sábado, 18 de janeiro de 2025

LEMBRANÇAS INFANTIS E LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS

Psicanálise. Livro Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana. Por Sigmund Freud (1856-1939). LEMBRANÇAS INFANTIS E LEBRANÇAS ENCOBRIDORAS. Em outro artigo, publicado em 1899 no Monatsschrift fur Psychiatrie und Neurologie, tive a oportunidade de demonstrar a natureza tendenciosa de nossas recordações justamente naquele estágio do qual menos suspeitaríamos. Parti do fato conspícuo de que as primeiras memórias de infância de uma pessoa frequentemente dizem respeito a coisas indiferentes e secundárias, enquanto não permanece na memória dos adultos nenhum traço, falo de maneira geral, não absoluta, de impressões importantes, impressionantes e de forte conteúdo afetivo dessa época. Como é sabido que a memória efetua uma escolha entre as impressões que a ela se oferecem, somos obrigados a supor que, na infância, essa escolha se dê seguindo critérios muito diversos daqueles que vigem quando nos tornamos intelectualmente maduros. Contudo, um exame detalhado revela que tal suposição é desnecessária. As lembranças indiferentes da infância devem sua existência a um processo de deslocamento. Elas constituem a reprodução substitutiva de outras impressões, realmente importantes, cuja existência pode ser revelada pela psicanálise, mas cuja reprodução direta se confronta com uma resistência. Ora, como devem sua conservação não ao próprio conteúdo, mas a uma conexão associativa existente entre esse conteúdo e um outro, repudiado, elas justificam o nome de “lembranças encobridoras” sob o qual eu as designei. No artigo em questão eu apenas toquei de leve, sem de modo algum esgotar, a multiplicidade e variedade dos vínculos e das significações que essas lembranças apresentam. Através de um exemplo minuciosamente analisado consegui revelar uma particularidade das relações temporais entre as lembranças encobridas e o conteúdo que elas encobrem. No caso de que se trata, a lembrança encobridora pertencia a um dos primeiros anos da infância, enquanto aquele o representava na memória, conservando-se relativamente inconsciente, se ligava a uma época posterior da vida do sujeito. Designei essa espécie de deslocamento de retroativo ou retrocedente. Talvez seja ainda mais frequente o caso oposto, em que uma impressão indiferente de uma época posterior se instala na memória a guisa de “lembrança encobridora”. Unicamente porque se conecta a acontecimento anterior cuja reprodução direta esta impedida por certas resistências. Essas seriam as lembranças encobridoras. Um terceiro caso ainda possível, em que a lembrança encobridora se conecta à impressão que a encobre não apenas por seu conteúdo, mas também por sua contiguidade no tempo. Essa seria a lembrança encobridora simultânea ou contigua. Qual é a proporção de nossas lembranças encobridoras? Que papel elas desempenham nos diversos processos intelectuais de natureza neurótica? Há muitos problemas que não pude aprofundar no artigo citado acima e cuja discussão também não irei trazer para cá. Tudo o que me proponho a fazer hoje é demostrar a semelhança que existe entre o esquecimento de nomes acompanhados de lembranças falsas e a formação das lembranças encobridoras. A primeira vista, as diferenças entre esses dois fenômenos parecem mais evidentes que as semelhanças. Lá trata-se de nomes próprios. Aqui, de lembranças completas, de acontecimentos realmente, ou mentalmente, vividos. Lá, de uma pane manifesta da função da memória. Aqui, de um funcionamento mnemônico que nos choca por sua estranheza. Lá, de um problema momentâneo, pois o nome que acabamos de esquecer pôde ser reproduzido cem vezes de modo exato e talvez seja recuperado amanhã. Aqui, de uma condição durável, sem remissão, pois as lembranças da infância que são indiferentes parecem não nos deixar durante boa parte de nossa vida. O enigma parece ter, nos dois casos, uma orientação diferente. O que desperta nossa curiosidade científica no primeiro caso é o esquecimento, aqui, é a conservação. Mas após um exame algo aprofundado, constatamos que, em que pesem as diferenças existentes entre os dois fenômenos sob o ponto de vista dos materiais psíquicos e da duração, eles apresentam analogias que retiram das diferenças toda importância. Tanto num caso como no outro, trata-se de deficiências da memória, que reproduz não a lembrança exata, mas algo que a substitui. No esquecimento de nomes, a memória funciona, mas fornecendo nomes de substituição. No caso das lembranças encobridoras, trata-se de um esquecimento de impressões outras, mais importantes. Nos dois casos, uma sensação intelectual nos adverte quanto à intervenção de um problema cuja forma varia de caso para caso. No esquecimento de nomes, sabemos que os nomes de substituição são falsos. Já quanto às lembranças encobridoras, nós apenas nos perguntamos cheios de assombro de onde elas vêm. E como a psicanálise pode nos mostrar que a formação de substituições se dá nos dois casos da mesma maneira. A favor de um deslocamento que se segue a uma associação superficial, as diferenças que existem entre os dois fenômenos. Quanto à natureza dos materiais, a duração e o centro em torno do qual eles evoluem, são ainda mais de natureza a nos fazer esperar pela descoberta de um princípio importante e aplicável tanto ao esquecimento de nomes quanto às lembranças que encobrem. Esse princípio geral seria o seguinte: a parada ou pane do funcionamento da faculdade de reprodução frequentemente revelam mais do que suspeitamos a intervenção de um fator parcial, de uma tendência que favorece essa ou aquela lembrança, ao passo que tenta se opor a outra. A questão das lembranças da infância me parece de tal modo importante e interessante que gostaria de lhe consagrar ainda algumas observações que ultrapassam os pontos de vista que até o presente são admitidos. Até que idade chegam nossas lembranças infantis? Existem, de meu conhecimento, alguns pesquisadores da questão, sobretudo as pesquisas de V. e C. Henri e de Porwin, donde se depreende que existe quanto a essa questão grandes diferenças individuais, certos indivíduos que fazem suas primeiras recordações remontar à idade de seis meses. Enquanto outros não se lembram de absolutamente nenhum acontecimento em suas vidas antes dos seis ou até mesmo dos oito anos de idade. Mas a que se devem essas diferenças, qual o significado? É evidente que não basta reunir em vasta pesquisa os materiais referentes ao assunto, esses materiais estão ainda por ser elaborados e sempre com a colaboração e a participação da pessoa interessada. Em minha opinião, é errado aceitar como ocorrência natural o fenômeno da amnésia infantil, da ausência de lembranças concernindo os primeiros anos de vida. Deveríamos antes ver nesse fato o testemunho de um enigma peculiar. Esquecemos que até mesmo uma criança de quatro anos é capaz de um trabalho intelectual muito intenso e de vida afetiva bem complicada. E deveríamos ficar espantados ao constatar que todos esses processos psíquicos tenham deixado tão poucos traços da memória, ao passo que temos todos os motivos para admitir que todos esses acontecimentos esquecidos da vida infantil exerceram influência determinante no desenvolvimento do indivíduo. Como pode ser então que, apesar de toda essa influência, inquestionável e sem comparação, tudo isso possa ter sido esquecido? É nos forçoso admitir que a lembrança, concebida como uma reprodução consciente, esteja submetida a condições verdadeiramente especiais que até o momento presente escaparam a nossas pesquisas. É muito possível que o esquecimento infantil nos forneça o meio de compreender as amnésias que, em conformidade a nossos conhecimentos mais recentes, estão na base da formação de todos os sintomas neuróticos. Das lembranças que conservamos da infância, algumas nos parecem bastante compreensíveis, outras estranhas e inexplicáveis. Não é difícil corrigir alguns erros relativos a cada uma das categorias. Quando submetemos ao exame analítico as lembranças conservadas por um homem, constata-se facilmente que não existe garantia alguma quanto à exatidão. Algumas estão incontestavelmente deformadas, incompletas ou sofreram deslocamento no tempo e no espaço. A afirmação de pessoas examinadas segundo as quais sua primeira lembrança remonta, por exemplo, ao seu segundo ano de vida, evidentemente não merece confiança. Rapidamente descobrimos motivos que determinaram a deformação e o deslocamento dos fatos que constituem o objeto das lembranças, e esses motivos mostram ao mesmo tempo que não se trata de simples erros por parte de uma memória infiel. No decorrer da vida posterior do indivíduo, força potentes influenciaram e moldaram a faculdade de evocar as lembranças infantis, e são provavelmente essas mesmas força que, em geral, fazem com que seja tão difícil a compreensão dos anos de nossas infâncias. As lembranças dos adultos remetem, como sabemos, a materiais psíquicos diversificados. Alguns se lembram de imagens visuais, suas lembranças têm um caráter visual. Outros, mal são capazes de reproduzir os contornos mais elementares daquilo que viram. Segundo a proposição de Charcot, a esses sujeitos denominamos “auditivos” e “motores”, que são opostos aos “visuais”. Nos sonhos, todas essas diferenças desaparecem, pois sonhamos todos, preferencialmente, com imagens visuais. Para as recordações da infância observamos, por assim dizer, o mesmo tipo de regressão que acontece com os sonhos. Essas recordações posteriormente irão prescindir de qualquer elemento visual. A lembrança visual conserva assim o tipo infantil de lembrança. No meu caso, as primeiras lembranças infantis são as únicas que conservam seu caráter visual. São em realidade cenas plasticamente elaboradas que só se comparam a representações teatrais. Nessas cenas, verdadeiras ou falsas, datadas da infância, vemos com regularidade aparecer nossa própria persona infantil, com seus contornos e suas vestimentas. Essa circunstância deve forçosamente nos surpreender, pois os adultos “visuais” não costumam ver a imagem de sua pessoa em suas recordações de acontecimentos posteriores. Além disso, vai contra toda nossa experiência aceita que a atenção da criança esteja em si mesma, em vez de se dirigir exclusivamente às impressões de fora. Vai igualmente contra todas as minhas experiências admitir que, nos acontecimentos em que ela é a autora ou testemunha, a atenção da criança se dirija a si mesma em lugar de se concentrar nas impressões vindas de fora. Isso tudo nos obriga a admitir que tudo isso que encontramos nas assim chamadas recordações da primeira infância não são apenas vestígios dos acontecimentos reais. Mas elaboração posterior desses vestígios que foi forçada a efetuar-se sob a influência de diversas forças psíquicas que passaram a intervir a seguir. É desse modo que nossas “recordações infantis” adquirem, em geral, a significação de “lembranças encobridoras” adquirindo semelhança digna de nota com as lembranças da infância dos povos, preservadas nas lendas e nos mitos. Todos os que tiveram oportunidade de praticar a psicanálise com certo número de pessoas com certeza adquiriram grande número de exemplos de “lembranças encobridoras” de todos os tipos. Mas a comunicação desses exemplos se torna extraordinariamente difícil, pela própria natureza das relações que, como já demonstramos. Existem entre as lembranças infantis e a vida posterior, para descobrir numa lembrança infantil uma  “lembrança encobridora”. Seria frequentemente necessário fazer com que se desenrolasse, diante dos olhos do experimentador, toda a vida pregressa da pessoa em análise. É muito raro sermos capazes de expor uma lembrança infantil isolada e destacá-la do conjunto. Eis aqui um exemplo muito interessante. Um jovem de 24 anos conserva a seguinte imagem de seu quinto ano de vida. Ele está sentado no jardim de uma casa de campo, numa pequena cadeira ao lado de sua tia, que se empenha em ensinar-lhe o alfabeto. A diferença entre o “m” e o “n” está lhe parecendo muito difícil, e ele pede à sua tia que lhe diga como distinguir um do outro. A tia chama sua atenção para o fato de a letra “m” ter toda uma parte que o “n” não tem, toda uma perna a mais. Nunca houve oportunidade para por a prova a autenticidade dessa lembrança infantil. Sua importância, contudo, só veio à tona mais tarde, quando ela se mostrou adequada como representação simbólica de outra curiosidade da criança. Pois, assim como outrora ele quisera saber a diferença entre um “m” e um “n”, mais tarde ele quis muito saber qual era a diferença entre um menino e uma menina. E, decerto, ele estaria complemente de acordo se fosse essa mesma tia a lhe prestar os esclarecimentos necessários. Assim, foi quando ele ficou sabendo que se tratava de uma diferença muito semelhante a primeira, ou seja, que o menino também tem uma coisa inteira a mais que a menina. Sendo esse conhecimento que fez com despertasse nele a recordação da lição sobre o alfabeto. Eis aqui outro exemplo que se relaciona a segunda infância. Trata-se de um homem de 40 anos, que sofreu várias decepções em sua vida amorosa. É o mais velho entre nove irmão. Já tinha quinze anos quando nasceu a mais jovem de suas irmãs, mas afirma jamais haver percebido que sua mãe estivesse grávida. Notando-me incrédulo, apelou a suas lembranças e acabou por se lembrar que com a idade de onze ou doze anos, ele um dia viu sua mãe desenlaçar apressadamente sua saia diante de um espelho. Sem ser solicitado, dessa vez, ele completa sua lembrança dizendo que naquele dia sua mãe acabava de chegar e que se sentia tomada por inesperadas dores. Ora, o desenlace (aufbinden) da saia nesse caso era apenas uma lembrança encobridora para dar à luz (entbindung). Tratava-se ali de um tipo de “ponte verbal”, cujo emprego encontraremos em vários outros casos. Com um único exemplo gostaria de mostrar ainda o sentido que uma lembrança infantil, que inicialmente parecia não fazer sentido algum, quando analiticamente elaborada, pode adquirir. Quando, aos meus 43 anos, comecei a me interessar pelo que restava de memória da minha própria infância, veio-me à mente uma cena que há muito tempo, desde sempre, parecia, acudia à minha consciência e que, seguindo boas referências temporais. Deve ter acontecido antes de eu ter completado meu terceiro ano de vida. Eu me vi diante de um baú, chorando e gritando, cuja tampa meu meio-irmão, vinte anos mais velho que eu, conservava aberta, quando subitamente entrou no quarto minha mãe, linda e esbelta, como se estivesse chegando da rua. Com essas palavras estou reproduzindo a cena que se desenrolou plasticamente diante de meus olhos, mas cujo significado eu ignorava em absoluto. Meu irmão queria abrir ou fechar o baú, na primeira representação da cena, tratava-se de “Um armário”? Por que eu havia chorado por causa disso? Que relação havia entre aquilo tudo e a chegada de minha mãe? Havia muitas questões às quais não sabia como responder. Tentei esclarecer a cena imaginando que deveria tratar-se de algum tipo de provocação por parte do meu meio-irmão, e que tinha sido interrompida pela chegada de mamãe. Tais mal-entendido não são raros na memória guardada de cenas infantis. A pessoa se lembra de uma situação, mas não sabe em torno de que ela gira, em qual elemento deve colocar o acento psíquico. O esforço analítico conduziu-me a uma apreensão totalmente inesperada do quadro. Tendo sentido falta de minha mãe, suspeitei que ela pudesse estar trancada nesse baú, ou armário, por isso exigi que meu irmão o abrisse. Quando ele fez minha vontade e eu constatei que minha mãe não se encontrava lá, comecei a berrar. Assim foi o incidente, tal como o retive na memória, ele também se seguiu da imediata aparição de minha mãe e do apaziguamento de minha inquietude e de minha tristeza. Mas quando foi que a criança concebeu a ideia de ir procurar sua mãe no baú? Os sonhos que datam dessa mesma época evocam vagamente em minha memória a imagem de uma baba de quem eu havia guardado outras lembranças. Por exemplo, que ela usava de astúcia para me convencer a entregar-lhe cada moeda que eu recebesse de presente. Para que ela “tomasse conta”, detalhe que, por sua vez, poderia servir apenas como lembrança encobridora a respeito de fatos que se seguiram depois. Assim eu me decidi, a fim de facilitar meu trabalho de interpretação, indagar minha velha mãe acerca dessa empregada. Ela me contou minhas coisas, dentre outras, que essa mulher ardilosa e desonesta, cometera, nos períodos em que minha mãe estivera presa ao leito em virtude e seus partos, numerosos furtos na casa. Tendo inclusive sido condenada à prisão no tribunal quando meu meio-irmão apresentou queixa contra ela. Como num passe de mágica, essa informação me fez compreender a cena que descrevi acima. Eu não ficara indiferente ao súbito desaparecimento dessa empregada. Cheguei mesmo a perguntar a meu irmão o que tinha sido feito dela, pois eu certamente notara que ele havia desempenhado algum papel em seu desaparecimento. E meu irmão me respondeu com evasivas, e, segundo seu costume, jogando com as palavras, dizendo que ela estava “encaixotada” (eingekastelt). Interpretei essa resposta de modo infantil, mas parei de questioná-lo, pois não tinha mais nada a perguntar. Quando minha mãe se ausentou algum tempo depois, fiquei cheio de suspeitas, na certeza de que meu irmão havia feito com ela a mesma coisa que fizera com a empregada. Por isso exigi dele que abrisse o baú. Agora compreendo por que, na tradução da cena visual, a esbelteza de minha mãe se mostra acentuada. Ela me apareceu como chegando de uma verdadeira restauração. Eu sou dois anos e meio mais velho que minha irmã justamente nascida nessa ocasião. Ao completar três, meu meio-irmão deixou a casa paterna. Livro Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana. Abraço.

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