sexta-feira, 15 de agosto de 2025

XINTOISMO. Parte V

Xintoísmo. Bushidor. BR. Mitologia e influência na formação da cultura e o caráter do povo japonês. XINTOÍSMO. Parte V. A Natureza e o senso estético no Xintoísmo.  Se observarmos as fases de desenvolvimento porque passaram as religiões, é de indubitável conclusão o primitivismo do Xintô, a fase ainda "das ideias infantis" dessa religião como afirma Griffis (GRIFFIS, op. cit., p. 69). "Estagnado" nessa fase de desenvolvimento, a Natureza - por força da crença de que os homens, a Natureza e os deuses, provêm de um único ancestral - é objeto de profunda apreciação, respeito e inúmeros festivais por todo o país. A comunhão com o divino e com a própria Natureza se funde num único sentimento, assim descrito emocionadamente por Rochedieu: [...] o Japão sabe conservar certos lugares unicamente pela beleza. É muitas vezes surpreendente e comovedor para o Ocidental ver nos parques grandes templos, ou simplesmente presenciar num jardim público. Um pai acompanhado do filho parar em silêncio ao pé de um lago, de uma pequena ponte, de uma cascata ou das flores. Tendo uma atitude de recolhimento porque, para o japonês, a comunhão com o divino obtém-se das mais das vezes através da união de todo o seu ser com as belezas naturais. Com obras de arte selecionadas, com a harmonia  que  emana de  um  monumento. Não é o valor ou  a grandeza da matéria  utilizada   que  cria  a  beleza,  mas  o amor com  que  o artista se debruça  sobre  a  sua obra,  nela  trabalhando por vezes durante anos, mas incutindo desse modo, no objeto que cinzela ou no quadro que pinta. Algo da sua alma, algo de si próprio, e esse algo que procura transmitir através da obra de arte é sempre aquilo que de melhor há em si (ROCHEDIEU, op. cit., p.37). A beleza natural é fundamental para a veneração dos kami nos santuários, independentemente do kami aí cultuado. Segundo Ono, é esse refinado senso estético da beleza que enleva o homem, conduzindo-o do mundo profano ao sagrado, que o faz experienciar o viver em comunhão com "o alto e profundo mundo do divino" (ONO, op. cit., p. 97). As leis xintoístas não provêm de um deus único, dado aos homens por revelação como nas grandes religiões do Ocidente. São descobertas dentro da Natureza onipresente, encantadora e ao mesmo tempo mística que se lhe mostra. A Natureza não é hostil como na mitologia judaico-cristã que expulsa o homem do Paraíso. Pelo contrário, ela existe abençoada pelos deuses e se desenvolve com harmonia e cooperação (ibidem p. 103). É portanto, dádiva divina, presente dos deuses para os homens. A vida econômica. A vida conectada ao kami - propósito natural do Xintô - fornece também o perfil ideológico das atividades comerciais e industriais do país. O Xintô considera que não apenas as atividades da cultura, mas a produção de "alimentos, roupas, bens e tudo que proporcione felicidade ao mundo, está conectado diretamente ao kami" (ONO, op. cit., p. 84). Fazendo jus a um forte senso da preponderância do coletivo, para o Xintô, "todo aquele que promove sua própria felicidade, deveria promover também a felicidade da sociedade. [...] Nós somos mais felizes quando fazemos outros felizes" (idem). Uma atividade que não tenha essa ligação, pode estar fadada ao fracasso (idem). Mas o Xintô não é ideário que despreza a matéria, falando apenas de "bens espirituais e divinos". É natural desejar um bem e adquiri-lo; não é necessariamente um mal, assim como não ter bens não é motivo de admiração. É natural que uma vida correta, de caminhante da Via dos deuses, seja por estes abençoada (idem). Os desejos de bens formulados para o bem estar público serão abençoados pelos kami, ao contrário, "a riqueza utilizada com fins egoístas ou que fira outros, não está de acordo com a Via dos deuses" (idem). O Matsuri. Nas suas origens o matsuri, que vem do verbo matsuru – adorar, venerar -, era uma cerimônia simples realizada no alto de uma colina ou na orla de um bosque. O que explica a maciça presença dos santuários xintoístas junto a entrada de bosques e florestas (ROCHEDIEU, op. cit., p. 112-113). A princípio o matsuri era uma cerimônia em que os homens do clã pediam aos deuses por boas colheitas. Era realizada à noite, iluminada por alguns archotes, em torno de uma árvore onde acreditava-se desciam os deuses (ibidem p.113). O matsuri era o centro espiritual da sociedade, o que determinava as relações entre os que adoravam seu kami (ONO, op. cit., p. 106). O momento mais solene era a dança do xamã vestido de mulher que em transe pronunciava palavras, como no ritual da dança mitológica da deusa Ame-no-Uzume que atraiu a atenção da deusa Amaterasu (idem). Com o tempo o matsuri estendeu-se por todo o povo da aldeia e após as cerimônias rituais de  preces, passava-se aos festejos de rua, alegres e enérgicos, que hoje adquiriram características populares e folclóricas. São xintoístas várias formas de entretenimento como "a dança (kagura), a música acompanhada de danças clássicas (bugaku), competição de arco-e-flecha (kyudo), arqueria montada (yabusame), turfe e a luta japonesa sumô" que são executadas alegremente como oferenda aos deuses (ibidem p. 71). Em tempos antigos era ato importante a prática de ritos ao kami pelo Imperador e pela alta corte, para assegurar a paz e a tranquilidade da nação (ibidem p. 76). De fato, matsuri compõe também a palavra matsuri-goto que significa governo, mas que transcendentalmente significa para o japonês “administrar, dentro de um espírito de matsuri, os assuntos deste mundo” (HERBERT, 1964, p. 269) Conceito de uma época em que os assuntos de governo e da religião não eram separados, ou seja, os atos de governo eram também religiosos (HARADA, op. cit., p.33). O chefe de uma comunidade (uji) era seu representante espiritual e temporal, e ao Imperador, pela sua ascendência divina, cabia-lhe a função de zelar como "alto sacerdote" pelo bem estar de todo o povo (Shunzo Sakamaki in MOORE, 1975, p. 152).  Compreendem o rito do matsuri a seguinte sequência da cerimônia (HERBERT, 1964, p. 270-271): a) Kiyome - purificação interior e exterior dos participantes; b) Shubatsu - purificação dos homens e das coisas no local onde se irá celebrar o matsuri; c) Kôshin - petição ao kami para que “faça descer o seu espírito sobre o local do matsuri”. Para isso são necessárias três coisas: 1. tocar um tambor ou campainhas. 2. abrir a porta interior do santuário; entoar o chamamento do kami, que por vezes é acompanhado de certas palavras místicas. d) Kensen - apresentação de oferendas ao kami; e) Norito-sôjo - salmodiar os norito (invocações); f) Tamagushi-hôten - oferenda de um ramo de sakaki; g) Bugaku - oferenda ao kami de cantos e danças; h) Ura-goto - adivinhação; i) Tessen - retirar as oferendas apresentadas ao kami; j) Shôshin - convidar o kami a retirar-se; k) Naorai ou nahorahi - refeição feita em comunhão. Os pedidos de boa colheita nos campos e proteção e prosperidade para os aldeões, são precedidos de oferendas várias, geralmente alimentos. Ao final, a saudação e demonstração da alegria por estarem na presença da divindade é feita com um banquete. O matsuri é bastante apreciado com maciça participação do povo, desfiles com andores portando santuários em miniatura (mikoshi) e carros alegóricos acompanhado de dança e música típicas da região ou da ocasião. Alguns desfiles lembram feitos históricos da comunidade. Os matsuri assemelham-se ao nosso carnaval brasileiro no que têm de alegria e descontração. No sumô , tradicional luta japonesa, sobre o dohyô (ringue onde se realizam as lutas) figura construção típica representando o teto de um santuário xintoísta. No início de cada torneio um monge xintoísta procede ao ritual de purificação do local e dos lutadores. Estes, no seu traje de apresentação, trazem penduradas as tiras de papel shide- utilizadas nas cerimônias de purificação xintoísta - atadas à cintura com uma corda trançada que lembra o mitológico shimenawa. Ao iniciar a luta, os lutadores se purificam passando água na boca e jogando sal no dohyô. A ética xintoísta Nascido em meio à Natureza, seu credo e suas divindades daí derivam. Onipresente e provedora, seus recursos - orgânicos, inorgânicos, animais, a flora e a fauna - são uma dádiva dos kami para o bem-estar do mundo (ONO, op. cit., p. 103). O primitivo japonês desenvolveu uma relação orgânica de amor e respeito à Natureza, que o dotou "das virtudes de reverência para com os Deuses, os soberanos e os pais, a bondade para com nossas esposas e nossas crianças..." (HERBERT, 1964, p. 121). A ausência do espírito de retribuição (castigo/recompensa) ligado ao proceder individual é substituído pela subordinação ao grupo. Relata Michiko Yusa: "noções como "ir para o céu" ou respeitantes a méritos religiosos não são motivos para se praticar o bem: se os japoneses praticam boas obras é porque sabem que tais atos vão contribuir para o bem-estar geral da sociedade" (YUSA, op. cit., p. 18). Xintoísmo não considera a existência de uma verdade absoluta como no monoteísmo, onde a coexistência entre os fiéis se dá pelo compartilhamento das mesmas crenças e valores. Os xintoístas consideram a harmonia (和- wa) a base para a coexistência, o que implica aceitação e respeito às diferenças. O homem não foi criado por deuses como no monoteísmo, isto é, não é produto do trabalho de uma divindade, mas produzido pela união do "espírito de dois deuses criadores", isto é, "um terrestre e outro divino" (HERBERT, 1964, p. 120, 103). Então, para o Xintô o homem é biologicamente descendente em linha direta de deuses, o que lhe faz parecer natural modelar sua vida pela de seus ancestrais divinos (ibidem p. 119). Não há um ancestral divino único. Criador e criatura dentro da obra da criação exercem uma função ativa e passiva. Comentando Masao Yamane, Herbert aduz: "sob uma óptica puramente prática, se um homem segue o modo de vida que lhe foi legado pelos seus ancestrais divinos, qual a necessidade que ele tem de codificar regras sobre a conduta que ele deverá observar em tais ou quais ocasiões?" (ibidem p. 120). No xintoísmo as destruições, a desgraça, o infortúnio, têm origem no Yomi, mundo  das trevas e origem do mal (HERBERT, 1964, p. 114). Mas mesmo os oni (demônios, entidades do mal), podem ser circunstancialmente reverenciados como entidades do bem, a despeito de seu comportamento ou característica. São seres invisíveis, assumindo por vezes forma animal cuja expulsão pelo exorcismo deve ser feita pelo monge (LITTLETON, 2003, P. 150). Entre os animais, a raposa adquiriu grande popularidade na cultura. Figurando em inúmeras lendas como animal inteligente que assombra e engana e tem o poder de se transformar em mulher. No Xintô, seu culto é associado ao kami Inari, deus da prosperidade e do arroz, que zela por sua boa colheita (idem). "O mal causado por esses seres é visto apenas como interrupção temporária do caminho natural" (idem). Mesmo o que pratica o mal pode a qualquer momento voltar para o mundo da luz e da bondade. Para o Xintô, a vida do homem é abençoada e "é uma só, ligada linearmente a de seus ancestrais" por isso, o culto não deve ser negligenciado (ONO, op, cit., p. 104). O   nascimento é produto do desejo do espírito divino e tem como missão, "por um lado, a responsabilidade de realizar as esperanças e ideais de seus ancestrais. De outro, ele tem o inescapável dever de tratar seus descendentes com grande amor e carinho. Então eles também poderão realizar as esperanças e ideais do espírito de seus ancestrais" (idem). Não existe no Xintô a noção de pecado como o oposto da virtude. O homem já é originariamente virtuoso, o pecado é apenas "algo extrínseco" ao homem, "um erro que não afeta a verdadeira natureza do homem" (HERBERT, 1964, p. 133). O erro não se liga à noção de pecado, mas a um inato senso de vergonha pela perda da honra. Para cuja recuperação, mesmo a vida era considerada um preço justo a se pagar (NITOBE, 2005, p. 60).  O japonês tem a convicção íntima de poder vencer e suplantar qualquer adversidade porque crê haver herdado de seus antepassados, divinos dons e faculdades especiais. Bastando-lhe apenas deixá-los manifestar e então, as virtudes dos kami surgirão espontaneamente. Hirata dizia que o homem japonês "foi trazido à existência pelos espíritos criadores dos sagrados kami ancestrais", razão porque possuem já a Via dos Deuses (HERBERT, 1964, p. 121).  Na ausência do Bem e do Mal como entidades absolutas, a moral e a ética baseiam-se na honra. Estendendo-se para além da própria, abarcando também a da família, revela-se satisfatório instrumento de controle social. A honra é o que liga o japonês ao senso ético, afirmava Nitobe. ( Inazo Nitobe apud in ibidem p. 130). O japonês não é dado à especulação filosófica, mas tem forte intuição calcada no sentimento, que se manifesta desde a abnegação até o sacrifício pessoal. O que geralmente permanece reprimido pela disciplina social, se manifesta por vezes de forma surpreendente (BRILLANT et alii, op. cit., p. 167). O Ocidente, de racionalismo cartesiano e positivismo científico, certamente estranhará a desnecessidade do burilar técnica das palavras e de definições precisas dessa cultura. Influenciada fortemente pelo xintoísmo, palavras são insuficientes para se narrar o Todo, que é inenarrável. E o Todo prescinde de palavras para ser apreendido. Para Sokyo Ono, é o que explica a longevidade de dois milênios da fé nipônica: é sentida, não pensada, isto é, apreendida com o coração e não com a razão; e assim também é transmitida na vida quotidiana: de coração para coração, sem necessidade de palavras (ONO, op. cit., p. 92). Embora com ênfase no sentimento, o Xintô não tem "os impulsos da paixão das grandes religiões; são de uma piedade serena e polidos, tanto para com os deuses como para tudo que é superior" (BRILLANT et alii, op. cit., p. 167). Ao estrangeiro, dificultoso se torna entender o Xintô, mesmo com explicações, o que não o impede de compreender o Caminho do Xintô, sem que realmente o tenha entendido racionalmente (ONO, op. cit., p. 94). Talvez porque, como relata Fujisawa, "não há no Xintô espaço entre fé e razão, porque jamais foi perdido seu primitivo contato com a dimensão da profundidade da vida, Do qual devem ter emersos no passado toda crença especial" (FUJISAWA, 1959, p. 16). O japonês não se interessa pelo que o faz crer, mas pelo que o faz fazer, constata Inazo Nitobe (HERBERT, 1964, p. 24). Para o xintoísmo é fundamentalmente essencial a pureza interior do coração do homem. (Engelbert Kaempfer apud in ibidem p. 122-123). No coração (sentimento) estão as regras morais e éticas necessárias ao homem, aí já incutidas pelos deuses, sendo desnecessário especificá-las. Basta que se trilhe o Michi, caminho dos deuses. Explica Edmond Rochedieu a doutrina do teólogo japonês Motoori (1730-1801): Os japoneses, que obedecem à direção necessária dos deuses, nunca sentiram    a necessidade de um sistema ético. O homem, gerado pelas duas divindades     criadoras, Izanagi e Izanami, possui naturalmente o conhecimento do que     deve fazer ou evitar. Todas as ideias morais indispensáveis à sua felicidade     foram inscritas na sua mente pelos deuses. Os desejos humanos, que fazem     parte da nossa natureza, estão ligados à harmonia geral do mundo [...] a     única moral válida é a do coração, que está de acordo com a natureza     humana, refletindo esta própria a harmonia geral (ROCHEDIEU, op. cit., p 126. Página 30. Abraço. Davi

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