Xintoismo. Xintoismo - bushidor. XINTOÍSMO. Parte I. Mitologia e influência na formação da cultura e do caráter do povo japonês. Introdução. A concepção do xintoísmo para o japonês era de si tão natural, genérica e vasta, que até a chegada do budismo no século VI, não tinha nome especificado. Quando se acharam diante de uma religião estrangeira, denominaram a nativa de Kannagara no michi1 ou Xintô, que significa caminho dos deuses. É difícil saber exatamente o que era o xintoísmo antes da chegada do budismo. Não era apenas a única religião; era o único modo como os antigos japoneses se relacionavam com o mundo, pois acreditavam profundamente que os deuses, os homens e a Natureza são nascidos dos mesmos ancestrais: não havia separação conceitual entre a Natureza e o homem. "Não havia denominação para a Natureza, como algo apartado e distinto do homem, algo que pudesse ser contemplado pelo homem" (Sakamaki Shunzo in MOORE, 1975, p. 24). Ou seja, não havia distinção entre sujeito e objeto, observador e observado. O homem era apenas parte de um todo, "intimamente associado e identificado com os elementos e as forças do mundo em seu redor" (idem). Fato que se nota pela importância das principais divindades, entre as milhares, associadas aos principais fenômenos da natureza: o nascimento, o crescimento, as transformações e a morte (ibidem p. 25). Essa estreita proximidade com a Natureza e elementos de seu entorno constitui-se na principal característica do Xintô (HERBERT, 1964, p. 17). Supõe-se que o modo como viam o mundo2 “era uma forte concepção intuitiva de uma profunda unidade subjacente, biológica e física ao mesmo tempo, entre todos os homens (mortos, vivos e não-nascidos), a Natureza e todas as entidades invisíveis ao homem, porém dignas de veneração” (HERBERT, 1977, p. 10). É, no dizer do professor Ono, "para os que veneram o kami, xintô é o nome coletivo de todas as crenças que compreendem a ideia do kami" (ONO, 1990, p. 3). Relacionando as três mais antigas correntes de pensamento que estão na gênese do pensamento japonês, teria dito o príncipe Shotoku , que difundiu o budismo no Japão: “O Xintoísmo é a raiz e o tronco de uma grande árvore robusta e transbordante em inesgotável energia; o Confucionismo são os galhos e as folhas e o Budismo são as flores e frutos” (HERBERT, 1977, p. 11). Por dois ou mais milênios, junto com o budismo e o confucionismo, essa religião autóctone moldou o caráter desse povo. Origem Perde-se nas brumas do tempo a origem do xintoísmo. Supõe-se que o local onde os aldeões se reuniam, no centro ou na entrada da aldeia, foi considerado sagrado e marcou-se por um ponto característico, como um rochedo, uma caverna, uma montanha ou uma grande árvore (ROCHEDIEU, 1982, p. 67). Aí se debatiam os assuntos da aldeia e era também o local das festas. O marco passou então a ser venerado como sagrado, como um kami da aldeia (idem). Às vezes o local escolhido se dava em torno de alguma antiga família, talvez a pioneira da comunidade (ONO, op. cit., p. 27). Os santuários primitivos eram simples "altares ao ar livre, frequentemente esculpidos na rocha, sobre os quais se depositavam oferendas" (LITTLETON, 2002, p. 68). Não raro, em comunidades rurais, os santuários eram erigidos no interior de densas florestas, localização acessível apenas por gente da comunidade (ONO, op. cit., idem). É seguro então, afirmar-se que a adoração à Natureza se constituiu na fé primitiva do povo japonês, evidenciado pelos deuses de estreita relação a ela: deusa do sol, deus da lua, deus da montanha, deus do mar, deus do vento entre outros (HARADA, 1914, p. 30). Em tempos primevos, quando ainda não se construíam santuários, acreditava-se que as divindades moravam longe e faziam visitas em ocasiões especiais. Era então preparado um pequeno abrigo de nome himorogi, cercado por corda de palha e ao centro, um ramo de árvore. Cercava-se o espaço também com rochas (iwasaka) (Ueda Kenji in TAMARU et alii, 1996, p. 31). Por acreditar que as divindades aí passaram a habitar, os abrigos tomaram a forma de casas. Não apenas a morada, mas também o espaço no entorno foi então considerado sagrado. Por serem construídos em meio à Natureza, nas montanhas, perto de cachoeiras ou em ilhas isoladas, a própria Natureza era vista como símbolo da divindade (ibidem p. 32). Como local sagrado, na construção de santuários, são seguidos os princípios da simplicidade, pureza e harmonia com a Natureza (idem). Fontes do xintoísmo São os principais textos do xintoísmo: a) o Kojiki – escrito em 712, traz um relato das tradições conservadas oralmente até o ano 628; b) o Nihongi – escrito em 720, é cerca de duas vezes mais longo do que o Kojiki; é a continuação dos seus relatos até o ano 700; c) o Kogoshui, escrito em 807, fornece alguns detalhes ausentes nos dois escritos anteriores; d) o Sendai Kuji Hongi – escrito em dez volumes no final do IX século, relata a história do Japão da era dos deuses até o VII século; e) o Engi-shiki – promulgado em 967, embora um texto de administração governamental, contém os três textos do Norito, liturgia que se oferece aos Kami. (HERBERT 1977, p. 13-14) Teogonia – surgimento dos principais deuses do panteão xintoísta Lê-se na primeira seção do Kojiki: “os nomes dos Kami que tornaram-se no Alto Plano dos Céus (Takama-no-hara) no início do Céu e da Terra são Ame-nominaka-nushi-no-kami (Augusto mestre do Centro do Céu), em seguida Takamimusubi-no-kami (Augusto elevado Kami que produz), e depois Kami-musubi-no-kami (Divino Kami maravilhoso que produz)” (ibidem p. 18). Na última geração nascem Izanagi (Varão que convida) e Izanami (Varoa que convida) (ibidem p. 28). A estes, os deuses ordenam consolidar e fazer nascer a Terra, entregando-lhes uma lança celeste ornada de jóias (ibidem p. 37-38). De sobre a Ponte Flutuante Celestial (Ame-no-uki-hashi), agitam com sua lança flamejante as águas do oceano e de seus pingos se forma a ilha Onogoro, a primeira terra do Japão, que muitos autores relacionam à Ilha de Awaji (ibidem p. 38). Seu nome significa auto-condensado e é a única entidade que não provém da união sexual dos deuses (ibidem p. 40). Após construírem nesta ilha o Augusto Mastro Celestial e uma sala (ou palácio) de oito braças, ambos contornando o mastro, o homem pelo lado esquerdo e a mulher pelo direito, unem-se como homem e mulher. Porém, tendo Izanami tomado a iniciativa, a união não resultou em boas crias e refizeram a união, cabendo desta vez a iniciativa ao homem (HERBERT, 1965, p. 50-51). No Nihongi consta versão na qual a mulher toma a iniciativa e faz o contorno pelo lado esquerdo, atendendo ao que lhe diz o homem, e este contorna o pilar pelo lado direito (ibidem p. 51). A união fracassou pelo resultado e a refizeram, invertendo os lados e cabendo a iniciativa da palavra desta vez ao homem (ibidem p. 52). O Nihongi descreve que após o nascimento de Awaji e de Hiruko, Izanagi e Izanami produzem o mar, os rios, as montanhas, as árvores e as ervas. O Kojiki lista o nascimento de outros elementos da natureza, nascendo por último o deus do fogo Kagu Tsuchi (ibidem p. 64-65). Do parto, Izanami tem sua genitália queimada, adoece, morre e desce ao reino dos mortos. Izanagi mata então o filho Kagu-tsuchi cortando-lhe o pescoço e de seu cadáver, nascem os deuses da montanha (HERBERT 1977, p. 48-50). Izanagi não se conformando vai buscar Izanami e lhe é pedido que espere enquanto ela pediria autorização para o Kami de Yomi (divindade das Trevas). Mas Izanami se demora e impaciente, Izanagi busca pela amada; ao encontrá-la, Izanami já tendo se alimentado da comida dos mortos, encontra-se com o corpo já putrefato. Da cabeça, do peito, do ventre, da genitália, das mãos e dos pés de uma Izanami enfurecida saem então oito divindades, as deusas do Trovão (ibidem p. 50-51). Izanagi brande sua espada mas em vão. Estas, juntas com Izanami encolerizada perseguem Izanagi que lhes atira um ornato de cabeça preto que transformando-se em uva, é recolhido pelas divindades. Na fuga, desesperado, Izanagi atira três pêssegos às “horríveis mulheres de Yomi” e enquanto estas os comem, ele consegue escapar e fechar o reino dos mortos atrás de si, mas ouve a maldição de Izanami: "irei ao seu mundo todos os dias e trarei mil almas para o meu reino", ao que responde Izanagi: "e eu farei com que nasçam 1500 descendentes meus por dia" (ibidem p. 52,54). Esta maldição parece habitar ainda no inconsciente coletivo, representada quase sempre pela mulher como os seres terrificantes do mundo dos mortos. O homem é sempre a vítima aterrorizada. De fato, constitui tabu corrente para o japonês a invasão do mundo dos mortos, assim como a profanação do mundo dos kami, que pode resultar em algum mal, advertência que encontramos no provérbio "Sawaranu Kami ni tatarinashi" (não provém mal de kami que não é incomodado) (HARADA, op. cit., p. 46). Izanagi ao chegar ao reino dos vivos com as vestes esfarrapadas e putrefatas vai banhar-se no rio. Atribui-se a este fato o grande apreço do hábito do banho e a utilização da água em rituais de purificação xintoístas. Neste ato, de seu olho esquerdo nasce Amaterasu, a deusa do sol, de seu olho direito, Tsukiyomi, o deus da lua, e de seu nariz, nasce Susanowo, o deus dos mares (HERBERT, 1977, p. 56). É designado o reino dos Céus - Takama-no-hara - como habitação de Amaterasu, mas não se conformando com o reino dos mares que foi-lhe designado habitar, Susanowo vai de vez em quando ao reino da irmã e lhe faz algumas maldades como destruir os diques da plantação de arroz (ibidem p. 62). No texto do Kogoshui lêse que enquanto a deusa Amaterasu trabalhava nos seus arrozais, Susano-wo fincava estacas na plantação anunciando seu direito de propriedade, semeava campos já semeados ou abria-lhe os diques danificando a plantação de arroz (ibidem p. 72-73). Quando Susanowo atira um cavalo escanhoado na oficina de tear da irmã, que inspecionava o trabalho das tecedeiras, estas se assustam, se ferem gravemente nos teares e morrem (ibidem p.75). Amaterasu, decepcionada, se retira para uma caverna e o universo mergulha na mais completa escuridão. Os deuses encarregam a divindade Omoikane-no-kami (Aquele que Integra o Pensamento) para trazer Amaterasu de volta. Este manda fazer um espelho místico de oito lados e junto com um colar de pedras preciosas os põe numa árvore sakaki - trazida do Monte Kagu -, na entrada da caverna, dispondo na base, oferendas. O deus então “reúne aves que cantam longamente ao País da Eternidade, e lhes faz lançar um ao outro seu canto prolongado” (ibidem p. 77). A tradição representa este ato – o canto preparatório para a cerimônia de resgate da deusa Amaterasu – nos portais chamados torii, à entrada dos santuários, indicando o limite entre o sagrado e o profano. O torii, que significa poleiro de aves, é também construído em locais considerados sagrados. A deusa Ame-no-Uzume-no-mikoto sobe em cima de uma prancha que ressoa a seus pés e dança como se estivesse possuída por uma divindade pronunciando palavras divinamente inspiradas e descobre seus seios durante a dança (ibidem p. 84). A dança fez rir os oitocentos kami, o que atraiu a atenção de Amaterasu. Espiando levemente, surpreende-se com o riso das divindades e a alegria de Ame-no-uzume que lhe diz estarem todos contentes por haver ali um kami mais ilustre que Amaterasu (ibidem p. 86). Os deuses encarregados aproximam então o espelho da deusa Amaterasu que, surpresa, deixa pouco a pouco a entrada da caverna para contemplá-la. Os deuses rapidamente fecham a caverna e ali põem um shimenawa, uma corda de palha de arroz trançada, e o mundo volta a ter o brilho do sol. Os deuses decidem proibir então a entrada de Susanowo no reino enviando-o definitivamente para o reino de Izumo, expulsando-o do reino dos Céus. Em Izumo Susanowo encontra um casal de velhinhos chorando porque o monstro de oito cabeças e oito caudas, cujo corpo sanguinolento e flamejante de comprimento que se estende por oito vales e oito colinas, em cujas costas crescem musgos e árvores - uma grande serpente (ou dragão) chamada Yamata-no-Orochi - que já havia devorado sete de suas oito filhas, viria buscar a última (ibidem p. 93). Susanowo diz que matará o monstro e pede que providenciem então oito barris de saquê destilados oito vezes, postos em cada uma das oito plataformas atrás das oito portas (ibidem p. 94). Após algum tempo de espera, surge o gigante monstro aterrador que, atraído pelo cheiro da bebida feita de arroz fermentado, mergulha as oito cabeças nos oito barris, após passar pelas oito portas e bebendo o saquê, logo adormece e Susanowo decepa as oito cabeças com sua espada de oito palmos. Ao decepar também a cauda do monstro, danifica o corte da lâmina mas aí encontra uma grande espada cortante, conhecida como Kusanagi-no-tachi que posteriormente envia à deusa Amaterasu (idem). Ambas as espadas são veneradas em santuários. A primeira, chamada de Orochi-no-aramasa, que matou a serpente gigante é venerada no santuário Iso-no-kami-jingu na província de Nara e a outra, após breve passagem pelas mãos da deusa Amaterasu, (HERBERT, 1964, p. 243) é venerada no santuário Atsuta Jingu (HERBERT, 1977, p. 95). Os outros dois objetos sagrados, o espelho e o colar de pedras preciosas são venerados no santuário de Ise na província de Mie, o mais importante do xintoísmo (HERBERT, 1965, p. 109). A moça, de nome Kushinada, casa-se então com Susanowo e na sexta geração, nasce o deus Okuni-nushino-kami (Grande organizador e consolidador da Terra) (HERBERT, 1977, p. 95-96). O príncipe Ninigi, neto de Amaterasu, recebe dos ancestrais celestes os três tesouros sagrados: o espelho, a espada e as jóias, antes de partir para a Terra com a missão de consolidá-la (ibidem p. 124). Segundo o Kojiki, Amaterasu ao entregar o espelho diz ao príncipe Ninigi: "considera este Espelho exatamente como se fosse Nosso augusto Espírito e venera-o como se tu venerasse a Nós" (HERBERT, 1964, p. 234). Segundo Kitabatake, a deusa teria dito também ao neto: " ilumine o mundo inteiro com o brilho desse Espelho. Reine sobre o mundo pelo maravilhoso [poder de] dominação dessas Jóias. Triunfe sobre aqueles que não se submetem brandindo essa Divina Espada" (ibidem p. 245). Na Terra, Ninigi casa-se com a filha de O-yama-tsu-mi, Kono-hana-saku-yahime que dá à luz quatro ou cinco filhos (HERBERT, 1977, p. 126-127), um dos quais, de nome Hiko-ho-ho-demi casa-se com Toyo-tama-hime, que torna-se mãe de Ugayafukiya-aezu. Este, casando-se com Tama-yori-hime torna-se pai de Kamu Yamato no Iware-hiko, mais tarde conhecido como Jinmu Tennô, o primeiro imperador (HERBERT, 1964, p. 52) que funda o país em 11 de fevereiro de 660 a. C. (SIEFFERT, 1968, p. 13). Como não havia caminhos no país, a deusa Amaterasu envia ao imperador Jinmu um corvo de três patas de nome Yatagarasu como guia para penetração no interior do país (HERBERT, 1965, p. 217). Simbolismos O erudito Chikafusa Kitabatake (1292-1354) fala sobre o simbolismo dos três tesouros do xintoísmo: O espelho não possui nada que realmente lhe pertença, mas, sem desejos egoístas, reflete todas as coisas revelando as suas verdadeiras qualidades. Sua virtude reside na sua reação a essas qualidades, e como tal, ele representa a fonte de toda honestidade. A virtude das jóias reside na sua doçura e docilidade: são a fonte da compaixão. A virtude do sabre reside na sua força e determinação: é a fonte da sabedoria. A menos que o soberano reúna em si mesmo estas três virtudes, terá grande dificuldade em governar o país (apud in HERBERT,1964,p.248)(m.t.)3. O Espelho A tradição de não se materializar em formas visíveis as divindades, é revelada pela ausência de imagens ou ídolos como objetos de adoração nos santuários xintoístas (HARADA, op. cit., p. 45). O espelho não é propriamente objeto de adoração, mas "tipifica o coração humano que na sua pureza reflete a imagem da divindade"(idem). "O espelho limpo reflete as coisas tais quais são; simboliza a límpida mente do kami e ao mesmo tempo é considerado como a simbólica corporificação sagrada entre o fiel e o kami" (ONO, op. cit., p.23). No Jinno Shotoki, de 1339, explica Kitabatake: "O espelho é a fonte da honestidade porque ele tem a virtude de responder de acordo com a forma dos objetos. Ele aponta os desejos divinos da justiça e da imparcialidade." (idem) Em alguns santuários xintoístas, os fiéis quando querem reverenciar mais formalmente algo além da tradicional reverência na entrada dos santuários, são conduzidos pelo monge ao local sagrado onde está postado um espelho: sutil mensagem que convida o visitante à auto-reflexão (HARADA, op. cit., p. 45). Página 7. Abraço. Davi
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