Cristianismo Primitivo. www.ricardolindemann@uol.com.br.
Texto de Ricardo Lindemann. Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília
(UnB) Brasil, aluno cursando o Doutorado em Ciência da Religião na Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). Licenciado em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Engenheiro Civil (UFRGS). Atua em
Projetos de Pesquisa de História da Filosofia da Religião no Grupo de Filosofia
da Religião da UnB, e de As Tradições Soteriológicas dos Upanishads do Núcleo
de Estudos em Religiões e Filosofias da Índia da UFJF. www.ricardolindemann@uol.com.br.
I. A REENCARNAÇÃO SEGUNDO ORÍGENES DE ALEXANDRIA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO.
RESUMO. Este trabalho tem como objetivo investigar, a partir da obra Peri
Archon (De Principiis) de Orígenes de Alexandria, a presença da doutrina da
Reencarnação no Cristianismo Primitivo. Deve ficar claro que nem todos os
cristãos seguiam as doutrinas da Preexistência da alma, sua possível
Transmigração, até a Salvação Universal no juízo final que eram sustentadas
pelo Padre Orígenes de Alexandria (185-253), mas sim que seus inúmeros
seguidores tiveram a liberdade de sustentar por três séculos uma linhagem
dentro do cristianismo, o origenismo, que era oficialmente aceitável até 553
DC. Essa foi a data da condenação dessas doutrinas de Orígenes no Concílio
Constantinopla II, convocado arbitrariamente pelo Imperador Justiniano I
(482-562), que destituiu e exilou o Papa Silvério (480-537), morto nesse exílio
“poucos meses depois de subnutrição”. O Papa Virgílio (500-555), indicado pelo
Imperador, nem compareceu ao Concílio. PALAVRA CHAVE: METEMPSICOSE.
CRISTIANISMO PRIMITIVO. ORÍGENES. REENCARNAÇÃO. INTRODUÇÃO. ESTE TRABALHO TEM A
INTENÇÃO de evidenciar que a doutrina da Reencarnação podia ser encontrada no
Cristianismo Primitivo no Século III. Perdurando em seu livro Peri Archon (De
Principiis), que foi sistematicamente perseguido e destruído pelo Imperador
Justiniano, mas teve uma versão reconstituída por Paul Koetschau (1868-1949),
com base principalmente na própria correspondência do Imperador e na ata do
Concílio Constantinopla II em 553, que condenou o livro. ORÍGENES E SUA
DOUTRINA DE NÍVEIS DE INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA SAGRADA: O PADRE ORÍGENES de
Alexandria (185-253) no Egito, foi Diretor da Escola Catequética de Alexandria,
um dos primeiros exegetas sistemáticos e um dos maiores expoentes da
interpretação alegórica das Escrituras Sagradas, e afirma que estas tinham três
níveis de significação semelhantes à constituição humana: corpo, alma e
espírito. O primeiro seria o nível literal e histórico, suficiente para pessoas
simples, o segundo intelectual, alegórico e de sentido moral, e o terceiro era
o “sentido místico, acessível somente às almas mais profundas”, que corresponde
a gnose cristã ou conhecimento esotérico como Jaeger o denomina. Um exemplo
prático de sua interpretação alegórica é o de não fixar literalmente os sete
dias da criação do Gênesis em períodos de 24 horas, como afirma Orígenes: “Que
pessoa inteligente acreditaria que um primeiro, um segundo e um terceiro dia,
tarde e manhã aconteceram sem Sol, Lua e estrelas? E que o primeiro dia, se
podemos assim chama-lo, foi até mesmo sem um céu”? Porém, se tal linha de
interpretação tivesse progredido e sido mais amplamente aceita pela Igreja, de
modo que os dias da criação pudessem ter sido interpretados alegoricamente como
um processo de eras de milhões de anos, não teria feito posteriormente enorme
diferença na polêmica relação da Igreja com a teoria da evolução de Charles
Darwin (1809-1882) no século XIX? Jaeger também afirma que “Clemente de
Alexandria (150-215) e Orígenes se tornaram os fundadores da filosofia cristã”.
Butterworth cita São Jerônimo (347-420) que vai mais longe afirmando que
Orígenes seria “o maior instrutor da Igreja depois dos apóstolos”. Jaeger
também considera grande influência do platonismo, e talvez também estoica,
sobre Orígenes, convergindo na ideia do retorno ou que o fim deve ser igual ao
princípio chamada APOCATÁSTASE, como uma Salvação Universal em que “Deus seja
tudo em todos” – II Coríntios 15,28. Jaeger ainda considera que Orígenes morreu
como mártir justamente porque pensava de modo muito avançado para sua época ou
que “não era ainda chegado o tempo propício às suas ideias”. APOCATÁSTASE OU
SALVAÇÃO UNIVERSAL. A SUA DOUTRINA DA APOCATÁSTASE, por exemplo, implicando na
Salvação Universal, gerou muita polêmica, como comenta Butterworth, quando
Orígenes “foi lançado pela lógica de seu pensamento a afirmar (...) a
possibilidade teórica da salvação do diabo, pois (...) quando Deus for “tudo em
todos”, não haverá lugar para um diabo como tal”. Mas poucos parecem
preocupar-se com a flagrante contradição da possibilidade oposta do Deus
cristão, caracterizado na Escritura Sagrada com essencialmente amoroso e
misericordioso, pois o Princípio do Amor e do Perdão é provavelmente um dos
mais característicos do Cristianismo. Ficar assistindo impassivelmente a grande
parte de seus próprios filhos sendo torturados nos fogos do inferno por toda a
eternidade. Afinal, não é um Princípio fundamental do Cristianismo afirmar que
“Deus é amor”? I João 4,8-16. Não seria o inferno eterno a maior contradição do
Cristianismo? O que se poderia então dizer de uma justiça divina (teodiceia)
tão desproporcional, onde houvesse um Deus que cobrasse penalidades eternamente
de seus próprios filhos por erros cometidos na finitude do tempo? Se a maior
desproporção matemática possível surge da comparação do infinito com o finito,
poderia haver maior injustiça do que essa? Não seria mais próprio de um Pai
amoroso, misericordioso e justo que, após a expiação das respectivas faltas
houvesse uma Salvação Universal, ou seja, para todos os seus filhos, como
sustenta Orígenes, fundamentando-se nas Escrituras Sagradas? Para sustentar tal
posição Orígenes necessitou reinterpretar o temido “fogo eterno” do inferno
como sendo uma punição de “uma consciência ardente e picada pelos espinhos do
remorso”. Pois ele afirma que “encontramos no profeta Isaías que o fogo pelo
qual cada homem é punido é descrito como pertencente a si mesmo. Pois ele diz
“andai ente as labaredas do vosso fogo e entre as chamas que acendestes para
vós mesmos” Isaías 50,11 “Eis que todos vos que acendeis fogo, e vos cingis com
faíscas, andai entre as labaredas do fogo e entre as faíscas que acendestes”.
Mas ao trazê-lo por meio de sua interpretação alegórica para a consciência, ele
relativiza a duração do fogo, assim como comenta Jaeger sobre Gregório de Nissa
(335-394), que “aceita o mito de Platão e o dogma cristão do castigo na outra
vida. Mas não aceita a ideia cristão de um castigo eterno depois da morte
(...)”. Todo o mal é para ele essencialmente uma privação do bem. A ideia da
restauração final ou APOCATÁSTASE vem-lhe, juntamente com outros elementos do
seu platonismo, de Orígenes (...), pois como comenta Butterworth, para Orígenes
“a punição, também, tem de ser para disciplinar e para remediar o caráter, e
não meramente para infligir dor, o que seria indigno de Deus. PREEXISTÊNCIA E
TRANSMIGRAÇÃO DAS ALMAS: BUTTERWORTH COMENTA, considerando que as escrituras
sagradas falam que se chegaria um tempo em que Deus será “tudo em todos”, que
então “Orígenes foi levado a crer que um dia o amor de Deus provaria ser mais
forte que a liberdade humana e que todos os espíritos criados retornariam
àquela unidade e perfeição que era sua no princípio”. Orígenes, contudo,
deveria saber muito bem que esse dia ainda estaria muito distante, por isso,
Buttenworth acrescenta que para Orígenes “enfrentar essa dificuldade ele
assumiu uma sucessão de mundos” nos quais o processo de transmigração das almas
poderia oferecer todo o tempo indispensável para que estas espirassem suas
faltas até avançar para a perfeição última. Tudo parece, pois, indicar que
Orígenes tentou conciliar o Cristianismo com o Platonismo, tornando-se assim,
por hipótese uma espécie de elo perdido entre essas duas visões, inclusive por
tentar especular sobre um dos pontos mais polêmicos para tal reconciliação que
é a doutrina da METEMPSICOSE (33). Como particularmente considera Butterworth:
“a preexistência e futura reencarnação (34) da alma humana foi uma doutrina
recebida com muita oposição na Igreja devido à sua óbvia conexão com a
especulação grega e oriental. Na verdade, há autores como Santos, que já
parecem ter alguma dificuldade com a doutrina da preexistência da alma, que
todos os autores aceitam como tendo sido sustentada por Orígenes, e apesar de
tal doutrina aparecer claramente no livro da Sabedoria de Salomão (37), Bíblia
Católica. Porque ela foi arbitrariamente condenada no Concílio Constantinopla
II, e foram ironicamente os textos dos próprios acusadores de Orígenes (particularmente
Justiniano e Jerônimo), que acabaram por os fragmentos que sobreviveram à
perseguição sistemática (38) que foi decretada por Justiniano I. Afinal, o que
se poderia esperar de um homem tão contrário ao livre pensamento que fechou por
decreto em 529 até a Academia de Platão em Atenas? Orígenes argumenta em favor
de sua doutrina da preexistência das almas como segue: “Pois Deus não faz
acepção de pessoas, Atos 10,34, e entre todos estes seres que são de natureza
única (pois todos os seres imortais são racionais) ele deve fazer alguns
demônios, algumas almas e alguns anjos, mais propriamente está claro que Deus
fez de um ser um demônio, de um ser uma alma e de um outro ser um anjo como um
meio de punir cada um na proporção de seu pecado. Pois se não fosse assim, e as
almas não tivessem preexistência, como encontraríamos bebês recém-nascidos
cegos (41), quando eles não cometeram nenhum pecado, enquanto outros nascem sem
defeito algum? Não parece ser esta uma doutrina lógica e justa que mereceria
pelo menos algum espaço para investigação e reflexão, ao invés de ser
arbitrariamente condenada no Concílio Constantinopla II, mesmo com o Papa
Vigílio ausente (43), em 553 DC? REFERÊNCIAS CITADAS: (33). É no mínimo curioso
que o Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, publicado por Vozes e
Paulus, traduzido do original italiano, não apresentar nenhum verbete sobre
metempsicose, transmigração, reencarnação ou qualquer de seus sinônimos em suas
1483 páginas. (34). Apesar de haver várias passagens na Bíblia Sagrada
relacionadas à reencarnação, principalmente relacionadas à tão importante
profecia do retorno do Profeta Elias (no corpo de João Batista) para preparar a
vinda do Messias, que caracteriza essencial ligação do Velho com o Novo
Testamento. Como o Cristo disse: “Porque todos os profetas bem como a lei
profetizaram até João. E, se quiserdes dar crédito, ele é o Elias que havia de
vir. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”, Mateus 11,13-15. (37). “Eu era uma
criança de boas qualidades, com alma boa. Ou melhor, porque eu era bom, vim a
um corpo sem mancha”, Sabedoria 8,19-20. (38). Conforme comenta Henri de Lubac
do ocorrido com a obra de Orígenes, após o Concílio Constantinopla II:
“Seguiu-se a destruição física dos escritos. Começou no fim do século IV; mas
neste tempo (depois de 553 DC) foi conduzida sistematicamente. (...). Não há
meios de medir tal perda. Epifânio e Justiniano serviram bem aos inimigos da
civilização cristã”. (41). Provável alusão a pergunta dos discípulos a Cristo:
“Rabi, quem foi que pecou para ele nascer cego? Foi ele, ou foram seus pais?
João 9,2. (43). O Papa Vigílio (500-555) foi indicado pelo Imperador Justiniano
depois que Justiniano depusera e exilara o anterior, o Papa Silvério (480-537),
que assim morreu “poucos meses depois de subnutrição”. Vigílio nem compareceu
ao Concílio que começou em 05 de maio de 553, inicialmente alegando estar
doente. “Apesar do convite do Imperador e dos Bispos, Virgílio não compareceu
ao Concílio”. Os anátemas contra Orígenes foram publicados em 14 de junho de
553. Justiniano anuncia publicamente o perjúrio de Virgílio em 14 de julho de
553. Uma vez que o Concílio completou seus trabalhos, Justiniano enviou as atas
a todos os bispos para que as assinassem. “Justiniano concordou que Vigílio
retornasse à Roma, desde que reconhecesse o Concílio. Vigílio resistiu por seis
meses. Em fevereiro de 554, declarando que teria sido enganado por seus
conselheiros, Vigílio capitulou. Em seu Constitutum II, reverteu sua posição
anterior e aceitou a Sentença e os anátemas do Concílio (...)”.
www.ricardolindemann@uol.com.br. Abraço. Davi
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