umas poucas espécies, como a tartaruga do mar, as borboletas, os salmões que
depositam seus ovos e morrem – estes seres são a exceção. Vejam, por exemplo,
as tartarugas marinhas. As mães colocam na praia os seus ovos e depois vão-se
embora, por isso a sobrevivência das pequenas tartarugas depende unicamente do
seu próprio esforço. Elas não precisam do carinho da mãe e no entanto
sobrevivem. Por isso digo a algumas audiências que seria uma experiência
científica muito interessante colocar juntos a mãe com a tartaruga bebê quando
este sai do ovo, e ver se têm carinho um pelo outro. Eu acho que não teriam. A
natureza as criou assim, por isso não há necessidade de afeto. Mas quanto aos
mamíferos, e especialmente aos seres humanos, sem o cuidado maternal todos nós
morreríamos. Cuidar de um bebê recém-nascido exige
algumas emoções, como a compaixão, afeição, o sentimento de dedicação e cuidado
pelos outros. Os cientistas dizem que durante as primeiras semanas após o
nascimento, o toque da mãe é essencial para o desenvolvimento do cérebro do
bebê. Notamos que as crianças que vêm de famílias meigas, carinhosas e
afetuosas tendem a ser mais felizes. Elas são até mais saudáveis a nível
físico. Mas as crianças sem afeto, especialmente quando são pequenas, tendem a
ter muitas dificuldades. Alguns cientistas fizeram experiências, separando macaquinhos das suas mães
e observaram que andavam sempre brigando e de mau humor. Não brincavam bem com
os outros. Mas aqueles que permaneceram sempre próximos de suas mães eram
felizes e brincavam bem com os outros. E especialmente as crianças humanas que
não recebem afeto enquanto bebês – elas tendem a se tornar frias. Têm
dificuldade de demonstrar afeto aos outros e em alguns casos se tornam
violentas com os outros. Por isso o afeto é um fator biológico, um fator com
base biológica. Além disso, acho que, como a
compaixão e as emoções estão relacionadas a este nível biológico e/ou físico,
então, de acordo com alguns cientistas, se andarmos constantemente irritados,
cheios de ódio e medo, isso irá corroer o nosso sistema imunitário tornando-o
mais fraco. Mas a mente compassiva ajuda e fortalece o sistema imunitário. Vejamos outro exemplo. Na área da
medicina, se houver confiança entre as enfermeiras e os médicos por um lado, e
os pacientes por outro, isso é importante para a recuperação dos pacientes. E
qual será o fundamento da confiança? Se do lado do médico e dos enfermeiros
forem demonstradas dedicação e cuidados genuínos pela recuperação dos
pacientes, a confiança surgirá. Mas por outro lado, mesmo sendo o médico um
especialista, se tratar o paciente como uma máquina, então haverá muito pouca
confiança. Bem, se o médico tiver muita experiência pode ser que haja alguma
confiança, mas se o médico for mais compassivo, então haverá ainda mais
confiança. Os pacientes dormirão melhor e sentir-se-ão menos perturbados. Se
estiverem perturbados a um nível mais profundo, tornam-se então muito agitados,
o que afeta a sua recuperação. Mas na vida os problemas são, naturalmente, inevitáveis. Shantideva, o
grande mestre budista indiano, aconselhou que ao enfrentarmos problemas
precisamos de analisá-los. Se eles puderem ser superados através de qualquer
método, então não se preocupem, basta aplicar o método. Mas se eles não puderem
ser resolvidos, não há necessidade de se preocuparem, pois isso não irá
beneficiar ninguém. Pensar assim é de uma grande ajuda. Mesmo que tenhamos um
grande problema, podemos minimizá-lo se pensarmos desta maneira. Sentimos carinho e compaixão enquanto
precisamos que outros cuidem de nós, quando por exemplo somos bebês. Mas com
mais independência à medida que vamos crescendo, tendemos, na tentativa de
obter o que queremos, a achar que a agressão é mais importante do que a
compaixão. Mas todos os seis bilhões de pessoas vêm das mães. Todos nós
experienciamos felicidade e satisfação com os cuidados do amor materno ou do
afeto de alguém quando somos bebês. Aos poucos, porém, à medida que vamos
crescendo, essas qualidades se tornam mais frágeis e depois tendemos a nos
tornar agressivos, com mais bullying, e criamos mais problemas. A Necessidade de Ver a Realidade. Um cientista da Suécia disse-me que quando a mente se torna irritadiça e
o cérebro dominado pela ira, é uma projeção mental 90% da aparência horrível da
pessoa sobre quem estamos cheios de raiva. Por outras palavras, 90% da
negatividade são projetados mentalmente. Isso é também semelhante a quando
temos apego e um forte desejo por alguém: vemos essa pessoa como 100% bonita e
boa. Mas uma grande percentagem disso também é projeção mental; não vemos a
realidade. Portanto, é muito importante ver a realidade. Há um outro ponto importante: se
ninguém quer problemas, porque é que os problemas surgem? Devido à nossa
ingenuidade, à nossa ignorância, à nossa abordagem: nós não vemos a realidade.
Do nosso ponto de vista limitado, não conseguimos ver a realidade no seu todo.
Vemos apenas duas dimensões, e isso não é suficiente. Precisamos de ser capazes
de ver as coisas em três, quatro, seis dimensões. A fim de investigarmos
objetivamente, primeiro precisamos de acalmar as nossas mentes. Aqui também é importante a diferença
entre emoções construtivas e destrutivas a fim de compreendermos todos estes
pontos. Quando crescemos, o fator biológico da compaixão vai diminuindo pouco a
pouco. Por isso precisamos da educação e formação sobre a compaixão para
fortalecê-la uma vez mais. O tipo biológico da compaixão é, no entanto,
parcial: é baseado no receber do carinho dos outros. Mas usando isso como uma
base e adicionando-lhe depois a razão e os factores científicos da nossa
investigação, seremos capazes não só de manter este nível biológico da
compaixão como também de aumentá-la. Assim, com treinamento e educação, a
compaixão parcial e limitada se pode transformar numa compaixão infinita e
imparcial, abrangendo seis ou mais bilhões de pessoas. A Importância da Educação. A chave
para tudo isto é a educação. A educação moderna presta atenção ao
desenvolvimento do cérebro e do intelecto, mas isso não é suficiente. Nos
nossos sistemas educacionais também precisamos de ser capazes de desenvolver a
bondade. Precisamos disso desde o jardim de infância à universidade. Na América, alguns cientistas têm
desenvolvido programas de educação para treinar crianças a desenvolverem mais
compaixão e plena atenção. E isso não é feito com o propósito de ajudar essas
crianças a melhorar suas vidas futuras e atingir o nirvana mas sim em benefício
desta vida. Até em algumas universidades já existem alguns programas de
educação para o desenvolvimento da bondade e compaixão. Esse tipo de compaixão
imparcial não está focalizado nas atitudes dos outros, mas simplesmente por
eles serem humanos. Todos nós fazemos parte da população de seis bilhões de
pessoas neste planeta, por isso, com base neste fator de igualdade, todos
merecem a nossa compaixão. Desarmamento Interior e
Exterior. Assim, para a paz interior e a paz
mundial, precisamos do desarmamento interior e do desarmamento exterior. Isto
significa que, a nível interior, desenvolvemos a compaixão e, eventualmente,
com base nela, seremos capazes de desarmar tudo, todos os países, a nível
exterior. É como se tivéssemos a força unificada franco-alemã do Exército
Europeu, isso seria ótimo. Se houvesse uma força unificada para toda a União
Europeia, então não haveria luta armada entre os seus membros. Uma vez, em Bruxelas, houve uma
reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros e eu disse que seria muito útil
no futuro se a sede da União Europeia fosse transferida mais para o leste, para
um dos países do Leste Europeu, por exemplo, a Polónia. Depois, seria
eventualmente bom expandir e incluir também a Rússia, e depois mudar a sede da
OTAN para Moscovo. Se isso viesse a acontecer, então não haveria perigo de
guerra e teríamos realmente paz aqui na Europa. Agora e por enquanto, existem
algumas dificuldades entre a Rússia e a Geórgia, mas precisamos manter nossa
esperança. Com base nesta maior extensão de paz,
então por exemplo a indústria de armamento aqui em França, poderia
eventualmente ser encerrada e poderíamos mudar a economia para coisas mais
produtivas. Em vez de tanques, as fábricas poderiam ser convertidas para por
exemplo a produção de bulldozers! As nações africanas também precisam muito da nossa ajuda. O fosso entre
os ricos e pobres é um grande problema, não só globalmente como também a nível
nacional, e este fosso entre ricos e pobres é horrível. Na França, por exemplo,
há uma grande discrepância entre os ricos e os pobres. Algumas pessoas estão
até passando fome. Mas somos todos seres humanos e todos temos as mesmas
esperanças, necessidades e problemas. Temos que considerar todos estes pontos
para o desenvolvimento da paz através da paz interior. Sua Santidade o XIV Dalai Lama - Nantes, França, 15 de Agosto de 2008.
Transcrito e ligeiramente revisado por Alexander Berzin. www.studybuddhism.com.br.
Abraço. Davi.
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