Espiritualidade.
Livro Em Busca da Sabedoria. Autor N. Sri Ram (1889-1973). ENCONTRANDO A MORTE
COMO A UM AMIGO. Um dos Diálogos mais famosos de Platão (428aC348), que atraiu
mais atenção que qualquer outro, é aquele em que ele relata a morte de Sócrates
(470aC399). Havia alguns amigos presentes durante o dia em cuja noite deu-se a
sua passagem, e esse Diálogo apresenta-se em forma de uma conversa que se
realizou naquele último dia. Começou com argumentos sobre a preexistência da
alma, e várias ideias foram abordadas com relação à sua natureza. Esta parte da
discussão termina com a afirmação da imortalidade da alma. Até mesmo nos dias
de hoje, parece-me vale a pena considerar os pontos que foram então discutidos.
Quando os seus amigos entraram no cárcere, viram Sócrates esfregando a sua
perna que acabara de ser liberta dos grilhões. O ponto notável sobre a sua
conduta, quando encontrou os seus amigos, foi que ele não fez qualquer queixa.
Não havia o menor indício de lamento sobre sua própria condição. Apenas teceu
considerações sobre a extraordinária alternância e conexão entre o prazer e a
dor da vida. Disse que até então tinha havido uma experiência de dor. Mas agora
que estava livre dos grilhões houve imediatamente prazer. Se qualquer um de nós
tivesse estado na sua situação, pergunto-me sobre que tipo de sentimento ou
pensamentos teríamos tido. Naturalmente Sócrates estava antevendo sua morte. A
conversa então prossegue, e várias ideias são trocadas, e quando se aproximou a
noite, ele recebeu a taça de veneno que beberia, pronta e calmamente, segundo
se diz, da maneira mais descontraída e tranquila possível. Aparentemente a
conversa continuou durante horas a fio. Depois de debater sobre a natureza da
alma, Sócrates explica sobre as finalidades procuradas pelo verdadeiro filósofo
e porque a morte lhe é bem-vinda. As declarações feitas não são asserções, mas
meramente uma discussão sobre ideias, sobre possibilidades e inferências a
serem delas feitas. Um dos amigos de Sócrates sugeriu que a alma pode ser
concebida como sendo da natureza da harmonia. Se o corpo pode ser comparado com
uma lira ou alaúde, por exemplo, a alma poderia ser a música produzida. Esta
visão – embora atribua à alma uma dignidade e natureza que podem possuir tanto
profundidade quanto beleza. Não lhe outorga um status independente. A visão
apresentada parecia propor aquilo que se poderia denominar de teoria
epifenomenalista, ou seja, o corpo é a realidade. Várias atividades nele se
desenrolam, particularmente as do cérebro, e a alma, embora possuindo uma
natureza de harmonia, é meramente um produto daquelas atividades, talvez apenas
daquelas dentre elas que poderiam conduzir a este resultado. Mas quando o
instrumento estivesse danificado, não mais haveria música. Não houve objeções
nestas linhas. Outra ideia colocada, de natureza similar, sugeria a analogia
mecânica de um fogo. Poder-se-ia encarar o fogo como a consciência no homem,
animando o corpo; uma vez dissolvido o corpo, o fogo estará extinto. Essa ideia
é como o pensamento da Escola Meridional do Budismo. Mas eles provavelmente
diriam que é um fogo misturado com a fumaça, que é dissipada. Esses argumentos
não são destituídos de interesse. Quando consideramos como as coisas poderiam
ser, se determinado pondo de vista se justifica. Qual a visão que pode ser
razoavelmente defendida. Então a passagem por esta linha de pensamento não está
destituída de um elemento instrutivo e de valor. Na natureza ocorre tantas
coisas, como o nascer e o pôr do sol, de uma maneira que é contrária aos fatos.
O argumento de que a alma ou a mente – por enquanto colocando-as juntas – é
meramente uma espécie de imagem refletida das atividades no campo material do
cérebro. Embora plausível, pode também ser contraditório em relação aos fatos.
O que inicialmente parece ocorrer, à primeira vista, pode não ser a verdade
básica ou subjacente. Sócrates vence as objeções à ideia da imortalidade da
alma. Na realidade, em outro Diálogo, Platão destaca estas objeções,
marcando-as como constituindo a raiz de toda a forma “irreligiosa de
filosofia”. Embora ele fosse tão lógico que poderia não ter assumido que o que
é aparentemente verdadeiro é religioso. O que é verdadeiro pode ser considerado
religioso, mas aquilo que está de acordo com a religião, como ela se apresenta
pode não ser verdadeiro. Os argumentos feitos quanto à preexistência da alma
são ideias que desde então se tornaram famosas como parte da Filosofia
Platônica. Houve referência a antiga crença de que uma alma nascida neste mundo
voltou de um outro mundo para o qual o homem vai na morte. É claro que este é
um conceito amplamente aceito na Índia, mas ele também existiu no pensamento
antigo em outros povos. A sugestão foi no sentido de que os mortos se originam
dos vivos. Os vivos originam-se dos mortos. É um fenômeno de ocorrência cíclica
como o sono, o estar acordado, e o sono novamente, e está de acordo com a
verdade ou regra na natureza de que os opostos se geram reciprocamente. Morrer
e nascer constituem um par de opostos. Mas, aparentemente, não houve uma
investigação mais profunda sobre a forma de sua ligação, de sorte que um
acontecimento dá origem ao outro em seu curso Platão tinha uma forma de, às
vezes, lançar uma ideia profundamente sugestiva e envolvente para depois deixar
que os outros continuassem a investigá-la por si mesmos. Outro argumento
referiu-se a uma ideia de que Sócrates havia anteriormente proposto, no sentido
de que todo o conhecimento real é reminiscência, uma lembrança no cérebro
físico. A alma deve ter existido e deve ter tido conhecimento de uma natureza
específica, antes de ter sido unida com o corpo. E a evidência disso e o fato
de compreendermos coisas como justiça, beleza, igualdade de espírito e assim
por diante. E essas ideias não se originarem de percepções dos sentidos.
Portanto, elas devem já ter estado integradas no conhecimento da alma. As percepções
sensoriais – ouvir sons, ver que algo é vermelho ou preto, que outra coisa é
alta ou baixa – todas são ideias comparativas. Meramente baseado nessas
percepções não se pode ideias de beleza, justiça, moralidade e assim por
diante. Portanto, conhecimento e ideias devem ter uma fonte diferente. Além
disso, se a alma existia antes do nascimento e de forma independente, então ela
não pode morrer com o corpo. Sócrates também expressou a opinião de que a alma
não pode ter uma natureza constituída de vários fatores, pois, assim, a sua
condição modificar-se-ia. Deve ter uma natureza que é imutável. Muito embora
uma alma possa estar mais desenvolvida do que outra, a sua natureza essencial
deve ser a mesma. Um conjunto de fatores variáveis é passível de mudanças, ao
passo que aquilo que é simples, monádico (1), essencialmente terá de permanecer
o mesmo. Foi também feita a declaração de que sejam quais forem os seus outros
atributos, a alma deve ter uma natureza de vida. Não pode ser uma abstração,
uma projeção mental. Esta vinculação da vida e da alma, obviamente importante
na série de ideias expostas, estava oculta pela afirmação de que a alma deve
ser da mesma natureza da Divindade para assegurar a crença na sua imortalidade.
Apenas o Divino pode ser imortal, e aquilo que não é Divino deve ser mortal.
Depois, Sócrates exorta seus amigos a adquirirem virtudes e sabedoria nesta
vida. O momento de sua morte estava se aproximando, mas ele continuava a falar
de maneira natural e fácil como o fizera em qualquer outro dia de sua vida.
Disse ele; “O filósofo autêntico é aquele cuja mente está direcionada para a
verdade e a virtude”. A palavra “filósofo”, bem como a “filosofia”, tornaram-se
bastante modificadas em seu significado desde aqueles dias. Atualmente, achamos
que um filósofo é uma pessoa que analisa e argumenta extensamente. E as vezes
infinitamente, a sua tese específica. A vida que ele leva nada tem a ver com a
sua habilidade e atividade intelectual. Mas não era esta a visão de então. No
significado literal da palavra, filosofia é amor à verdade, e amor sempre
implica ação. A verdade, se sua natureza for tal que evoque o amor, terá de
produzir uma mudança importante na pessoa, voltando o seu interesse das coisas
dos sentidos, que são efêmeras. Constituindo nada mais senão gozo e prazer,
para as coisas nobres e autênticas. Este foi o antigo conceito de um filósofo.
Como a sua mente está direcionada para a verdade e a sabedoria, o filósofo,
disse Sócrates, é uma pessoa que “está disposta e pronta para morrer”. Portanto,
a morte não é mal-recebida por ele. É assim que ele explicou o seu
contentamento sobre a perspectiva de partir deste mundo. Mas ele também disse
que não é certo cometer suicídio. O seu argumento contra o suicídio é bastante
curioso. Neste mundo, estamos em um tipo de prisão, vivendo sob grandes
limitações. É um mundo no qual predomina mais a ignorância do que a sabedoria,
mas dele não devemos escapar antes de recebermos permissão para fazê-lo. A
saída da prisão pode ser muito bem-vinda, mas não devemos nos evadir dela por
nossa própria iniciativa. Também foi feita a afirmação de que ninguém possui
direito de posse sobre o seu corpo. Esta não seria a visão geralmente defendida
pela maioria das pessoas, mas temos a responsabilidade de usarmos o corpo adequadamente,
mantendo-o em boas condições. O que é precisamente o ponto de vista expresso na
obra Aos Pés do Mestre. Porque a morte é bem-vinda, e a mente é direcionada
pelo filósofo para a verdade e a virtude, para ele, a filosofia passa a
constituir realmente uma preparação para a morte, o que é uma ideia
surpreendente. Alguns estudiosos interpretaram as palavras gregas como
significando, “a filosofia constitui realmente uma meditação sobre a morte”. O
que não me parece estar em consonância com a maneira natural com que Sócrates a
compreende. Outra colocação e muito mais compreensível, ou seja, quando a vida
for vivida de forma adequada, direcionada para aquelas finalidades que
constituem as finalidades da alma, não os desejos do corpo. Então a filosofia ou
“a vida de um filósofo nada mais é senão um longo ensaio para o processo da
morte”. Pode-se viver uma vida feliz, mas pode também ser um processo de morte,
que poderá necessitar de explicitação. Sócrates adianta que as multidões, o
povo em geral, ignoram o sentido no qual o filósofo recebe a morte. Não
significa que ele deseja livrar-se do corpo, mas que ele tem um sentimento
acolhedor em relação a morte. Tem este sentimento porque não atribui grande
valor às gratificações dos apetites físicos. A maioria dos homens estima o
valor das coisas através do prazer que proporcionam. Mas o objetivo do filósofo
é o de libertar-se tanto quanto possível da dominação do corpo. Esforça-se para
cultivar a alma, dando atenção àqueles assuntos que são de interesse da alma como
a verdade, a virtude e assim por diante. Ao proceder desta maneira já se
separou do seu corpo. E como abandonou todo o apego aos prazeres que se
apresentam a pessoa através do corpo, a morte nada mais é senão uma saída por
uma porta aberta. As coisas que alimentam a alma são aquilo que é direito, bom,
verdadeiro, belo e assim por diante. Disse Sócrates: “Aquele que não se
preocupa como os prazeres do corpo quase chega à morte”. Pode-se usufruir os
prazeres que surgem momentaneamente, mas não se deve desejá-los com ansiedade.
Alijando-os do campo das preocupações e interesses, quase se chega à morte. É
neste sentido que o filósofo deseja a morte, mesmo enquanto está vivo. Isto é
semelhante ao ensinamento de J. Krishnamurti (1895-1986), embora ele não fale
da morte como uma saída bem-vinda. Mas de morrer aqui e agora para o nosso
passado e para toda a experiência na medida em que surge. O filósofo, cujo
interesse está centralizado na virtude e sabedoria, purifica, assim, a sua
inteligência, de maneira que ela está livre de toda a mácula, de todo elemento
a ele estranho. É a purificação da natureza integral do ser humano que faz
florescer a independência espiritual, e esta é a verdadeira liberdade ou Mukti
Mukti não é literalmente uma fusão no Logos. Antes que possa processar-se a
fusão do espírito humano no Logos, o homem terá de libertar-se de seus laços ou
apegos. Para expressar a mesma verdade de outra forma: é realmente o abandono
do passado da pessoa, de todos os apegos que dele surgem, que transforma o homem
em um novo ser. A entidade que está atualmente funcionando é uma criatura do
passado. Ela vem acompanhando uma linha de continuidade e tem dentro de suas
natureza e constituição muitas coisas que derivaram do seu passado e de suas
experiências. Transformar-se em um novo ser é estar limpo do passado, de modo
que ele não mais domina, obscurece ou dirige o presente. Esta forma de morrer
toma a vida realmente muito mais vital, menos embaraçada e oprimida, de maneira
que todas as percepções são mais exatas, e a inteligência passa a ser intensa,
concentrada e semelhante a uma chama. É em um estado de pureza interna que a
pessoa atinge a mais alta qualidade no funcionamento de todos os aspectos do
seu ser. Toda a substância em seu estado puro exibe a sua potência plena.
Casualmente foi feita a afirmação de que a filosofia é a música de mais alta
qualidade. Sócrates disse que tinha um sonho persistente no qual lhe ordenavam
dedicar-se à música, e como ele compreendia ser a filosofia a música mais
elevada, estava dedicando-se a filosofia. O conceito de ser a filosofia a forma
mais elevada de música torna-se mais claro à luz da afirmação feita
anteriormente com relação à natureza da alma com sendo uma forma de harmonia. A
objeção anteriormente formulada de que ao ser avariado o instrumento não pode
mais haver qualquer música foi respondida por Sócrates com a observação de que
a alma pode existir, embora ela possa ou não ter um instrumento. É bastante
interessante que, em uma das palestras feitas pela doutora Anne Besant
(1847-1933), em seus dias de ateísta, ela usava precisamente este exemplo. Ela
dizia que embora a lira possa estar avariada, a música pode ainda existir. Com
razão de estar disposto a morrer, Sócrates comentou que estaríamos muito bem no
local para onde iríamos, sob a orientação de bons Mestres e em meio a amigos.
As pessoas gostam de encontrar-se em ambientes que lhes são familiares. Se um
homem realmente dedicou a sua vida à filosofia, ele pode estar certo de que
será bem colocado. Estará feliz em proporção à pureza de sua mente, o que
também constitui uma verdade importante. A felicidade não deve ser confundida
com prazer, ela se origina da pureza da mente e do coração e surge de forma
natural. Não precisamos procurá-la de modo algum. Assim, Sócrates disse que, se
um homem se dedicou à virtude e à sabedoria, poderá nutrir a esperança bem
fundamentada de que estará cercado pela maior benevolência no outro mundo, o
que está de acordo com os ensinamentos nos livros teosóficos. Foi feita uma
outra observação digna de ser mencionada. Se algum dia chegarmos a conhecer a
natureza de algo em sua essência, conhecer a sua realidade autêntica e não
meramente a forma, a aparência, o invólucro externo. Teremos de estar separados
do corpo e contemplar as próprias coisas em si através da alma apenas. É
somente a visão da alma, a sabedoria da alma, que pode proporcionar a essência
da verdade com relação a qualquer coisa existente. O Bhagavad-Gitâ refere-se
aos “conhecedores da essência das coisas”. Sendo a qualidade essencial de uma
coisa aquilo que a torna diferente de qualquer outra coisa. A essência, o
objeto em si mesmo, apenas pode ser conhecido através da alma e jamais através
dos sentidos. Quando vivemos, nos aproximamos mais do conhecimento daquela
essência ao não mantermos comunicação ou comunhão de espécie alguma com o
corpo. Exceto para as necessidades absolutas, isto é, quando deixamos de ser
dependentes do corpo, influenciados pelos seus apetites, impulsos e paixões. Em
outras palavras, todo o esforço e estudo na filosofia, segundo a acepção antiga
da palavra, implica na entrega e separação da alma do corpo. E isso pode ser
tentado e logrado até mesmo enquanto a pessoa estiver vivendo neste mundo. Não
é algo que precisa realizar-se por um processo da natureza, mas pode ser
atingido pela própria inteligência perspicaz da pessoa. Quando há liberdade de
dependência do corpo, quando esta mudança se realiza em sua plenitude, então a
morte e a vida são a mesma coisa para o homem real. Sendo o homem real a alma,
não lhe faz diferença se vive ou se morre. Isto também nos faz lembrar a frase
contida no Gitã que diz que “Os sábios não lamentam nem os vivos e nem os
mortos”. Isto significa que existe a possibilidade de alcançar uma condição ou
estado interior no qual a vida é exatamente a mesma coisa, se vivida no corpo
físico, que foi chamado de prisão, ou fora dela. A alma usa o corpo como
instrumento, sem a ele se apegar. Esse Diálogo está repleto de ideias
esclarecedoras para todos aqueles que tentam compreender estes assuntos. A
natureza da alma, da vida neste mundo, os objetos mais dignos porque se
esforçar. O novo significado que a morte pode adquirir e a possibilidade de
enfrentar este acontecimento com frieza e até mesmo de bem acolhê-lo. Livro Em
Busca da Sabedoria. Autor N. Sri Ham. Abraço. Davi.
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