quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

APRESENTAÇÃO III


Religião Afro-brasileira. Candomblé. Livro O Candomblé da Bahia. Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo I. APRESENTAÇÃO III. Se este o perde e outra pessoa o usa, não terá nenhum poder para esta, pois não foi posto em participação, nem direta, nem indireta, com a cabeça dela. Vê-se, pois, que a cerimônia da lavagem nada tem de dramático nem de pitoresco. Atenção, porém. É de importância capital para o indivíduo que a ela se submete, pois daí por diante fica ligado a um mundo diferente. Não gozará mais da liberdade que antes possuía, está preso a toda uma cadeia de obrigações negativas ou positivas, de encargos e de deveres. Não poderá mais comer certos alimentos, os que são eho (tabu) para seu deus; não poderá ter relações sexuais no dia da semana dedicado à divindade; finalmente, compromete-se tacitamente a participar do ciclo de despesas do candomblé. Uma primeira ruptura se produziu, o homem se destacou da civilização profana, brasileira, para se integrar na civilização africana. Os Orixá detêm agora poder sobre ele; se violar os tabus, se não desempenhar suas novas obrigações, o deus que em parte já reina na sua cabeça pode puni-lo por meio de uma série de infelicidades, doenças, desgraças familiares, que irão se acumulando se não fizer caso dos primeiros avisos. O colar, com o decorrer do tempo, pode perder sua força e neste caso urge proceder a nova lavagem. Porém, para tal, não há datas marcadas, pois, a decadência da virtude das contas varia de acordo com as circunstâncias. b) O bori. Esta cerimônia foi descrita, mais ou menos minuciosamente, por Manuel Querino (1851-1923) e por Pierre Verger (1902-1996) na Bahia, por René Ribeiro no Recife; são encontrados também alguns detalhes na reportagem de Henry Georges Clouzot (1907-1977). Isto tudo nos permite não perder tempo com a descrição do ritual e ir imediatamente ao que é mais importante. O nome popular que designa esta cerimônia mostra bem tanto a função quanto o que tem de essencial: "dar de comer à cabeça". A pessoa que a faz realizar senta-se numa esteira recoberta de pano branco, com o torso nu e uma simples toalha nos ombros. O sacerdote, igualmente vestido de branco para a circunstância, consulta primeiramente os oubis para conhecer a vontade dos deuses. Se estes aceitaram a cerimônia, começará por recitar, "em língua", as fórmulas consagradas, pedindo a bênção dos Orixá e das almas dos antepassados; tritura entre os dentes uma noz de oubi e por três vezes cospe o conteúdo no rosto do paciente. Enquanto os assistentes entoam cânticos apropriados, diversos alimentos são preparados: parte será oferecida ao Orixá "dono da cabeça", outra aos mortos, outra será disposta sobre a cabeça de quem faz realizar o bori, e a última enfim será cozida para a refeição final. E, o que é ainda mais importante, sacrifica-se um galo; seu sangue rega, além da pedra do santo, a cabeça, o peito, os pés e as mãos do fiel. O animal foi morto arrancando-lhe violentamente a cabeça; o pescoço, ainda sacudido por movimentos espasmódicos e do qual o sangue jorra, é aproximado da boca do paciente que por três vezes, estirando a língua, o lambe. A cerimônia termina por nova consulta aos oubi, a fim de saber se os deuses estão satisfeitos e aceitam o ritual celebrado, sendo então consumida a parte das oferendas que foi cozida. O paciente, com o rosto, as mãos e os pés ainda sujos do sangue do sacrifício, que lhe coagulou sobre a pele, deve ficar a noite toda no terreiro, conservando na cabeça pequena parte dos alimentos para que o Orixá tenha tempo de comê-los. O bori (contração de obori) pode corresponder a diversos fins. "Tem por objetivo (...) obter saúde", diz Manuel Querino. E René Ribeiro, depois de ter definido o ori como sendo o próprio espírito do homem, acrescenta: "Sua fragilidade é motivo da maior preocupação, ritos como o dar comida à cabeça (...) tomando-se periodicamente necessários para que o indivíduo não se ressinta das possessões repetidas, como ainda possa oferecer a necessária resistência à ação de influências mágicas ou de entidades malévolas. Estes dois textos se completam, pois a doença a que Manuel Querino alude não é senão um sinal do enfraquecimento do ori, o resultado de "influências mágicas ou de entidades malévolas". No entanto, este mesmo autor, falando mais adiante do rito de iniciação, faz observação importante para nós: "Há pessoas que, apesar de pertencerem à seita, todavia não se querem prestar a dançar e a cantar de público, na ocasião em que o santo chega inesperadamente. Nesse caso, evita-se a manifestação, não completando o trabalho; restringe-se a cerimônia com a supressão da raspagem da cabeça, e não se espargindo sobre ela o effun. Isto é, no fundo a iniciação destes adeptos se limita ao bori e à educação religiosa. A oferta alimentar à cabeça, na medida em que efetivamente fortifica o ori, pode ter virtude profilática ou curativa. Por outro lado, na medida em que, por intermédio do sangue, liga a pedra do Orixá e o indivíduo, do mesmo modo que, por intermédio do alimento sagrado, se realiza uma ligação entre o deus, os mortos, os membros presentes do candomblé e a pessoa que põe em prática o bori, - promove, de maneira mais forte ainda do que a simples lavagem das contas, a incorporação do fiel à civilização africana. Constitui, em suma, a incorporação daqueles que serão servidores da seita, sem jamais manifestarem fenômenos de possessão. A lavagem das contas pode se reduzir ao simples banho de ervas sagradas, sem efusão de sangue, enquanto o bori requer o sacrifício de um "animal de duas patas"; a ligação entre a pedra divina e o indivíduo é, por conseguinte, neste caso, infinitamente mais estreita. Mas o sangue de um "animal de duas patas" tem menos força do que o de um "animal de quatro patas", e por isso esta participação é menos adiantada do que aquela que se estabelece com o rito de iniciação. No bori, o sangue que corre sobre a pedra, sobre o colar (se for feita a lavagem das contas ao mesmo tempo que a cerimônia de "dar comida a cabeça", como na descrição de Verger) é o mesmo lambido no pescoço da ave sacrificada, e a participação se opera, pois, simultaneamente. A lavagem das contas, ao contrário, pode se fazer sem a participação daquele que as usará (o qual não merece conhecer ainda os "segredos" da seita), efetuando-se a lavagem da cabeça ou do corpo um ou mais dias depois. Ora, este afastamento no tempo, na medida em que se realiza, manifesta ligação menor entre a pessoa e a realidade sobrenatural. Assim também, o indivíduo que dá comida à cabeça nada mais faz do que lamber o sangue pondo a língua de fora; mas a inicianda, como veremos, enfia o pescoço do galo no fundo da boca para engolir o sangue do "animal de duas patas", e, quanto ao sangue do “animal de quatro patas", recebe-o por um pequeno orifício praticado no alto do crânio. O bori, então, ocupa realmente posição intermediária no sistema que entrelaça homens e divindades, colocado entre a lavagem das contas, de um lado, e do outro, a iniciação propriamente dita. Uma vez que se trata da religião afro-brasileira, tão rica em rituais complexos, não se deve esquecer que o bori compreenderá ou não determinados elementos segundo o fim para o qual tende. Seja fortificar unicamente o espírito, seja ao mesmo tempo colocar a pessoa em associação mais estreita com o mundo dos candomblés. De qualquer modo, porém, o social nada mais faz do que inscrever, no domínio das relações interpessoais, as leis da vida mística. Os graus de participação ao grupo nada mais fazem do que seguir os da participação do homem ao seu Orixá. As variações da solidariedade social não são enfim mais do que o reflexo e a consequência das variações da solidariedade estabelecida entre a pessoa e o mundo dos deuses. Eis porque a posição do fiel na seita muda de acordo com a força do vínculo que o une a ela. O que, entre parêntesis, explica porque a união do sangue de um "animal de duas patas", sendo mais vigorosa, exige que o espírito do indivíduo seja fortalecido primeiramente, para depois poder suportá-la impunemente (e daí os dois aspectos complementares do bori). Por fim, a coerência da sociedade religiosa, das formas e dos processos de relação entre os membros dela, a participação maior ou menor destes membros ao tesouro de representações coletivas, os tipos de cooperação, dependem, em última análise, das ligações religiosas preestabelecidas entre os candidatos à vida do candomblé e as divindades. Não é a morfologia social que domina e explica a religião, corno queria Durkheim, mas ao contrário é o aspecto místico que domina o social. A iniciação. A lavagem das costas e o bori são partes obrigatórias da iniciação, pois a participação mais íntima à vida do candomblé exige forçosamente, primeiro, a passagem pelos graus intermediários. Além disso, a filha de santo iniciada deverá trazer sempre consigo seu colar; é preciso, portanto, prepará-lo. Por outro lado, os ritos de iniciação são extremamente dramáticos e não deixam de apresentar perigos para os indivíduos que a eles se entregam, por suscitarem forças misteriosas e poderosas; de onde a necessidade de fortificar a cabeça, a fim de que possa impunemente suportar o desencadeamento destas forças; como rito profilático e não simplesmente como incorporação, o bori é também necessário. Mas se a lavagem das contas e o "dar comida à cabeça" fazem parte da sequência cerimonial da iniciação, naturalmente esta é infinitamente mais rica, mais complexa, uma vez que, por meio dela, a incorporação ao candomblé se toma ainda mais estreita. Henry Georges Clouzot (1907-1977) parece pensar que a iniciação tem por fim dar origem ao êxtase. No entanto, escreve ele, se a possessão não é efetivamente senão uma crise histérica, por que existiria na Bahia, e somente na Bahia, tal proporção de doentes? O ponto central da iniciação consistiria, pois, em administrar ervas especiais que agem como drogas sobre as candidatas, reduzindo-as a um estado de atordoamento, mantendo-as então sob uma espécie de dominação hipnótica e estabelecendo-lhes no espírito, quando estão nesse estado de desagregação mental, uma associação entre o desencadear de certas músicas e o transe; associação que é tanto mais forte quanto é obra de sugestão, e a sugestão continua a operar quando o indivíduo retorna do estado hipnótico ao estado de vigília. Sua conclusão é, no entanto, mais flexível, pois leva em consideração ainda o fato de certas candidatas serem possuídas por um "santo bruto" antes de terem sofrido as provas iniciatórias: "Creio que as provas a que são submetidas as iaos constituem tratamento para certas neuroses, mas tratamento especial pois, eliminando crises agudas, mantém essas mesmas neuroses fixando suas manifestações em certas formas. Por exemplo: a epiléptica que entrou na camarinha acompanhando as filhas de santo. Suas crises se espaçaram imediatamente, desaparecendo no fim de 15 dias (...). Em lugar de se abandonar "às convulsões, aliviava-se (ou punha fim à inibição) entrando em estado de santidade". Clouzot já aqui reconhece que a iniciação, em vez de procurar destruir o indivíduo para torná-lo sugestionável, e assim sujeito às crises de possessão, tem muito mais por objetivo controlar estas crises. No entanto, encara ainda o controle através da medicina psiquiátrica. Dever-se-á encarar necessariamente as centenas de filhas e filhos de santo que vivem na Bahia como outros tantos epilépticos, histéricos, paranoicos, numa palavra, neuróticos - embora nosso autor pareça de início rejeitar esta hipótese? Não negamos que a explicação de Clouzot seja válida para alguns casos. Mas o transe de possessão tem caráter antes sociológico do que patológico; Jean Melville Herskovits (1895-1963) observa com muita razão, não devemos esquecer que este transe é fenômeno ''normal" para certas civilizações como as da África Negra, imposto pelo meio e constituindo uma espécie de adaptação social a certos ideais coletivos. É preciso estudar o cerimonial da iniciação sem nenhum etnocentrismo, sem escolher entre os elementos constitutivos aqueles que nos parecem os mais importantes ou os mais explicativos, mas também, por outro lado, sem negligenciar nenhum dos aspectos da questão: o controle da vida mística, a associação do indivíduo com seu Orixá, a incorporação de um novo membro na confraria religiosa, a morte e a ressurreição do candidato. Todos os que descreveram a iniciação na Bahia, dão como início da cerimônia a entrada do candidato ou candidata no santuário em que vai daí por diante viver muitos meses, de três a doze conforme o candomblé. Somente Pierre Verger (1902-1996), referindo-se à África, introduz na sequência o cerimonial da morte e da ressurreição do indivíduo. Quando alguém é possuído por um "santo bruto" e desaba finalmente no chão, deve ser transportado para o aposento em que o babalorixá vai "matar o santo", isto é, fazer o paciente retomar ao estado normal. A queda ao solo corresponde à morte da personalidade antiga e o rito de "matar o santo", à ressurreição; o ser que renasce não é mais, naturalmente, a personalidade antiga e sim um novo "eu" daí por diante divinizado. Todavia, embora a vontade do Orixá de montar este ou aquele indivíduo, transformando-o em seu cavalo, se manifeste muitas vezes desta maneira patética (já demos atrás alguns exemplos), pode-se na Bahia vir a ser filho ou filha de santo sem passar pelo estado preliminar de "santo bruto". Quando, por exemplo, descobrimos uma pedra de forma estranha, podemos reconhecer nela o apelo ainda misterioso de uma divindade; é o caso de Olympia, cuja história nos conta Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). A doença pode igualmente ser um sinal; conhecemos certo filho de Omolú que se iniciou depois de ter apanhado varíola. Algumas filhas de santo são, por sua vez, desde cedo designadas pelos pais para fazerem parte da confraria, sem que tenham manifestado em seu comportamento qualquer propensão a cair em transe. Nestes casos, morte e ressurreição só terão lugar depois da entrada no santuário, e então sob a forma de uma verificação, de uma espécie de teste para saber se o Orixá está realmente de acordo com a continuação do cerimonial. Tanto na lavagem das contas quanto no bori, por meio do banho de ervas ou pelo sangue, era a cabeça colocada em comunicação com a pedra da divindade, mas esta era uma pedra do pegi, uma pedra já "feita". Na iniciação, ao contrário, é preciso preparar nova pedra que será a pedra particular da iniciada, aquela de que terá de cuidar durante o resto da vida e à qual dá de comer. Daí a frase de Nina Rodrigues: "A feitura do santo compreende duas operações distintas, mas que se completam, a preparação de fetiche e a iniciação ou consagração do seu possuidor". Realmente, se, para facilitar a descrição, podemos separar os dois rituais, ambos são, todavia, mais do que complementares, ligados que estão de modo inextricável. Isto porque, como dissemos, a incorporação do indivíduo à vida do candomblé é consequência da sua ligação com um Orixá, e porque a força do Oríxá está em sua pedra. O que se pode afirmar é que esta preparação e, segundo a expressão de Nina Rodrigues, esta colocação do "fetiche" e da cabeça em participação, têm lugar no próprio começo do cerimonial de iniciação, no decorrer das primeiras etapas. Começa-se, naturalmente, - e esta é a função de babalaô, pela consulta aos búzios divinatórios, para saber qual o santo que reclama como sua candidata. Uma vez conhecido o nome do Orixá, então tem lugar a entrada no santuário. Vai então a candidata, nas trevas em geral luminosas das noites tropicais, tomar banho na fonte sagrada; põe de lado as velhas vestes antes de entrar n'água, envergando novas roupas à saída. Assim fica simbolizada, pelo banho lustral e pela mudança de trajes, a passagem da vida profana à vida mística. Regressando ao santuário, é solenemente recebida pelos dignitários da seita, que a fazem sentar num banco ou cadeira que nunca tenha servido, constituindo isto, de certo modo, um rito de entronização. Prepara-se a pedra. "A preparação ou lavagem do fetiche é coisa bem complicada em que o pai de terreiro põe toda a sua ciência, toda a sua perícia. A pedra do raio de Xangô, por exemplo, deve ser colocada num banho de azeite de dendê, de ervas sagradas; a de Yemanjá, em mel, farinha de milho, etc. Em seguida, esta pedra será colocada em contato com o indivíduo e com o colar que ele usará. Antes de mergulhar mais profundamente no dédalo do ritual, celebra-se um bori para fortificar a cabeça, tornando-a capaz de suportar sem perigo as crises repetidas e prolongadas que vão se suceder. Além disso, se necessário, outras "dar de comida à cabeça" terão lugar em seguida. O bori, além de tornar a pessoa apta a continuar sem perigo a iniciação, liga também mais estreitamente, como já mostramos, a pedra, o santo, o candidato e o grupo social que constitui o candomblé. É preciso acrescentar que esta pedra não será esquecida no decorrer dos rituais; uma parte dos alimentos, dos animais sacrificados, do sangue derramado, lhe será oferecida, de modo que a fabricação da pedra, ou como se diz a "fixação" de Orixá na pedra, segue passo a passo todas as etapas da "fixação" paralela do Orixá na cabeça do iniciado. A respeito de cerimônias proibidas aos olhos profanos, tudo o que se pode afirmar é que os dois movimentos são simultâneos, a pedra entrando no pegi ao mesmo tempo que o indivíduo entra na seita; as duas incorporações coexistem e traduzem a mesma participação, do objeto e de seu possuidor, com uma realidade sobrenatural idêntica. O babala6 pode às vezes se enganar ao consultar a sorte; a verdade é que tal só acontece raramente. Conheci apenas um caso controvertido, o de uma filha de Exú; era, porém, a filha que se sentia descontente com seu "Santo", e pretendia ser filha de Ogun; o babalorixá que a tinha feito não cessava, ao contrário, de afirmar que S (...) era mesmo filha de Exú. Em todo o caso, logo da primeira vez, não se pode nunca ter certeza de que o babalaô não se enganou. Trata-se de erro muito grave, pois o verdadeiro Orixá a que pertence o cavalo não deixaria efetivamente de manifestar seu descontentamento, vendo os sacrifícios, os alimentos, irem a outro que não a ele; para se vingar, lançaria doenças, azares, contra o cavalo em questão: justamente porque S (...) se sentia doente é que acreditava que tinha sido "malfeito”. Para evitar estes casos de reconhecimento errado, que obrigariam o indivíduo a praticar duas operações caras e difíceis, a de "tirar o santo" da cabeça e em seguida colocar outro, realiza-se, nos primeiros estágios da iniciação, toda uma série de ritos de "confirmação". Livro O Candomblé da Bahia. Rito Nagô. Abraço. Davi. Continuar na página 45

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