quarta-feira, 23 de novembro de 2022

QUERIDA AMAZÔNIA

 

Cristianismo. www.vatican.va. EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL. QUERIDA AMAZÔNIA. Do Santo Padre Francisco. Ao povo de Deus e a todas as pessoas de boa vontade. Capítulo III. UM SONHO ECOLÓGICO. 41. Numa realidade cultural como a Amazônia, onde existe uma relação tão estreita do ser humano com a natureza, a vida diária é sempre cósmica. Libertar os outros das suas escravidões implica certamente cuidar do seu meio ambiente e defendê-lo[46] e – mais importante ainda – ajudar o coração do homem a abrir-se confiadamente àquele Deus que não só criou tudo o que existe, mas também Se nos deu a Si mesmo em Jesus Cristo. O Senhor, que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar dos nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá de prenda cada dia. Esta é a primeira ecologia que precisamos. Na Amazónia, compreendem-se melhor as palavras de Bento XVI, quando dizia que, «ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar “humana”, a qual, por sua vez, requer uma “ecologia social”. E isto requer que a humanidade (…) tome consciência cada vez mais das ligações existentes entre a ecologia natural, ou seja, o respeito pela natureza, e a ecologia humana»[47]. Esta insistência em que «tudo está interligado»[48] vale especialmente para um território como a Amazónia. 42. Se o cuidado das pessoas e o cuidado dos ecossistemas são inseparáveis, isto torna-se particularmente significativo lá onde «a floresta não é um recurso para explorar, é um ser ou vários seres com os quais se relacionar»[49]. A sabedoria dos povos nativos da Amazônia «inspira o cuidado e o respeito pela criação, com clara consciência dos seus limites, proibindo o seu abuso. Abusar da natureza significa abusar dos antepassados, dos irmãos e irmãs, da criação e do Criador, hipotecando o futuro»[50]. Os indígenas, «quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuidam»,[51] desde que não se deixem enredar pelos cantos das sereias e pelas ofertas interesseiras de grupos de poder. Os danos à natureza preocupam-nos, de maneira muito direta e palpável, porque – dizem eles – «somos água, ar, terra e vida do meio ambiente criado por Deus. Por conseguinte, pedimos que cessem os maus-tratos e o extermínio da “Mãe Terra”. A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias da nossa “Mãe Terra”»[52]. Esse sonho feito de água. 43. Na Amazônia, a água é a rainha; rios e córregos lembram veias, e toda a forma de vida brota dela: «Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o termômetro é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas. A enchente é uma paragem na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza que se excede em manifestações dispares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços»[53]. 44. A água encanta no grande Amazonas, que abraça e vivifica tudo ao seu redor:

 

«Amazonas,
capital das sílabas d'água,
pai patriarca, és
a eternidade secreta
das fecundações,
chegam-te rios como pássaros»[54].

 

45. Além disso é a coluna vertebral que harmoniza e une: «O rio não nos separa; mas une-nos, ajudando-nos a conviver entre diferentes culturas e línguas»[55]. Embora seja verdade que, neste território, há muitas «Amazônias», o seu eixo principal é o grande rio, filho de muitos rios: «Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se desprende, e traça trémula um risco na pele antiga da pedra: o Amazonas acaba de nascer. A cada instante ele nasce. Desce devagar, para crescer no chão. Varando verdes, faz o seu caminho e se acrescenta. Aguas subterrâneas afloram para abraçar-se com a água que desceu dos Andes. De mais alto ainda, desce a água celeste. Reunidas elas avançam, multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície (...). É a Grande Amazônia, toda ela no trópico húmido, com a sua floresta compacta e atordoante, onde ainda palpita, intocada pelo homem, a vida que se foi urdindo nas intimidades da água (...). Desde que o homem a habita, ergue-se das funduras das suas águas e dos altos centros de sua floresta um terrível temor: a de que essa vida esteja, devagarinho, tomando o rumo do fim»[56]. 46. Os poetas populares, enamorados da sua imensa beleza, procuraram expressar o que este rio lhes fazia sentir e a vida que ele oferece à sua passagem, com uma dança de delfins, anacondas, árvores e canoas. Mas lamentam também os perigos que a ameaçam. Estes poetas, contemplativos e proféticos, ajudam a libertar-nos do paradigma tecnocrático e consumista que sufoca a natureza e nos deixa sem uma existência verdadeiramente digna: «Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço (...). Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autômato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões. A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz»[57]. O grito da Amazónia47. A poesia ajuda a expressar uma dolorosa sensação que muitos compartilhamos hoje. A verdade ineludível é que, nas condições atuais, com este modo de tratar a Amazónia, tanta riqueza de vida e de tão grande beleza estão «tomando o rumo do fim», embora muitos pretendam continuar a crer que tudo vai bem, como se nada acontecesse:

«Aqueles que pensavam que o rio fosse uma corda para jogar, enganavam-se.
O rio é uma veia muito subtil sobre a face da terra. (…)
O rio é uma corda onde se agarram os animais e as árvores.
Se o puxarem demais, o rio poderia rebentar.
Poderia explodir e lavar-nos a cara com a água e com o sangue»[58].

48. O equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazônia. Juntamente com os biomas do Congo e do Bornéu, deslumbra pela diversidade das suas florestas, das quais dependem também os ciclos das chuvas, o equilíbrio do clima e uma grande variedade de seres vivos. Funciona como um grande filtro do dióxido de carbono, que ajuda a evitar o aquecimento da terra. Em grande parte, o solo é pobre em húmus, de modo que a floresta «cresce realmente sobre o solo e não do solo»[59]. Quando se elimina a floresta, esta não é substituída, ficando um terreno com poucos nutrientes que se transforma num território desértico ou pobre em vegetação. Isto é grave, porque, nas entranhas da floresta amazônica, subsistem inúmeros recursos que poderiam ser indispensáveis para a cura de doenças. Os seus peixes, frutos e outros dons sobreabundantes enriquecem a alimentação humana. Além disso, num ecossistema como o amazónico, é incontestável a importância de cada parte para a conservação do todo. As próprias terras costeiras e a vegetação marinha precisam de ser fertilizadas por aquilo que o rio Amazonas arrasta. O grito da Amazónia chega a todos, porque a «conquista e exploração de recursos (...) hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como “recurso” corre o perigo de ameaçar o ambiente como “casa”»[60]. O interesse de algumas empresas poderosas não deveria ser colocado acima do bem da Amazónia e da humanidade inteira. 49. Não basta prestar atenção à preservação das espécies mais visíveis em risco de extinção. É crucial ter em conta que, «para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e a variedade inumerável de micro-organismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar»[61]. E isto facilmente se ignora na avaliação do impacto ambiental dos projetos econômicos de indústrias extrativas, energéticas, madeireiras e outras que destroem e poluem. Além disso a água, que abunda na Amazônia, é um bem essencial para a sobrevivência humana, mas as fontes de poluição vão aumentando cada vez mais[62]. 50. Com efeito, além dos interesses econômicos de empresários e políticos locais, existem também «os enormes interesses econômicos internacionais»[63]. Por isso, a solução não está numa «internacionalização» da Amazônia[64], mas a responsabilidade dos governos nacionais torna-se mais grave. Pela mesma razão, «é louvável a tarefa de organismos internacionais e organizações da sociedade civil que sensibilizam as populações e colaboram de forma crítica, inclusive utilizando legítimos sistemas de pressão, para que cada governo cumpra o dever próprio e não-delegável de preservar o meio ambiente e os recursos naturais do seu país, sem se vender a espúrios interesses locais ou internacionais»[65]. 51. Para cuidar da Amazónia, é bom conjugar a sabedoria ancestral com os conhecimentos técnicos contemporâneos, mas procurando sempre intervir no território de forma sustentável, preservando ao mesmo tempo o estilo de vida e os sistemas de valores dos habitantes[66]. A estes, especialmente aos povos nativos, cabe receber, para além da formação básica, a informação completa e transparente dos projetos, com a sua amplitude, os seus efeitos e riscos, para poderem confrontar esta informação com os seus interesses e com o próprio conhecimento do local e, assim, dar ou negar o seu consentimento ou então propor alternativas[67]. 52. Os mais poderosos nunca ficam satisfeitos com os lucros que obtêm, e os recursos do poder econômico têm aumentado muito com o desenvolvimento científico e tecnológico. Por isso, todos deveríamos insistir na urgência de «criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-econômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça»[68]. Se a chamada por Deus exige uma escuta atenta do grito dos pobres e ao mesmo tempo da terra[69], para nós «o grito da Amazónia ao Criador é semelhante ao grito do Povo de Deus no Egito (cf. Ex 3, 7). É um grito desde a escravidão e o abandono, que clama por liberdade»[70]. A profecia da contemplação53. Muitas vezes deixamos que a consciência se torne insensível, porque «a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito»[71]. Se nos detivermos na superfície, pode parecer «que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido»[72]. 54. Além de tudo isso, quero lembrar que cada uma das diferentes espécies tem valor em si mesma. Ora, «anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer»[73]. 55. Aprendendo com os povos nativos, podemos contemplar a Amazónia, e não apenas analisá-la, para reconhecer esse precioso mistério que nos supera; podemos amá-la, e não apenas usá-la, para que o amor desperte um interesse profundo e sincero; mais ainda, podemos sentir-nos intimamente unidos a ela, e não só defendê-la: e então a Amazônia tornar-se-á nossa como uma mãe. Porque se «contempla o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os seres»[74]. 56. Despertemos o sentido estético e contemplativo que Deus colocou em nós e que, às vezes, deixamos atrofiar. Lembremo-nos de que, «quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos»[75]. Pelo contrário, se entrarmos em comunhão com a floresta, facilmente a nossa voz se unirá à dela e transformar-se-á em oração: «Deitados à sombra dum velho eucalipto, a nossa oração de luz mergulha no canto da folhagem eterna»[76]. Tal conversão interior é que nos permitirá chorar pela Amazônia e gritar com ela diante do Senhor. 57. Jesus disse: «Não se vendem cinco passarinhos por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc 12, 6). Deus Pai, que criou com infinito amor cada ser do universo, chama-nos a ser seus instrumentos para escutar o grito da Amazónia. Se acudirmos a este clamor angustiado, tornar-se-á manifesto que as criaturas da Amazônia não foram esquecidas pelo Pai do céu. Segundo os cristãos, o próprio Jesus nos chama a partir delas, «porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa»[77]. Por todas estas razões, nós, os crentes, encontramos na Amazónia um lugar teológico, um espaço onde o próprio Deus Se manifesta e chama os seus filhos. Educação e hábitos ecológicos58. Assim, podemos dar mais um passo e lembrar que uma ecologia integral não se dá por satisfeita com ajustar questões técnicas ou com decisões políticas, jurídicas e sociais. A grande ecologia sempre inclui um aspeto educativo, que provoca o desenvolvimento de novos hábitos nas pessoas e nos grupos humanos. Infelizmente, muitos habitantes da Amazónia adquiriram costumes próprios das grandes cidades, onde já estão muito enraizados o consumismo e a cultura do descarte. Não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adotar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno. 59. De facto, «quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e consumir. Em tal contexto, parece não ser possível, para uma pessoa, aceitar que a realidade lhe assinale limites; (…) não pensemos só na possibilidade de terríveis fenómenos climáticos ou de grandes desastres naturais, mas também nas catástrofes resultantes de crises sociais, porque a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca».[78]. 60. A Igreja, com a sua longa experiência espiritual, a sua consciência renovada sobre o valor da criação, a sua preocupação com a justiça, a sua opção pelos últimos, a sua tradição educativa e a sua história de encarnação em culturas tão diferentes de todo o mundo, deseja, por sua vez, prestar a sua contribuição para o cuidado e o crescimento da Amazônia. Isso dá lugar ao novo sonho, que pretendo partilhar mais diretamente com os pastores e os fiéis católicos. www.vatican.va. Abraço. Davi

 

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