Cristianismo. www.ecclesia.com.br. I. A VIRGINDADE PERPÉTUA DE MARIA. Tratado de São Jerônimo (347-420) com Helvídio.
Tradução José Fernandes Vidal e Carlos Martins Nabeto. Este tratado surgiu por
volta do ano 383 dC, quando Jerônimo e Helvídio se encontravam em Roma, no
tempo do papa Dâmaso. As únicas informações contemporâneas que se conservam de
Helvídio são estas, fornecidas por Jerônimo.
A questão que trouxe este tratado à luz foi: teria a Mãe de Nosso Senhor
permanecido virgem após o nascimento
de seu Filho? Helvídio afirmava que os Evangelhos mencionando os
"irmãos" e "irmãs" do Senhor provavam que Maria teria tido outros filhos,
baseando sua opinião nos escritos de Tertuliano e Vitorino. A conclusão deste
ponto de vista é que a virgindade se situa numa posição inferior ao casamento.
Jerônimo defende o outro lado, mantendo três proposições contra Helvídio:
·
José era o suposto marido de Maria,
mas não o era de fato;
·
Os "irmãos" do Senhor eram
seus primos (parentes), não irmãos de verdade; e
·
A virgindade é superior ao estado de
casado.
A primeira
proposição ocupa os capítulos 3 a 8. Baseia-se no registro de Mateus 1,18-25,
especialmente nas palavras: "antes que coabitassem" (cap. 4) e
"não a conheceu até que" (caps. 5-8).
A segunda, gira em
torno da expressão: "filho primogênito" (caps. 9-10), que Jerônimo
afirma ser aplicável não apenas ao primeiro de uma série de vários filhos, mas
também ao filho único. Quanto à menção dos irmãos e irmãs de Jesus, Jerônimo
garante serem filhos de outra Maria, esposa de Cléofas ou Clopas (caps. 11-16);
para fundamentar sua posição, cita diversos escritores da Igreja (cap. 17).
Na terceira e
última parte, para sustentar a preferência da virgindade sobre o casamento,
Jerônimo afirma que não apenas Maria mas também José mantiveram seu estado
virginal (cap. 19); diz, também, que embora o casamento possa ser um estado
santo, apresenta grandes obstáculos para a oração (cap. 20) e que o ensinamento
da Escritura declara que o estado de virgindade e continência estão mais de
acordo com o desejo de Deus do que o casamento (caps. 21-22).
Introdução
Há algum tempo,
recebi o pedido de alguns irmãos para responder a um panfleto escrito por um
tal Helvídio. Demorei para fazê-lo, não porque fosse tarefa difícil defender a
verdade e refutar um ignorante sem cultura, que dificilmente tomou contato com
os primeiros graus do saber, mas porque fiquei preocupado em oferecer uma
resposta digna, que desmoronasse os seus argumentos.
Havia ainda a
preocupação de que um discípulo confuso (o único sujeito do mundo que se
considera clérigo e leigo; único também, como se diz, que pensa que a eloquência
consiste na tagarelice, e que falar mal de alguém torna o testemunho de boa-fé)
poderia passar a blasfemar ainda mais, caso lhe fosse dada outra oportunidade
para discutir. Ele, então, como se estivesse sobre um pedestal, passaria a
espalhar suas opiniões em todos os lugares.
Também temia que,
quando caísse na realidade, passasse a atacar seus adversários de forma ainda
mais ofensiva.
Mas, mesmo que eu
achasse justos todos esses motivos para guardar silêncio, muito mais justamente
deixaram de me influenciar a partir do instante em que um escândalo foi
instaurado entre os irmãos, que passaram a acreditar nesse falatório. O machado
do Evangelho deve agora cortar pela raiz essa árvore estéril, e tanto ela
quanto suas folhagens sem frutos devem ser atiradas no fogo, de tal maneira que
Helvídio - que jamais aprendeu a falar - possa aprender, finalmente, a
controlar a sua língua.
Invoco o Espírito
Santo para que Ele possa se expressar através da minha boca e, assim, defenda a
virgindade da bem-aventurada Maria. Invoco o Senhor Jesus para que proteja o
santíssimo ventre no qual permaneceu por aproximadamente dez meses, sem
quaisquer suspeitas de colaboração de natureza sexual. Rogo também a Deus Pai
para que demonstre que a mãe de Seu Filho - que se tornou mãe antes de se casar
- permaneceu Virgem ainda após o nascimento de seu Filho.
Não desejamos
entrar no campo da eloqüência, nem usar de armadilhas lógicas ou dos
subterfúgios de Aristóteles. Usaremos as reais palavras da Escritura;
[Helvídio] será refutado pelas mesmas provas que empregou contra nós, para que
possa ver que lhe foi possível ler conforme está escrito, e, ainda assim, foi
incapaz de perceber a conclusão de uma fé sólida.
José era o suposto marido de Maria; não era marido
de fato
Sua primeira
declaração é: "Mateus diz: 'O nascimento de Jesus Cristo foi assim: quando
sua mãe Maria estava prometida a José, antes de coabitarem, encontrou-se
grávida pelo Espírito Santo. E José, seu marido, sendo um homem justo e não
desejando denunciá-la publicamente, pensou em repudiá-la em segredo. Mas
enquanto pensava essas coisas, um anjo do Senhor lhe apareceu em sonho e disse:
'José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa, pois o
que nela foi gerado provém do Espirito Santo'. Notem" - continua ele -
"que a palavra empregada é 'prometida' e não 'confiada', como vocês dizem;
é óbvio que a única razão para estar prometida é porque deveria se casar um
dia. E o Evangelista não iria dizer 'antes de coabitarem' se eles não viessem a
coabitar no futuro, já que ninguém usaria a frase 'antes de jantar' se certa
pessoa não fosse jantar. Também o anjo a chama 'tua esposa' e se refere a ela
como unida a José. A seguir, somos chamados a ouvir a declaração da Escritura:
'E José despertou do seu sono e fez como o anjo do Senhor lhe havia ordenado,
tomando-a para si como esposa; e não a conheceu até que deu à luz a seu
filho'".
Consideremos cada
um desses pontos, pois seguindo o caminho dessa impiedade mostraremos que ele
[Helvídio] está se contradizendo. Admite que [Maria] estava
"prometida" e que o próximo passo seria se tornar esposa daquele
homem a quem estava prometida. Novamente, ele a chama de "esposa" e
diz que a única razão para estar prometida seria pelo fato de casar-se um dia.
E, temendo que não o compreendêssemos suficientemente bem, ainda diz: "a
palavra usada é 'prometida' e não 'confiada', isto é, ela ainda não se tornara
esposa, nem mesmo havia sido unida pelo contrato de casamento".
Mas quando ele
continua: "o Evangelista jamais usaria tais palavras se eles não viessem a
se juntar futuramente, já que não se usa a frase 'antes de jantar' se certa
pessoa não for jantar", sinceramente não sei se devo lamentar ou rir.
Deveria acusá-lo de ignorância ou de imprudência? Como se isto, supondo que uma
pessoa dissesse: "Antes de jantar no porto, naveguei para a África",
significasse que tais palavras obrigatoriamente demonstrassem que essa pessoa
alguma vez já jantou no porto. Se eu preferisse dizer: "o apóstolo Paulo,
antes de ir para a Espanha, foi preso em Roma", ou (como também acho
provável) "Helvídio, antes de se arrepender, morreu"; acaso teria
Paulo obrigatoriamente estado na Espanha [após a prisão], ou Helvídio se
arrependeria após a morte, ainda que a Escritura diga: "No Sheol quem vos
dará graças?"
Não podemos
entender a preposição "antes" - ainda que muitas vezes signifique
ordem no tempo - como também ordem de pensamento? Portanto, não há necessidade
que nossos pensamentos se concretizem, se alguma causa suficiente vier a
evitá-los (sua concretização). Logo, quando o Evangelista diz "antes que
coabitassem", indica apenas o tempo imediatamente precedente ao casamento,
e mostra que estava em estado bem adiantado, pois ela já estava prometida, a
ponto de estar próximo o momento de se tornar esposa. Conforme diz [o
Evangelista], antes de se beijarem e se abraçarem, antes da consumação do
casamento, ela se encontrou grávida. E ela foi determinada para pertencer a
ninguém mais a não ser José, que guardou com zelo o ventre cada vez maior de
sua prometida, com olhar inquieto mas que, a esta altura, quase que com o
privilégio de um marido.
Ainda que possa
parecer - conforme o exemplo citado - que ele teve relações sexuais com Maria
após o seu parto, o seu desejo poderia ter desaparecido pelo fato dela já ter
concebido anteriormente. E, embora encontremos que foi dito a José em um sonho:
"Não temas em receber Maria por tua esposa" e, de novo: "José
despertou do seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a por sua
esposa", não devemos nos preocupar com isto, pois ainda que seja chamada
"esposa", ela somente deixou de ser prometida, pois sabemos que é
usual na Escritura dar esse título para aqueles que são noivos.
A seguinte
evidência, retirada do Deuteronômio, assim o indica: "Se um homem" -
diz o Escritor [sagrado] - "encontra uma mulher prometida no campo e a
violenta, deve ser morto porque humilhou a esposa do seu próximo"; e, em
outro lugar: "Se uma virgem é prometida a um marido, e um homem a encontra
na cidade e a violenta, então deveis trazê-los para fora do portão da cidade e os
apedrejareis até à morte; a mulher porque não gritou, estando na cidade, e o
homem porque humilhou a esposa do seu próximo. Fareis isto para eliminar o mal
do meio de vós"; e também, em outra parte: "Que tipo de homem é este
que possui uma esposa prometida e ainda não a recebeu? Que volte para sua casa,
para que não morra na batalha, e que outro homem a despose".
Mas se alguém
guarda dúvidas do porquê a Virgem concebeu após estar prometida [a José], uma
vez que não estava prometida a mais ninguém, ou, para usar os termos da
Escritura, estava sem marido, deixe-me explicar três razões: [1ª] Pela
genealogia de José, Maria possuía parentesco com ele, e a origem de Maria
também precisava ser demonstrada; [2ª] Porque ela não poderia ser enquadrada na
Lei de Moisés para ser apedrejada como adúltera; [3ª] Porque em sua fuga para o
Egito ela precisava de segurança, o que poderia ser obtido com a ajuda de um
guardião, de preferência um marido.
Quem, naquele
tempo, acreditaria na palavra da Virgem, de que teria concebido pelo poder do
Espírito Santo, e que o anjo Gabriel lhe teria aparecido para anunciar o
propósito de Deus? Todos não a chamariam de adúltera, como fizeram com Suzana?
Ainda nos tempos presentes, quando praticamente toda a terra abraçou a Fé, não
vêm os judeus afirmar que as palavras de Isaías: "Eis que a 'Virgem'
conceberá e dará à luz um filho" são equívocas porque o termo hebraico
almah que aparece na frase, significa mulher jovem, enquanto que o termo
bethulah, que significa virgem não é usado? Tal posição, abordaremos com mais
detalhes adiante.
Finalmente, com
exceção de José, Isabel e da própria Maria - e talvez de mais alguns poucos que
podemos supor ouviram a verdade da boca deles - todos supunham que Jesus era
filho de José. E de tal modo era essa a suposição que até mesmo os
Evangelistas, expressando a opinião corrente - que é a regra correta para
qualquer historiador - o chamavam de pai do Salvador, como, por exemplo:
"Movido pelo Espírito, ele (isto é, Simeão) veio ao Templo. Então os pais
trouxeram o menino Jesus para cumprir as prescrições da Lei a seu
respeito"; e, em outro lugar: "E seus pais iam todos os anos a
Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa"; e, mais adiante: "Tendo
completado os dias, eles retornaram, mas o menino Jesus permaneceu em Jerusalém,
e seus pais não sabiam disso".
Note-se que a
própria Maria respondeu ao [anjo] Gabriel com as seguintes palavras: "Como
se sucederá isso, se não conheço varão?", dizendo isto a respeito de José;
e, mais: "Filho, por que fizeste isto conosco? Teu pai e eu estávamos à
tua procura". Não fazemos uso aqui, como muitos fazem, do discurso dos
judeus ou dos escarnecedores. Os Evangelistas chamam José de "pai" e
Maria confessa que ele era pai. Não - como já disse antes - que José fosse
realmente o pai do Salvador, mas, preservando a reputação de Maria, todos o
viam como sendo o pai [de Jesus], pois ouvira a advertência do anjo:
"José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa,
pois o que nela foi gerado provém do Espírito Santo", pois pensava em
repudiá-la em segredo; tudo isto bem demonstrando que o filho não era dele.
Ao dizermos tudo
isto, mais com o objetivo de oferecer uma instrução imparcial do que responder
a um oponente, mostramos o porquê José era chamado de pai de Nosso Senhor e o porquê
Maria era chamada de esposa de José. Isto também responde ao porquê de certas
pessoas serem chamadas de "seus irmãos".
Entretanto, este
último ponto encontrará seu lugar apropriado mais adiante.
Vamos agora abordar
outros tópicos. A passagem que discutiremos agora é: "E José despertou de
seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a como sua esposa; e não a
conheceu até que deu à luz a um filho, e ele lhe colocou o nome de Jesus".
Aqui, antes de mais nada, é absolutamente inútil para o nosso oponente querer
demonstrar, de forma tão elaborada, que essas palavras se referem à cópula
sexual, especialmente na compreensão intelectual: qualquer um pode negar isso e
toda pessoa de bom senso pode imaginar a estupidez da refutação que Helvídio se
esforçou por sustentar. Ele quer nos ensinar que o advérbio "até que"
implica um tempo fixo e definitivo que, ao se completar, ocorre o evento que
até então não se realizara; como neste caso: "e não a conheceu até que deu
à luz um filho".
Segundo ele, é
claro que ela [Maria] foi conhecida depois, e que apenas aguardara o tempo
necessário para o nascimento de seu filho. Para defender sua posição,
[Helvídio] amontoa textos e mais textos sem qualquer critério, comportando-se
como um gladiador cego que fica movimentando sua espada a esmo, dizendo
asneiras com sua língua barulhenta e terminando sem ferir ninguém, a não ser a
si próprio.
Nossa resposta é
brevemente esta: as palavras "conhecer" e "até que", na
linguagem da Sagrada Escritura, possuem duplo significado. Do primeiro [quanto
a "conhecer"], ele mesmo [Helvídio] nos ofereceu uma dissertação para
mostrar que pode se referir a relação sexual, como também ninguém duvida que
pode ser usada para significar percepção (entendimento, saber), como, por
exemplo: "o menino Jesus permaneceu em Jerusalém e seus pais não tinham
conhecimento disso".
Já que provamos que
ele seguiu o uso da Escritura neste caso, com relação à expressão "até
que" será completamente refutado pela autoridade da mesma Escritura, pois
várias vezes significa um certo tempo sem limitação, como quando Deus diz a
certas pessoas pela boca do profeta: "Até à vossa velhice Eu sou o
mesmo"; acaso Ele deixará de ser Deus após essas pessoas envelhecerem? E,
no Evangelho, o Salvador diz aos Apóstolos: "Estarei convosco até a
consumação do mundo"; será que quando chegar o fim dos tempos o Senhor
abandonará Seus discípulos e estes, quando estiverem sentados sobre os doze
tronos para julgar as doze tribos de Israel, estarão privados da companhia de
seu Senhor?
Também Paulo, ao
escrever aos Coríntios, declara: "[Cada um, porém, na sua ordem:] Cristo,
as primícias; depois os que são de Cristo, na sua vinda. Então virá o fim
quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio
e toda autoridade e todo poder. Pois é necessário que Ele reine até que haja
posto todos os inimigos debaixo de seus pés". Certos de que a passagem
relata a natureza humana de Nosso Senhor, não temos como negar que as palavras
são Daquele que sofreu [morte] na cruz e que mais tarde se sentou à direita [de
Deus]. O que Ele quer demonstrar ao dizer que "é necessário que Ele reine
até que haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés"? O Senhor
reinará apenas até colocar todos os seus inimigos sob os seus pés e, depois
disso, deixará de reinar? É óbvio que seu reino estará começando quando seus
inimigos estiverem sob os seus pés.
Também Davi, na
Quarta Canção da Ascensão, fala assim: "Olhai: assim como os olhos dos
servos olha para a mão de seu mestre; assim como os olhos da moça olham para a
mão de sua senhora; assim também os nossos olhos olham para o Senhor, nosso
Deus, até que tenha misericórdia de nós". Será então que o profeta,
olhando para Deus com o intuito de obter misericórdia, irá desviar seu olhar
para o chão assim que obtiver misericórdia? [Certamente que não,] ainda que
ele, em algum lugar, diga: "Meus olhos quedam pela tua salvação e pela
palavra da tua justiça".
Eu poderia
acrescentar inúmeras passagens como estas que, atestam esse uso, e cobriria com
uma nuvem de provas a verbosidade do nosso contendente. Porém, acrescentarei
mais algumas passagens e deixarei que o leitor descubra outras semelhantes por
si mesmo.
A Palavra de Deus
diz em Gênesis: "Entregaram a Jacó todos os deuses estranhos que tinham em
suas mãos, e as argolas que penduravam em suas orelhas; e Jacó os escondeu
debaixo do carvalho que está junto a Siquem , e continuam perdidos até o dia de
hoje". Igualmente lemos no final do Deuteronômio: "Assim, Moisés,
servo do Senhor, morreu ali na terra de Moab, conforme a palavra do Senhor. E
foi sepultado no vale, na terra de Moab, defronte de Beth-Peor; até o dia de
hoje ninguém sabe o lugar da sua sepultura".
Certamente devemos
identificar a expressão "até o dia de hoje" com o tempo da composição
da história, podendo vocês preferirem o ponto de vista que afirma que Moisés
foi o autor do Pentateuco ou que Esdras o reeditou. Não faço qualquer objeção
em ambos os casos. A questão agora é saber se as palavras "até o dia de
hoje" se referem à época da publicação ou composição desses livros e, caso
o sejam, por que [Helvídio] não mostra - agora que muitos e muitos anos se
passaram desde aquele dia - que os ídolos escondidos sob o carvalho ou a
sepultura de Moisés foram descobertos, já que ele sustenta, com demasiada
teimosia, que certa coisa não pode ocorrer dentro de um espaço de tempo
delimitado pela expressão "até que" mas, para que venha a ocorrer, é
necessário que atinja aquele ponto delimitado por "até que"?
Ele faria bem se
prestasse atenção ao idioma da Sagrada Escritura e compreendesse como nós - já
que se encontra mergulhado na lama; certas coisas parecem ambíguas quando não
claramente declaradas, embora outras coisas sejam deixadas assim para exercitar
o nosso intelecto. Ora, se ainda quando o evento permanecia fresco na memória
daqueles homens que viram e conviveram com Moisés já se desconhecia o local da
sepultura, quanto mais agora depois que tantos anos se passaram!
E da mesma forma
devemos interpretar o que se conta a respeito de José. O Evangelista apontou
uma circunstância que poderia causar escândalo, ou seja, que Maria não foi
conhecida por seu marido até dar à luz, e ele (o Evangelista) agiu assim para
que tivéssemos a certeza de que ela - de quem José se absteve enquanto havia
lugar para dúvidas sobre a importância da visão - não foi conhecida depois de
seu parto.
Em resumo: o que eu
gostaria de saber é por que José teria se privado [de Maria] até o dia de ter
ela dado à luz? Helvídio certamente responderia: "Porque ele ouviu o que o
anjo disse: 'pois o que nela foi gerado provém do Espírito Santo'". Nós,
então, responderíamos a seguir que [José] certamente ouviu o que o [anjo]
disse: "José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua
esposa". A razão pela qual ele estava proibido de repudiar sua esposa era
porque não achava que ela fosse adúltera. Seria então verdade que o [anjo]
ordenara que não tivesse relações sexuais com sua esposa? Não está
suficientemente claro que a advertência feita foi para que não se separasse
dela? E poderia o homem justo pensar em se aproximar dela tendo ouvido que o
Filho de Deus estava em seu ventre? Ótimo! Vamos então acreditar que o mesmo
homem que deu tanto crédito a um sonho, não se atreveu a tocar em sua esposa,
mesmo depois, quando ele ouviu dos pastores que o anjo do Senhor desceu dos
céus e lhes disse: "Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria,
que o será também para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de Davi, o
Cristo Senhor"; e após, quando a multidão celeste se juntou ao anjo e
entoaram: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade";
e ainda quando o justo Simeão abraçou a criancinha e exclamou: "Podeis
levar agora para ti este teu Servo, Senhor, pois os meus olhos viram a tua
salvação, conforme a tua palavra"; e também quando [José] viu a profetisa
Ana, os Magos, a Estrela [de Belém], Herodes, os anjos...
Eu diria então:
quer Helvídio nos fazer acreditar que José, muito bem inteirado de tamanhas
maravilhas, ousaria tocar o templo de Deus, a morada do Espírito Santo, a mãe
do seu Senhor? Maria mantinha todos esses eventos "guardados em seu
coração". Vocês não podem cair na vergonha de dizer que José desconhecia
tudo isso, pois Lucas nos diz: "Seu pai e sua mãe ficavam maravilhados das
coisas que diziam a Seu respeito".
E vocês ainda
afirmam, arrogantemente, que a leitura dos manuscritos gregos é corrupta,
embora seja exatamente isso que todos os escritores gregos fizeram constar em
seus livros, e não apenas eles, mas também muitos escritores latinos
interpretaram as palavras da mesma forma... E nem precisaremos considerar as
variações existentes nas cópias, pois todos os registros existentes, tanto no
Antigo quanto no Novo Testamento, se encontram assim desde que foram traduzidos
para o Latim; portanto, devemos crer que a água da fonte brota mais pura que a
[água] do rio.
Os «irmãos» do Senhor eram primos (parentes); não
irmãos de fato
Helvídio poderá
responder: "O que você diz é, na minha opinião, insignificante. Seus
argumentos foram perdidos no tempo e esta discussão demonstra mais astúcia do
que verdade. Por que a Escritura não diria como diz de Tamar e Judá: 'E ele a
tomou como sua esposa e jamais a conheceu'? Porque Mateus não usou estas
palavras se quisesse mesmo expressar esse significado? Ele diz claramente: 'e
não a conheceu até que deu à luz a um filho'. Logo, após o parto, certamente a
conheceu, pois se privou dela até o momento do parto".
Se vocês são tão
contenciosos, deveriam com suas próprias ideias testar o vosso mestre. Vocês
não devem permitir que se faça uma separação entre o parto e o intercurso
(sexual). Não devem dizer: "Se uma mulher conceber e tiver um menino, será
imunda sete dias; assim como nos dias da impureza de suas regras, será imunda.
No oitavo dia, circundar-se-á o prepúcio do menino e, durante trinta e três
dias, ela ficará ainda purificando-se do seu sangue e não tocará em qualquer
coisa sagrada" e outras coisas semelhantes. Devem recordar que se José se
aproximasse dela, estaria sujeito à reprovação de Jeremias: "São como
cavalos de lançamento bem nutridos, que andam relinchando cada um à mulher do
seu próximo".
De outra maneira,
como se explicariam as palavras "e não a conheceu até que deu à luz a um
filho", se ele ainda deveria aguardar o término do tempo de purificação,
pois senão o seu desejo acabaria por sofrer com um período ainda mais longo, de
40 dias? A mãe precisava se purificar da mácula de seu filho recém-nascido de
modo que este ficava sob os cuidados da parteira, enquanto o marido apoiava sua
esposa enfraquecida. Portanto, é certo que [José e Maria] se casaram, já que o
Evangelista não pode ser acusado de ter mentido. Mas Deus nos livre de
pensarmos tais coisas a respeito da mãe do Salvador e de um homem justo!
Nenhuma parteira assistiu ao nascimento de Jesus; nenhuma mulher se intrometeu
ali. Com suas próprias mãos [Maria] envolveu o Menino em pedaços de pano; ela
mesma foi mãe e parteira, e, como nos é relatado, "O colocou numa
manjedoura, pois não havia nenhum quarto para eles na pousada"; eis a
declaração [canônica] que refuta as estórias apócrifas, pois foi Maria mesma
que o envolveu em pedaços de pano e o que se sucederia a partir daí torna
impossível a maliciosa ideia de Helvídio, uma vez que não havia um local
adequado para o ato sexual naquela pousada.
Darei agora uma
resposta mais ampla a respeito das palavras "antes que coabitassem" e
"não a conheceu até que deu à luz a um filho". Mas devo observar
primeiro que a minha resposta segue a ordem do argumento dele até o terceiro
ponto, pois ele dirá que Maria teve outros filhos quando cita a passagem:
"E José se dirigiu até a cidade de Davi, para se inscrever com Maria, sua
noiva, que estava grávida. Enquanto lá estavam, completaram-se os dias para o
parto e ela deu à luz ao seu filho primogênito". Esforça-se, assim, para
provar que o termo "primogênito" só pode ser aplicado a uma pessoa
que teve outros irmãos e que, no caso, seriam filhos de seus pais. www.ecclesia.com.br. Abraço. Davi
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