quarta-feira, 22 de julho de 2020

A ESTRUTURA DO MUNDO III


Religião Afro-brasileira. O Candomblé da Bahia – Rito Nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918-2018). Capítulo III. A ESTRUTURA DO MUNDO III.  O babalaô trabalha ou para os indivíduos, em caso de doença, de casamento, de viagens, etc., ou para a coletividade: os búzios são lançados a cada dia que começa, e a vida do candomblé, no transcurso das 24 horas que se seguem, será inteiramente determinada pelo odu que saiu. Assim é ele muitas vezes levado a aconselhar ou, melhor ainda, a ordenar aos assistentes banhos de folhas, remédios vegetais, isto é, passa do culto de Ifa para o culto de Ossaim. Como diz Lydia Cabrera (1899-1991), o babalaô "não está seguro" sem seu Exú e sem seu Ossaim. Aliás, uma das lendas africanas que acompanham os odu ensina que o axé se fez conhecer a Ifa e lhe explicou como proceder com as ervas para tornar seus atos eficazes. No entanto, babalorixá e ialorixá, por sua vez, não podem dispensar as ervas sagradas. Vimos já a importância dos banhos de folhas no ritual de iniciação. Estes, conforme o Orixá a que se pertence, são tomados dentro ou fora de casa, uma vez que existem Orixás do "ar livre" e Orixás que vivem no pegi interior do santuário. O batismo dos tambores, a oferenda de alimentos que lhes é feita uma vez por ano, requerem igualmente o preparo de um banho ou lavagem especial de folhas maceradas. E até as yauô, em sua existência cotidiana, são obrigadas a recorrer à virtude das ervas; uma vez por semana, no dia consagrado ao "dono da cabeça", tomam um banho em cuja composição entram folhas especiais pertencentes ao respectivo Orixá, o banho de amasin, isto é, de purificação. Tudo nos leva, pois, à mesma conclusão: de que é primordial a importância das "ervas" na vida dos africanos do Brasil. E poderíamos repetir, para a Bahia, o que Frobenius diz dos Yoruba da África: “É unicamente de Osseni (o nosso Ossaim) que emana a força mágica que vivifica os homens e os deuses". Leo Frobenius (1873-1938), todavia, interpreta o sacerdote de Ossaim como um feiticeiro e é exato que também na América o conhecimento das ervas - aquelas que envenenam, aquelas que despertam o amor nos corações rebeldes - teve como resultado a ligação do culto de Ossaim com a feitiçaria. Tanto mais que na luta dos escravos contra os senhores brancos o veneno era instrumento facilmente empregado; além disso, as negras, querendo melhorar seu status social tornando-se concubinas dos brancos, utilizavam também filtros de amor. Os próprios senhores de engenho e fazendeiros, no declinar da existência, esgotados pelos excessos amorosos de sua desenfreada poligamia, pediam muitas vezes aos negros de suas roças, que conheciam o segredo das ervas, afrodisíacos que lhes despertassem os sentidos. Isto posto, não deixa de ser verdade que a virtude das ervas não é virtude mágica e sim força de natureza religiosa e que o babalosaim, mesmo se nalgumas circunstancias tende para a feitiçaria, não é feiticeiro, é sacerdote, e é como sacerdote que vamos estudá-lo. Todos os autores que, pouco ou muito, se ocuparam com o culto de Ossaim, estão de acordo em reconhecer sua importância. Artur Ramos (1903-1949) observa, por exemplo, que na África os sacerdotes desta divindade fazem parte da primeira categoria sacerdotal ao lado dos babalaô, bem acima dos sacerdotes dos outros Orixá. Manoel Victorino dos Santos, na conferência que fez" no Congresso Afro-Brasileiro da Bahia, onde falou em nome dos membros dos candomblé, declarou: "todas as ervas são mágicas", querendo dizer com isto que todas elas têm uma virtude cujo conhecimento é indispensável na conduta dos candomblé. Quando Henri Georges Clouzot (1907-1977) firma um pacto com um babalorixá a fim de poder assistir às cerimônias de iniciação, deve em contraposição "não procurar desvendar o segredo das ervas". E já citei várias vezes a frase de um de meus informantes: "Todo o segredo do candomblé reside em suas ervas". Se algumas divindades, como Xangô de Ouro, não descem mais hoje, é porque as ervas que lhes permitiam se encarnar na cabeça dos fiéis não são mais encontradas. Dispomos, infelizmente, de poucas informações a respeito, justamente porque estamos tocando no "segredo" do candomblé; os sacerdotes se calam quando a questão é abordada. Faltam-nos informações circunstanciadas até sobre o que é "público" no culto de Ossaim, pois os africanistas, não sei porque razão, nunca mostraram muito interesse pela curiosa figura desse deus. E quando falam a seu respeito, os textos, além de muito curtos, contêm erros que os tornam inteiramente inutilizáveis. Artur Ramos, por exemplo, apresenta numa das fotografias a insígnia de Ossaim (um ferro com um dos lados pontudo para poder ser fincado na terra, e que traz na outra ponta um passarinho cercado de sete ramos) como sendo a de Exú, levado a esse engano sem dúvida pela designação de Exú como "Exú dos sete caminhos". Manuel Querino (1851-1923) aproxima Ossaim, que escreve "Ossonhe", de um espírito ameríndio, o Caipora, porque tanto um como o outro não têm senão uma perna. Nada há a reparar se se trata apenas de simples comparação entre duas mitologias; mas se Manuel Querino quer dar a entender que os negros adotaram o mito do Caipora, então o erro é manifesto. Ou mais exa-tamente, a identificação das duas divindades pernetas não tem lugar senão nos candomblés bantos, é desconhecida nos candomblés yoruba. Compreende-se certamente que os não iniciados possam confundir duas divindades que apresentam certo número de caracteres comuns. Mas se Ossaim não tem senão uma perna, não é devido a uma corrupção e assimilação com o Caipora; é simplesmente porque incorreu um dia na cólera de Xangô e, no decorrer da luta, perdeu uma perna (em Cuba, além disso, perdeu também um olho e um braço). Os autores que citam Ossaim interpretam-no como o deus da medicina; não é errado, mas a medicina não constitui senão um dos atributos desta divindade. Como já dissemos, ele preside a todos os rituais em que o emprego das ervas é indispensável - iniciação, banhos de purificação, etc. - e portanto seria melhor encará-lo como o dono das ervas e das plantas, a divindade da vegetação, antes do que da medicina. Como lfa, Ossaim também não se encarna. Seu sacerdote, babalosaim ou olosaim, da mesma forma que o babalaô, não conhece o transe; é antes de tudo aquele que se encarrega da colheita das ervas. Mas as ervas não são colhidas em qualquer lugar e de qualquer jeito, e este é ainda um dos elementos que distingue o babalosaim do simples curandeiro. Manuel Querino faz rápida referência a este ritual da colheita quando fala nas cerimônias de iniciação: "Uma pessoa entendida e de confiança", escreve ele (na realidade, trata-se do nosso babalosaim), "que esteja limpa de corpo", (isto é, que não entreteve relações sexuais na noite anterior), ''se dirige ao local levando oubi e pimenta da Costa na boca, mastiga-os e assim triturados, atira-os sobre a vegetação do campo; depois, dança, canta e coloca no chão qualquer quantia em dinheiro". A descrição permanece válida, mas precisa ser completada. Em primeiro lugar, as plantas encontradas no mato podem existir no quintal da casa, ou no jardim, mas assim domesticadas não apresentam valor algum. É preciso ir buscá-las no mato mesmo. Há oposição entre o mundo da cultura, de um lado, e o mundo selvagem, do outro. Ossaim não se aventura nos lugares em que o homem cultivou a terra e construiu casas, nos lugares em que disciplinou a natureza. É o deus do mato, e não das plantas cultivadas. Em segundo lugar, o babalosaim penetra no reino de Ossaim mastigando um obi (e talvez também pimenta); chegando ao seu domínio, volta-se sucessivamente para cada um dos quatro pontos cardeais e cospe nestas quatro direções o obi mastigado. Delimita assim, de certo modo, o espaço sagrado em que vai evoluir. Penetrando no mato, começa a cantar e não deixará de cantar enquanto não tiver saído; mesmo ao cortar um ramo de árvore, um cipó, ao arrancar ervas ou desenterrar uma planta, não pode interromper o canto. Pois, como veremos, embora Ossaim reine sobre todas as ervas, isto não impede que estas se classifiquem em categorias e que as diversas categorias estejam ligadas aos dife- . rentes Orixá. Conseguimos recolher num terreiro do Recife alguns desses cantos especiais, chamados "cantos , para tirar os axé da floresta". Todos obedecem a uma forma simples e monótona; são compostos de dois versos que indicam a divindade ligada à planta que se vai colher, seguidos de um terceiro verso sempre idêntico: tratarei (ou tirarei) o meu axé. Para as plantas de Ogun, por exemplo: Axé di Ogum niká di Ogun panà eu arei meu axé. E para as de Omolú: Axé di Omulú ornam di Omulú obetam eu arei meu axé ... etc. Não é somente num lugar determinado, consagrado - o mato selvagem - que as ervas devem ser colhidas. É preciso ainda colhê-las em horas determinadas: Com efeito, cada uma delas só pode ser colhida em certos dias ou certas noites, em certas horas do dia ou da noite. Algumas devem ser colhidas de madrugada, quando o sol começa a branquear o horizonte; outras devem ser arrancadas à meia-noite. Muitas devem ser colhidas na lua nova, enquanto outras só têm virtude se procuradas na lua cheia, e algumas delas em noites sem lua. E, do mesmo modo que os Orixá têm, cada um, um dia da semana, parece que há igualmente dias determinados para a colheita desta ou daquela planta; mas esse ponto não ficou bem esclarecido em minhas palestras com os babalosaim.  Finalmente, é preciso pedir a permissão de Ossaim para a colheita, e pagá-lo. Eis porque são deixadas junto à planta cortada algumas moedinhas ou um pedaço de fumo de corda. Para cortar o ramo, o cipó, o galho enfolhado, é utilizada uma faca especial, o obé. Ainda aqui encontramos certos enganos nas informações publicadas. Barbosa Rodrigues designa a faca de Ossaim com o nome de abébé, em lugar de obé. O abébé é um leque com o qual as divindades da água - Yemanjá ou Oxun - gostam de se divertir, e nunca uma faca. O babalosaim não se limita a colher as ervas, encarrega-se ainda de seu preparo. No entanto, enquanto dispomos para Cuba ou Haiti de boas descrições de como são confeccionados os "pacotes”, no Brasil nada sabemos a respeito. A única informação que possuímos é de que os cânticos dos axé também são entoados no interior dos santuários, que as filhas de santo entoam o cântico da planta e da divindade correspondentes, à qual pertencem; por exemplo, as filhas de Ogun cantam o cântico do axe de Ogun, as de Yemanjá o do axé de Yemanjá, etc.; e o coro de todas as filhas de santo reunidas responde em uníssono: Axé biu axé meu axé mio. Estas informações parecem indicar que o preparo das plantas dá lugar no Brasil, como nas outras partes da América negra, a cerimônias especiais. Mas não sabemos nem mesmo se esta preparação se faz ou não no pegi especial de Ossaim, pois Ossaim é "santo do ar livre". A planta de candomblé que apresentamos mostra bem para a Bahia este pegi separado dos outros, em pleno campo. No Recife e em Porto Alegre, Ossaim (ou Ossanhe) me foi sempre indicado como uma das três principais divindades obrigatoriamente adoradas fora da casa principal; as outras duas são Exú (ou Bara) e Oxossi (ou Ode). Um de nossos informantes sublinhava que, para preparar os banhos e as lavagens, é preciso quede a erva esteja viva. Eis porque, ajuntava, a dos ervanários não pode servir, ela perdeu a força ... vendem-na "seca". É preciso também esfregá-la, espremê-la, triturá-la com as mãos, e não com um pilão ou outro instrumento; é preciso quebrá-la viva entre os dedos. Página 161. Livro O Candomblé da Bahia Rito Nagô. Abraço. Davi

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