quinta-feira, 23 de novembro de 2023

NO MUNDO, MAS NÃO DO MUNDO

 

Teosofia. Texto de Mary Anderson e tradução de Izar G. Tauceda. Muitas vezes ouvimos a expressão: “NO MUNDO, MAS NÃO DO MUNDO” (no evangelho de João 17,15-16 é dito: ”Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu do mundo não sou”), e perguntamos: Qual é a diferença? A diferença está somente em duas pequenas palavras, duas preposições: “no” e “do” que fazem muita diferença! Vejamos essas preposições. “Em” quer dizer em algum lugar. Alguma coisa ou alguém pode estar temporária ou permanentemente em algum lugar. Em certo sentido é um termo neutro, sem cor, sem paixão. Mas “do” indica posse, pertencer a algo. Não é neutro, e pode até ter uma conotação de paixão. Até mesmo uma criança fala de “meus brinquedos”, “meu ursinho”, “minha boneca” e os defende como sua posse. Quando dizemos “no mundo”. Quando dizemos “no mundo” e “do mundo”, como consideramos “o mundo”? A preposição “no” ou “do” muda o significado de “mundo”. No “mundo” significa estar localizado no mundo físico, o mundo material. Isso não é aviltante (desonroso). Não esqueçamos que a matéria é tão divina como o espírito e não deve ser diminuída, como é ou era por várias tradições ascéticas que dizem que “o mundo da carne e do demônio” deve ser evitado e condenado. Por outro lado, “do mundo” significa a identificação com certos valores chamados de “mundanos”, que não são materiais, mas materialistas. Da mesma maneira, ao falarmos de “sabedoria mundana” que não é sabedoria no sentido mais profundo, mas uma habilidade para descobrir a melhor maneira, muitas vezes uma maneira impiedosa, de obter o que se quer ou conseguir seus próprios fins, sejam eles materiais ou imaginados “espirituais”. Quem aspira à espiritualidade pode pensar que o primeiro passo é afastar-se do mundo e de suas tentações, retirar-se, tornar-se um ermitão (asceta) e viver fora do mundo. Ainda assim essa pessoa ainda pode ser “do mundo”, assaltada por tentações na solidão, mais ainda do que quando estava no mundo, porque ser “do mundo” é um estado mental e não apenas um lugar. Às vezes é sábio abandonar coisas e circunstâncias externas, como quando alguém está controlando o alcoolismo e deve evitar frequentar bares. Mas, no fim, não podemos fugir de nós mesmos. Certamente houve e ainda existem eremitas que foram ou são santos genuínos. Contudo, não creio que evitar certos ambientes e buscar a solidão possa ser condenado. Podemos estar em solidão, ainda que intimamente junto a outros, solidários e não sozinhos. É um assunto de temperamento, de nosso dharma pessoal, pelo menos nesta vida, se ficamos no mundo ou escolhemos a solidão. Monges, monjas e ermitãos podem meditar em solidão, podem rogar pelos outros e podem gerar impulsos de cura e de auxílio, formas pensamento, que contribuem para mudar o mundo. Lembro-me de um poema de uma teósofa americana, no qual ela descreve uma jovem que entra no mundo e pratica ativamente o bem. Ela tem uma amiga que é monja e também faz o bem a sua maneira: “Seus pensamentos, atravessando as montanhas, voavam para sua amiga, ela tremia sob o hábito áspero enquanto meditava perto da fonte do convento. Somente eu sabia por que, protegida por Deus, ela fazia isso. Seu amante cuspira nela e sua família e amigos disseram: Tem medo da vida! É insensata como um morcego. Seria melhor se estivesse morta! Ela sabia o que devia fazer nos difíceis dias vindouros. Num mundo dedicado às ações, escravizado pelas máquinas, os supremos dirigentes da coisa, somente uns poucos conhecem a terrível necessidade de suprimento espiritual. Ela fará insistentes petições ao Trono enquanto durar sua vida. Irei acima e abaixo no mundo, e onde eu for lançarei meu amor com os ventos. Não saberemos onde cai a semente nem em quais sulcos vamos semear. Nossa única esperança é acender lanternas semelhantes onde e, quando podermos, e confiar que talvez, uma se torne uma estrela que brilhe na selva para iluminar o homem que luta para voltar ao lugar de onde veio e procura o mapa do Paraíso que perdeu em sua jornada. Uns poucos devem orar e planejar para as enormes multidões de abandonados. Uns poucos, como lâmpadas, devem ser úteis na escura clareira da floresta”. Evitar o mundo não deve ser uma forma de fuga. Pois de qualquer maneira, não podemos fugir de nós mesmos. No outro lado da balança, do ermitão que sai do mundo para não ser do mundo, ou que genuinamente não é do mundo, temos o Avatar o Bodhisattva ou o Messias que não é mais do mundo, que internamente é livre, mas que está no mundo, que limita sua liberdade apenas exteriormente para ajudar e servir os outros e ser um farol para eles. Até mesmo grandes instrutores espirituais, sem necessariamente serem Avatares, Bodhisattvas ou Messias podem muitas vezes dar conselhos em assuntos práticos de todos os dias. Ramakrishna, Ramana Mahasrshi e Krishnamurti muitas vezes o fizeram. Conscientes ou inconscientemente, não ficaram cegos por considerações pessoais como muitos de nós. Vem claramente, e seus corpos são cheios de luz. Não devemos ter medo de permanecer no mundo. A verdadeira sabedoria capacita-nos a agir sabiamente, de praticar karma-yoga como habilidade em ação. E, vice-versa, levar uma boa vida abre caminho para a sabedoria. Já foi dito: “Viva a vida e atinja a sabedoria”. Aldous Huxley (1894-1963) coloca desta maneira: “A natureza da Realidade Uma é tal que não pode ser direta e imediatamente apreendida, exceto por aqueles que escolheram preencher certas condições, tornando-se amorosos, com coração e espírito puros”. Fisicamente não agimos sozinhos. Todas as nossas ações físicas são acompanhadas de pensamentos, sentimentos e motivos, que também são ações. O verdadeiro artista trabalha na matéria física criando grande beleza, edifícios, estátuas, pinturas, movimentos de dança, poemas, sinfonias entre outros. Trabalha no mundo da matéria, vive no mundo, contudo seu maior trabalho é conseguido no esquecimento do eu. E assim esse artista não é “do” mundo. Qualquer trabalho físico pode ser arte, até uma arte que não seja deste mundo. O trabalho considerado penoso pode ser criativo. O Trabalhador que cava buracos na estrada, somente para enchê-los novamente, o trabalhador industrial na linha de montagem, a esposa ou a empregada que limpam, tiram o pó, levam a casa – todos eles, nesse sentido, podem ser artistas. Muito depende de nossa atitude. O poeta George Herbert (1593-1633) escreveu: “A empregada, em sua condição, torna o penoso divino? Quem varre a sala, seguindo tuas leis, faz isto e a ação boas. Esta é a famosa pedra que tudo transforma em outro”. É por isso que os monges zen usufruem do trabalho físico. Diz o ditado de algumas ordens de monges cristãos; “Laborare est orare (trabalhar é orar)”. Em Aos Pés do Mestre temos; “Pense como faria um trabalho se soubesse que o Mestre viesse vê-lo”. Podemos fazer coisas por amor a Deus ou por amor a alguém que amamos ou simplesmente por amor. O que importa é esquecermo-nos de nós. Podemos, então, saber realmente o que estamos fazendo. Ai não somos “do mundo”, mas certamente estamos “no mundo”. Somos o mundo. Quem pratica o bem ativamente no mundo pode ser considerado um guerreiro ou um paladino como foi Annie Besant (1847-1933). O cavaleiro europeu na Idade Média tinha um código de honra ou de cavalaria, provavelmente semelhante ao dos Kshatriyas: praticar o bem, lutar contra os opressores, os injustos e maus, defender os fracos, especialmente as mulheres que eram então, e, muitas vezes, são agora, vítimas de injustiça e crueldade. Um sentido mais profundo pode ser acrescido, como no caso de Arjuna no Bhagavad Gita. Os inimigos, os opressores cruéis, derrotados pelo cavaleiro, podem-se referir não apenas a inimigos extremos, mas aos inimigos internos, isto é, à própria fraqueza, aos traços negativos de caráter como ódio, covardia, injustiça egoísmo. O espiritual não é o mundano. Não podemos prosseguir nos reinos do espírito de acordo com meios mundanos. Como disse Jiddu Krishnamurti (1895-1986): “Se quiser atingir a outra margem, não deve sair desta margem, mas começar da outra margem”. Como pode ser isso, se tudo que conhecemos é esta margem? Talvez esquecendo esta margem, esquecendo o eu, não esperar nada, estar aberto a tudo que chegar. Se vamos atravessar a corrente, não ser mais do mundo, não devemos deixar para trás, bem no fundo do coração, tudo o que sabemos, tudo o que possuímos. Como disse Cristo a um homem rico que buscava o Reino dos Céus e que já havia preenchido as qualificações de uma vida correta, dizendo que sempre havia respeitado os mandamentos. Entretanto isso não foi suficiente, disseram-lhe que vendesse tudo o que tinha e desse aos pobres, mas ele não podia fazer isso “por que era muito rico” Mateus 19,20-22. Talvez rico não apenas em bens materiais, mas talvez em conhecimento, popularidade e autoestima. Mencionados como exemplos de quem verdadeiramente está no mundo, mas não do mundo, citamos o Avatar, o Bodhisattva, o Messias. São seres que evoluíram além do estágio humano, mas que por compaixão por aqueles que ainda estão no estágio humano ou sub-humano ficam em contato com o mundo e até retomam a encarnação no mundo. A tradição hinduísta fala de Avatares, e cito Annie Besant: “(...) a mais sagrada das sagradas, essas manifestações de Deus no mundo nas quais ele é divino, vêm para auxiliar o mundo que criou, brilhando em sua natureza essencial, a forma e um fino filme que apenas esconde a divindade de nossos olhos”. Contam que houve nove Avatares, os primeiros quatro com a aparência de animais. Os mais conhecidos Avatares humanos foram o rei Rama e Sri Krishna, embora o Budha também seja considerado um Avatar, o nono. No Bhagavad Gita, Sri Krishna mostra qual é a função de um Avatar: “Sempre que houve um declínio da retidão (...) e houver exaltação da corrupção, ai eu apareço, de era a era, para proteger o bem, para destruir os malfeitores e para estabelecer firmemente a retidão. Rama foi um rei perfeito, exemplo do governante ideal, sendo puro, justo e forte. O Senhor Krishna foi e é reverenciado como a adorável e travessa criança de uma mãe adotiva, o matador dos demônios que aterrorizavam as pessoas, o amante irresistível das almas das Gopis, o encantador tocador de flauta, o guia, o filósofo e amigo do guerreiro Arjuna a quem ele revela ser a encarnação do Senhor do Universo. Como indicam as palavras do Sri Krishna, os Avatares encarnam quando há necessidade de reforma. Dizem que Sri Krishna deu uma lição para os Kshaltriyas, assim como o Senhor Budha deu uma lição aos Brahmanes, que davam mais importância à forma, à letra da Lei do que a seu espírito, esquecendo a necessidade de compaixão a todos os seres. É dito que tanto Budha como Cristo não vieram para trazer uma nova religião, mas reformar as que existiam, e que novas religiões surgiram em ambas com o correr do tempo. No budismo do norte, o Bodhisattva é reverenciado como um tipo de Avatar, alguém que chegou ao portal do Nirvana, mas recusou ter essa felicidade até que todas as criaturas vivas também estivessem prontas para entrar ai. Os Bodhissatvas permanecem no mundo embora não sejam do mundo. O voto de Kwan yin diz: “Nunca procurarei ou receberei salvação individual, nunca entrarei sozinho na paz final, mas sempre e em toda parte viverei e lutarei pela redenção de todas as criaturas em todo mundo”. Estar no mundo não significa, no caso de um Bodhisattva, que ele seja nosso vizinho de porta ou que possamos encontra-lo na rua. Na verdade, um Bodhisattva pode estar entre nós e pode nos ajudar, mas não será reconhecido a não ser por aqueles que tem “olhos para ver”. Entretanto seu auxílio sempre está presente. Cito Madame Helena P. Blavatsky (1831-1891) em A Voz do Silêncio. “Condenado por ti mesmo a viver por futuros kalpas sem o agradecimento e percepção dos homens; entalado com uma pedra entre outras inúmeras pedras que formam a Muralha guardiã, este é o teu futuro, se passares o sétimo portal (...) essa muralha guardiã construída pelas mãos de muitos Mestres de Compaixão, erguida por seus tormentos, cimentada com o seu sangue, ela defende a humanidade desde que o homem é homem, protegendo-a de ulteriores e muito maiores misérias e aflições”. No judaísmo e no cristianismo temos o conceito do Messias. Muitos judeus ortodoxos aguardam a vinda do Messias. Muitos cristãos acreditam que Jesus Cristo foi o Messias em sua encarnação na Palestina, no começo da era cristã, e algumas seitas cristãs aguardam todos os dias seu retorno. Conheci uma moça que pertencia a essa seita, e, aparentemente do apartamento de sua família, a qualquer hora, ouvia-se uma voz entoando “Jesus está chegando”. Em anos recentes, foram expostas descobertas interessantes a respeito do cristianismo, revelando que a visão tradicional é certo tipo de “cobertura”. Na tradição judia, às vezes são mencionados dois Messias: um Messias nobre, descendente do rei Davi, e um Messias sacerdotal, descendente de Arão, o Primeiro Sacerdote. Algumas vezes sugerem que os dois papeis sejam exercidos pela mesma pessoa. Eles são vistos como dois pilares unidos por um arco, significando Shalom, paz, talvez, a paz de Deus além do entendimento. Esses dois pilares refletiram-se e foram deformados na última situação na Europa, onde o imperador reinava sobre o chamado “Sagrado Império Romano”, representando o poder secular, e o Papa representava o poder espiritual. E idealmente esse conceito corresponde ao ideal hinduísta e budista do Chakravartin e do Budha. Cito de Filosofia da Índia, de Heirich Zimmer (1890-1943): Existe um antigo ideal mítico – um sonho idílico compensatório, nascido do desejo de estabilidade e paz que representava um império totalmente universal de duradoura tranquilidade com um monarca justo e virtuoso, o Chakraavartin (...) que conseguiu pôr fim à perpetua luta de estados contendores”. De acordo com a concepção budista, o monarca universal é a contraparte secular do Budha, o Iluminado, que dizem, “colocou em movimento a roda da doutrina sagrada (...) sua roda, o dharma budista, não é apenas para as castas privilegiadas, (...) mas para todo o Universo, a doutrina da libertação, com o propósito de trazer paz a todos os seres vivos sem exceção”. O monarca do mundo hinduísta, pacificando a humanidade sob sua única autoridade todos os reinos próximos sob – “o grande rei (...) rei dos reis, que foi proclamado em gradação igual aos Budhas redentores do mundo, que, através de suas doutrinas, colocaram em movimento a roda”. O Sol, a luz e a vida do mundo brilham sobre todos da mesma maneira sem distinção, e assim também brilha o verdadeiro Chakravartin. Por quanto tempo teremos que esperar por este monarca, por este Budha? Talvez até a próxima Idade do Ouro, que, certamente, não está logo ali na esquina. E, enquanto isso, estaremos “no mundo”, mas não seremos “do mundo”. Assim o mundo estará pronto no devido tempo. “Libertar-se do sentimento de posse, quer a respeito das coisas, de pessoas, de pais, de raça, de religião e até de nossas virtudes imaginárias, exige uma compreensão madura. Essa libertação torna a vida simples, sem superficialidades e é eficiente na maneira de manifestar a real beleza e natureza do Espírito em nós”. N. Sri Ram (1889-1973). Loja Teosófica Jehoshua – Porto Alegre – RS – Brasil. Abraço. Davi



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