Budismo.
Livro A Vida de Compaixão. Tenzin Gyatso – O Décimo Quarto Dalai-Lama. Capítulo
IV. O PLURALISMO RELIGIOSO. A não ser que conheçamos o valor de outras
tradições religiosas, é difícil desenvolver respeito por elas. O respeito mútuo
é a base da verdadeira harmonia. Devemos ansiar por um espírito de harmonia,
não por motivos políticos ou econômicos, mas simplesmente por percebermos o
valor de outras tradições. Sempre me esforço para promover a harmonia
religiosa. Usar a fé religiosa para promover valores humanos básicos é algo
muito positivo. Todas as principais religiões do mundo pregam o amor, a
compaixão e o perdão. Cada tradição religiosa promove esses valores de maneira
diferente, é claro, mas, já que todas têm mais ou menos os mesmos objetivo –
ter uma vida mais feliz. Tornar-se uma pessoa mais compassiva e criar um mundo
mais compassivo. Seus métodos diferentes não representam um problema
insuportável. A conquista fundamental do amor, da compaixão e do perdão é o que
importa. Todas as principais religiões do mundo têm o mesmo potencial para
ajudar a humanidade. Algumas pessoas têm uma disposição que se adapta à fé
religiosa, e por causa da variedade de disposições entre os seres humanos é
lógico que precisamos de religiões diferentes. A variedade é benéfica. Gostaria
de abordar o tema da harmonia religiosa definindo dois níveis de
espiritualidade. O Primeiro Nível de Espiritualidade: Fé e Tolerância. Para
todos os seres humanos em todos os lugares, o primeiro nível de espiritualidade
é a fé. Isso é verdade para cada uma das grandes religiões mundiais. Acredito
que cada uma dessas religiões tenha seu próprio papel importante. Mas para que
possam dar uma contribuição significativa em benefícios da humanidade, dois
fatores importantes devem ser considerados. O primeiro desses fatores é que os
praticantes das diversas religiões – ou seja, nós mesmos – devemos praticar com
sinceridade. Os ensinamentos religiosos devem ser parte integrante de nossas
vidas. Não devem ser separados de nossas vidas. Às vezes entramos em uma igreja
ou templo e fazemos uma prece ou geramos algum tipo de sentimento espiritual, e
depois, quando saímos da igreja ou templo, nada resta desse sentimento
religioso. Essa não é a maneira correta de praticar. A mensagem religiosa deve
estar conosco onde quer que estejamos. Os ensinamentos de nossa religião devem
estar presentes em nossas vidas para que. Quando realmente precisarmos de
benção ou de força interior, esses ensinamentos e os seus efeitos estejam à
nossa disposição. Eles estarão ali quando tivermos dificuldades porque estão
constantemente presentes. A religião só poderá ser realmente eficaz quando
integrar-se em nossas vidas. Precisamos conhecer esses ensinamentos não apenas
em um nível intelectual, mas também por meio de nossa experiência mais
profunda. Algumas vezes compreendemos diversas ideias religiosas em um nível
superficial demais ou intelectual. Sem um sentimento mais profundo, a eficácia
da religião torna-se limitada. Portanto, devemos praticar com sinceridade e
integrar nossa religião a nossas vidas. O segundo fator trata mais da interação
entre as diversas religiões mundiais. Hoje em dia, devido à mudança tecnológica
cada vez maior e à natureza da economia mundial, somos mais dependentes do que
nunca uns dos outros. Países diferentes, continentes diferentes desenvolveram
uma relação mais estreita uns com os outros. Na realidade, a sobrevivência de
uma região do mundo depende da sobrevivência das demais. Portanto, o mundo
tornou-se muito mais próximo, muito mais interdependente. O resultado disso é
que há muito mais interação humana em uma escala maior. Devido a essas
circunstâncias, a aceitação do pluralismo entre as religiões mundiais é muito
importante. Antigamente, quando as comunidades viviam umas separadas das outras
e as religiões surgiam em relativo isolamento. A ideia de que havia apenas uma
religião possível era muito útil. Mas agora a situação mudou-se, e as
circunstâncias são inteiramente diferentes. Portanto, agora é crucial aceitar o
fato de que religiões diferentes existem e de que, para desenvolver um respeito
mútuo genuíno entre elas. O contato estreito entre as diversas religiões é
essencial. Esse é o segundo fator que permitirá às religiões do mundo
beneficiar a humanidade de forma significativa. Quando eu morava no Tibet –
China, não tinha contato com pessoas de outras religiões que não o budismo. E
assim minha atitude em relação às outras religiões não era muito positiva.
Entretanto, quando tive a oportunidade de conhecer pessoas de fé diferentes e
de aprender com os contatos pessoais e com a experiência, minha atitude em
relação às outras religiões mudou. Percebi como as outras religiões são úteis
para a humanidade e qual o potencial de cada uma delas para contribuir para um
mundo melhor. Nos últimos séculos, as diversas religiões têm dado contribuições
maravilhosas para o progresso dos seres humanos, e mesmo hoje há grandes
números de seguidores que se beneficiam da cristandade, do islamismo, do
judaísmo, do budismo, do hinduísmo e assim por diante. Para dar um exemplo do
valor de encontrar pessoas de fé diferente: meus encontros com o falecido
Thomas Merton (1915-1968). Mostraram-me a pessoa bonita e maravilhosa que ele
era e me proporcionaram uma compreensão em primeira não do potencial espiritual
da fé cristã. Em outra ocasião, conheci um monge católico em Montserrat, um dos
famosos monastérios espanhóis. Fiquei sabendo que esse monge vivera por muitos
anos como eremita em uma colina logo atrás do monastério. Quando visitei o
monastério, ele desceu de sua ermida especialmente para me encontrar. Acontece
que seu inglês era ainda pior do que o meu, e isso me deu mais coragem para
falar com ele! Ficamos frente a frente e perguntei: “Durante esses anos, o que
você ficou fazendo naquela colina”? Ele olhou para mim e respondeu: “Meditando
sobre compaixão, sobre amor”. Enquanto ele dizia essas poucas palavras, entendi
a mensagem através de seus olhos. Realmente desenvolvi uma admiração genuína por
essa pessoa e por outros como ele. Essas experiências ajudaram a confirmar em
minha mente que todas as religiões do mundo têm o potencial para produzir
pessoas boas. Apesar de suas diferenças de filosofia e de doutrina. Cada
tradição religiosa tem sua própria mensagem maravilhosa a transmitir. O que
quero enfatizar aqui é que, para as pessoas que seguem ensinamentos nos quais a
fé básica é em um criador – em Deus – essa abordagem é muito eficaz para elas.
Os cristãos, por exemplo, não acreditam em renascimento e assim não aceitam a
crença em vidas passadas ou futuras. Eles só aceitam esta vida. No entanto,
acreditam que esta mesma vida seja criada por Deus. E essa ideia causa neles um
sentimento de intimidade com Deus e uma dependência em relação a Deus. A
consequência disso é o ensinamento de que devemos amar nossos semelhantes. O
raciocínio é que, se amamos Deus, devemos amar nossos semelhantes por eles,
assim como nós, foram criados por Deus. Seu futuro, assim como o nosso, depende
do Criador. Portanto, sua situação é igual à nossa. Consequentemente, é
questionável a fé das pessoas que dizem aos outros para amar a Deus. Mas elas
próprias não demonstram amor genuíno para com os seres humanos, seus
semelhantes. A pessoa que acredita em Deus e no amor por Deus deve demonstrar a
sinceridade desse amor dirigindo-se a outros seres humanos, seus semelhantes.
Essa abordagem é muito poderosa, não? Assim, se examinarmos cada religião sob
diversos ângulos da mesma maneira. Não simplesmente segundo nossa própria posição
filosófica, mas segundo vários pontos de vista. Não resta dúvida de que todas
as principais religiões têm o potencial para melhorar os seres humanos. Isso é
óbvio. Por meio do contato estreito com pessoas de outra fé é possível
desenvolver uma atitude tolerante e um respeito mútuo com relação a outras
religiões. O contato estreito com diferentes religiões me ajuda a aprender
novas ideias, novas práticas e novos métodos ou técnicas que posso incorporar a
minha própria prática. Do modo, alguns dos meus irmãos e irmãs cristãos
adotaram determinados métodos budistas. Por exemplo, a prática de concentração
da mente em um só ponto. Assim como técnicas para ajudar a melhorar a
tolerância, a compaixão e o amor. Existem grandes benefícios quando os
praticantes de diversas religiões se juntam para esse tipo de intercâmbio. Além
do desenvolvimento da harmonia entre eles, há outros benefícios também.
Políticos e líderes nacionais falam com frequência de coexistência e de união.
Por que nós, religiosos, não falamos isso também? Penso que chegou a hora. Por
exemplo, em Assis, Itália, em 1987, líderes e representantes de várias
religiões mundiais se encontraram para orar juntos. Embora eu não tenha certeza
de que oração seja exatamente a palavra adequada para descrever com exatidão a
prática de todas essas religiões. De todo modo, o importante é que os
representantes das várias religiões se reúnam em um lugar e, segundo suas
próprias crenças, orem. Isso já está acontecendo e é, penso eu, um
desenvolvimento muito positivo. Mesmo assim, ainda precisamos nos esforçar mais
para desenvolver harmonia e proximidade entre as religiões do mundo. Já que sem
tal esforço continuaremos a ter os diversos problemas que dividem a humanidade.
Se a religião fosse o único remédio para reduzir o conflito humano, mas esse
próprio remédio se tornasse uma outra fonte de conflito, isso seria desastroso.
Hoje, como no passado, conflitos ocorrem em nome da religião por causa de
diferenças religiosas, e considero isso muito triste. No entanto, se pensarmos
de forma aberta e profunda, perceberemos que a situação de ontem era
inteiramente diferente da atual. Não somos mais isolados, mas, pelo contrário,
interdependentes. Portanto, hoje é muito importante perceber que uma relação
estreita entre as religiões é essencial, para que diferentes grupos religiosos
possam trabalhar e fazer um esforço conjunto para o benefício da humanidade.
Assim, a sinceridade e a fé nas práticas religiosas, por um lado, e a
tolerância e cooperação religiosa por outro. Formam esse primeiro nível do
valor da prática espiritual para a humanidade. O Segundo Nível de
Espiritualidade: A Compaixão como Religião Universal. O segundo nível de
espiritualidade é aquele que transcende as diferenças religiosas, o nível da
compaixão e da afeição humanas. O segundo nível é mais importante do que o
primeiro porque, por mais maravilhosas que seja uma religião. Ela ainda só é
aceita por um número muito limitado de pessoas. A maioria dos mais de oito
bilhões de seres humanos em nosso planeta, provavelmente não pratica nenhuma
religião. De acordo com sua origem familiar, eles podem se identificar como
pertencentes a um ou outro grupo religioso. “Sou hindu, sou budista, sou
cristão, sou muçulmano. Mas, lá no fundo, a maioria desses indivíduos não é
necessariamente praticante de nenhuma fé religiosa. Não há problema nisso.
Abraçar ou não uma religião é o direito de qualquer pessoa como indivíduo.
Nenhum dos grandes mestres antigos como Buda, Mahavira, Jesus Cristo, Maomé,
Abrahão conseguiu fazer toda a população humana se interessar pela
espiritualidade. A verdade é que ninguém é capaz de fazer isso. Não importa que
esses não-crentes sejam chamados de ateus. De fato, segundo alguns estudiosos
ocidentais, os budistas também são ateus, já que não aceitam um criador. Assim,
algumas vezes acrescento mais uma palavra para descrever esses não-crentes. A
palavra é extremos. Chamo os de não-crentes extremos. Eles não só não são
crentes, como também são extremos em sua visão de que a espiritualidade sob
qualquer forma não tem valor. Entretanto, devemos lembrar que essas pessoas também
fazem parte da humanidade e que também, como todos os seres humanos, desejam
ser felizes – ter uma vida feliz e pacífica. Esse é o ponto importante.
Acredito que não haja problema em permanecer não-crente, mas a partir do
momento em que você faz parte da humanidade. A partir do momento em que é um
ser humano, você precisa de afeição humana, de compaixão humana. Esse é o ensinamento
essencial de todas as tradições religiosas. Sem compaixão humana, até mesmo as
crenças religiosas podem se tornar destrutivas. Assim, a prática essencial,
seja você uma pessoa religiosa ou não, é um bom coração. Considero a afeição e
a compaixão humanas a religião universal. Quer seja crente ou não-crente. Todo
mundo precisa de afeição e compaixão humanas, porque a compaixão nos dá força
interior, esperança e paz mental. Assim, a compaixão é indispensável para
todos. Como mencionei, alguns dos meus irmãos e irmãs cristãos, tanto monges
quanto leigos, me disseram estar usando técnicas e métodos budistas para
desenvolver sua compaixão e até mesmo sua fé cristã. Sempre digo a meus amigos
ocidentais que é melhor tentar manter sua própria tradição. Mudar de religião
não é fácil e às vezes causa confusão. Entretanto, os indivíduos que realmente
sentirem que a abordagem budista é mais eficaz e se adapta melhor a sua
disposição mental devem considerar a questão com cuidado. Uma vez que esteja
inteiramente convencido de que o budismo é certo para você, então está livre
para segui-lo. O importante é lembrar o seguinte: as vezes as pessoas
desenvolvem uma atitude crítica em relação a sua religião ou tradição anterior
de moda a justificar sua mudança de fé. Você deve evitar isso. Sua antiga
religião pode não ser mais eficaz para você, mas isso não significa que não
seja útil para a humanidade. Por respeito aos pontos de vista e aos direitos
das outras pessoas, assim como ao valor de suas tradições, você deve honrar sua
antiga religião. É muito importante. Livro A Vida de Compaixão. Abraço. Davi
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