segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

I. OS CAMINHOS DO TAO

 

Taoísmo. Texto do acadêmico Inty Scoss Mendoza. I. OS CAMINHOS DO TAO. O  conceito do “Tao”  é tão antigo quanto complexo e seria inviável trata-­lo  aqui em todas  as suas implicações para o pensamento filosófico, experiência religiosa e concepções  políticas  ao longo da história chinesa, portanto, me restrinjo ao enfoque de dois  autores  contemporâneos  de língua chinesa que buscaram traduzir –  não para as  línguas ocidentais, mas para o pensamento ocidental –  esse conceito amplo, profundo e misterioso (para utilizar-­me de alguns adjetivos frequentemente atribuídos a ele). São os autores: Zhang Dainian  张岱年 e Zhang Liwen  张立文. O  primeiro é um aclamado estudioso do pensamento chinês  do século XX na República Popular da China. Nasceu em 1909 e faleceu em 2004 tendo, portanto, vivido as transformações  intensas  que ocorreram naquele país no século passado. Filho de um erudito chinês do final da Dinastia Manchu e formado em Educação na Universidade de Beijing em 1933, quando, então, se tornou  professor assistente da área de filosofia da Universidade de Qinghua e professor titular no ano de 1951. Profundamente influenciado pelo irmão mais velho, Zhang Songnian, um professor de filosofia ocidental, entrou  em  contato com a Filosofia Analítica –Bertrand Russel (1872-1970), G. E. Moore (1873-1958) e Wittgenstein (1889-1951) – que se tornou um dos seus grandes referenciais teóricos. Um outro referencial teórico presente em sua obra, entretanto um pouco  controverso, é o marxismo. Tal questão é percebida no livro consultado para esse artigo:  “Os Tópicos da Filosofia Chinesa” [中国哲学大], considerado leitura obrigatória em  todos os cursos de filosofia chinesa da República Popular da China. Onde no prefácio da primeira edição, em 1937, Zhang Dainian faz uma breve menção ao método dialético quando descreve um dos objetivos do livro:  O enfoque no desenvolvimento histórico sempre será útil para definir as origens e a evolução (...); para compreender profundamente uma determinada linha de pensamento é preciso enxergar seu  percurso de desenvolvimento, buscar suas origens  e transformações. Poder­-se-­ia dizer que isso  significa utilizar o  método  dialético para analisar a filosofia chinesa (Zhang 1997, p.19). Entretanto, nas edições posteriores consta ainda uma “auto­crítica dos  estudos  anteriores da filosofia chinesa” escrita em 1957, onde Zhang Dainian aponta a falha teórica de não ter se apoiado solidamente no pensamento marxista: “Há vinte anos, quando  escrevi esse livro, não tinha ainda um conhecimento profundo do marxismo ­leninismo, por esse motivo, graves falhas não puderam ser evitadas”. As falhas  citadas  situam-­se na interpretação do campo conceitual que se cria na intersecção entre as noções  complexas do pensamento chinês e as categorias analíticas do pensamento ocidental, pois  esse autor buscou aplicar o citado método dialético (esforço acompanhado por toda uma geração de historiadores, filósofos e sociólogos chineses dos últimos 60 anos) e o método  analítico absorvido em suas  leituras da filosofia de língua inglesa, como recurso de traduzir a dimensão filosófico ­religiosa (para usar mais uma vez as categorias ocidentais) do povo chinês  em termos  em que se possa confrontar China e Ocidente no campo do  pensamento. Haveria, então uma interpretação marxista ­leninista e outras  não, e para sorte do leitor os  adendos  pós ­autocrítica de Zhang  Dainian são separados  do texto  original permitindo as múltiplas leituras de seu trabalho. O  segundo autor citado nesse artigo, que também  realiza essa aproximação  conceitual do Tao para categorias  do pensamento  ocidental, é Zhang Liwen, um  igualmente respeitado pesquisador da filosofia chinesa. Nascido em 1935, é professor das  áreas  de filosofia e religião chinesas  e diretor do Instituto Confúcio da Universidade Popular da China. Organizou  uma coleção intitulada “As  categorias  essenciais  da filosofia chinesa” [中国哲学范畴精粹丛书], onde há um tomo específico para o Tao. No prefácio dessa obra, de 1987, Zhang Liwen descreve o contexto em que um  esforço teórico dessa natureza se inscreve:  Em tempos idos, muitos grandes pensadores empreenderam uma reflexão histórica sobre a cultura tradicional chinesa. Olhando para a história chinesa nesses últimos  cem anos vemos a invasão das nações poderosas e a emergência de toda a sorte de calamidades  em nosso país. Um grupo de homens corajosos  e benevolentes, preocupados com o povo e a nação, não mediram esforços em buscar a verdade no  Ocidente, enquanto as nações do ocidente irromperam na sociedade chinesa com o  uso da força militar e religiosa. Isso gerou os conflitos entre “pensamento chinês” e “pensamento ocidental”, “pensamento antigo” e “pensamento moderno”, ou  ainda as noções de “base chinesa e aplicação ocidental”. [中体西用] ou “ocidentalização  completa”. Apesar da discussão ter sido acirrada, não conseguiu resolver a séria questão de acudir o povo e fortalecer a China. Os ecos desse debate permanecem  até os dias de hoje. (Zhang L. org 1996, p.I). Como fica claro no posicionamento desses  dois  autores, o empreendimento de análise dos  conceitos  chineses  com categorias  do pensamento filosófico ocidental tem  para a China dos séculos XX e XXI claras conotações político ­ideológicas, entretanto não  é a intenção desse artigo enfocar tais  questões, me restringindo aqui às  contribuições  desses autores na aproximação desses dois pensamentos, e, como ocidental, busco nesses  pensadores chineses interlocutores que estejam nessa mesma orientação, China ­Ocidente, mesmo que em sentidos  contrários. Considero esse um movimento fundamental nos  tempos  atuais, não como mero exercício de comparação, mas  principalmente como um  esclarecedor jogo de espelhos  em que se ver refletido no reflexo do outro descortina os  limites do próprio pensamento. Perceber a triunfante “razão ocidental” em apuros ao lidar com conceitos  que teimam em não se tornar “analisáveis”, mas  que, mesmo assim se diferenciam no momento em que adentram o cenário  de suas  múltiplas  aplicações, diz  muito a respeito das nossas – e dos autores citados aqui – mais íntimas convicções. Apresentarei aqui de forma sucinta os oito significados atribuídos historicamente ao termo Tao, com base na síntese de Zhang Liwen contida no início do livro que analisa a presença e o desenvolvimento desse conceito na história chinesa, pontuando com  algumas contribuições da estrutura conceitual proposta por Zhang Dainian. TAO COMO O CAMINHO  –  为道路. O  significado primeiro da palavra chinesa “Dao”  se relaciona à noção de caminho. Na escrita oracular, a mais antiga encontrada em sítios arqueológicos e que eram  gravadas  em cascos  de tartaruga ou  ossos  de animais, 6. 甲骨文 datados  da Dinastia Shang (1046 AC ao século XVII), não se encontra tal ideograma, mas um outro – Tu   – para indicar “caminho”. A forma primitiva do ideograma “Dao” surge na fase seguinte do  desenvolvimento da escrita, aquela encontrada em peças de bronze (jinwen  金文) – sinos  e caldeirões rituais  –  e que datam da dinastia Zhou (ou Chou, de 1046  e 256  a.C.). O  ideograma “Dao”  seria formado por três  outros  ideogramas:  shou, xing,  zhi. O primeiro tem uma gama maior de sentidos, podendo ser traduzida nos seus usos no  chinês moderno como: cabeça, líder, “o que vai à frente”. O segundo tem o significado de “trilhar”, e o terceiro é: parar, fincar, enraizar, ou  por extensão “pé”. Algumas  fontes  associam somente as duas primeiras partes na formação do ideograma “Dao” (“cabeça” e “trilhar”, ou seja, a fusão de sabedoria e prática), no entanto a junção desses três sentidos  oferece mais subsídios para compreender o Tao como Caminho. O Shuowen  Jiezi  说文解字, o primeiro dicionário etimológico dos  ideogramas  chineses, escrito entre 100  e 121, apresenta as seguintes  definições  para tais  componentes  do Tao: “Shou  , a realização (meta) da ação (trajeto)”;  “Xing  , o  caminhar do ser humano”; “Zhi  , fincar-­se, como as plantas que brotam a partir de um  local, por isso zhi é a base (pé)”. A definição do Tao contida nesse dicionário é uma síntese desses três ideogramas originais: “uma meta (ou ‘atingir’ uma meta, ou destino, ou  ainda ‘realização’) é o Tao” [ 一达谓之道] (Zhang L. org. 1996, pp. 19 e 20). Portanto, a primeira característica do Tao como Caminho é ter um sentido, um destino determinado e é justamente esse caráter de determinação que passou a ser desenvolvido nos sistemas de pensamento anteriores à unificação do primeiro Imperador da dinastia Qin   (221 AC 207)) como uma ideia de princípio universal ao qual todas as coisas estão sujeitas, ou seja, um sentido inelutável. Essas filosofias  pré ­Qin são as  grandes  escolas  de pensamento  chinês, como Confucionismo, Taoísmo, Moísmo e o Legismo. O  Tao é, portanto, nesse primeiro significado apontado por Zhang Liwen, um curso trilhado pelos pés humanos  e que tem uma meta ou uma realização definida. Tal realização está para a trajetória assim  como a cabeça está para o resto do corpo: é a sua orientação. Contudo, antes  do surgimento desse significado filosófico para “Caminho”, o  ideograma “Dao” já aparecia em alguns dos clássicos mais antigos da história chinesa –  como “Livro da Poesia” [诗经] (as partes mais antigas datam de cerca de 1000 AC), ou  no “Livro das Mutações” [] (o Zhou Yi, uma das seções dessa obra, dataria do início  dinastia Zhou, 1046 AC) –  com o significado de “caminho” e “curso”, sem maiores  implicações  metafísicas, ao  menos  não explicitamente como em clássicos  e textos  filosóficos de períodos posteriores (Zhang L.org 1996 pp. 19 e 20). Poder-­se-­ia contestar o caráter estritamente objetivo deste significado do “Tao como Caminho”  pois  esses  mesmos  clássicos  (‘Poesia’ e ‘Mutações’) são a fontes  de inspiração das  mais  sutis  metafísicas. TAO COMO A RAIZ E ORIGEM DE TODAS AS COISAS.  为万物之本体或本原. É tributada ao sábio Lao ­Tsé 老子 (‘Laozi’  na transliteração oficial) a nomeação  do princípio que rege o Universo. Nada mais estaria acima desse princípio, nenhuma outra manifestação poderia ser concebida fora dele, e de tão intangível, ele não poderia ter um  nome. Explicá-­lo seria não entende-­lo, busca-­lo seria perde-­lo. Entretanto, lá está ele  “isolado!”, “eclipsado!”, “ofuscante!”, “escondido!” (Tao Te King  – Dao de jing, cap. 21). 8 . “Eu não sei seu  nome;  dou-­lhe a grafia:   (Dao)” (cap. 25). Essa foi uma ‘nomeação’ tão fundamental para o pensamento chinês que surge a partir dela uma longa tradição que a carrega: o Taoísmo. Contudo, tal nomeação se apoia em determinados  conceitos  que a tornam mais  complexa –  se é que isso é possível  –  que um nome acidental para uma dimensão  intangível. Lao ­Tsé divide em sua definição do Tao duas  questões fundamentais: o que pode ser dito ou descrito e o que é permanente, constante ou eterno. A eternidade aqui se relaciona ao ordinário, ao simples, ao que está tão constantemente presente que sequer percebe-se sua existência, diferentemente das descrições humanas, do domínio da palavra. As duas frases iniciais do Tao Te King são categóricas nesse sentido:  “O Tao que pode ser manifesto (explicado), não é o Tao eterno. O Nome que pode ser nomeado, não é o nome eterno” (Cap. 1). Portanto, a metafísica aqui é o que está além da palavra, o que remete a uma intensa discussão da época em que a relação entre os  nomes  e a realidade lançava os  pensadores  em todas as direções possíveis desse dilema. Aqui se expressa a visão que o  nome não alcança a realidade última, sequer alcança a realidade última do próprio nome  enquanto tal. Uma observação em relação à língua chinesa se faz importante para uma maior aproximação do campo onde esses  conceitos  estão postos: não há, principalmente no chinês clássico, distinção entre verbo, substantivo ou adjetivo na própria palavra, isto é, não há ao nível da forma – morfológico – qualquer flexão que indique sua classe, sendo  essa entendida, portanto, como uma função e ficando ao encargo do contexto a sua interpretação. Um exemplo é o ideograma traduzido como “meta”, “destino”, na seção  anterior: da  . Em determinados  contextos  ele pode assumir o sentido de “atingir”, “alcançar”, ou seja, a ação de chegar ao objetivo. Em outros, é o “alcançado”. Ou pode ainda assumir o caráter do que foi realizado, sendo então um distintivo de uma virtude  “realizada”, por exemplo. No pensamento, tal característica da língua chinesa torna esse dilema “nominalista ­realista” diferente de um esforço de descrever ou estabelecer uma definição  da realidade, pois como a proposição chinesa “nome realidade” coloca de maneira clara, se trata aqui de encontrar o nome verdadeiro e, portanto, “ouvir” a realidade das coisas. Tais nomes sintetizam dentro de si as dimensões de substância, de atributos e de ação e, sendo indivisíveis, constituem o que, em nosso sistema de pensamento, reconheceríamos  como o “Ser”. Isso falaria da raiz, da estrutura primeira (ou última) das coisas, conceitos  esses  que são uma tradução aproximada da expressão chinesa benti 本体 contida no  título dessa seção. No jogo de espelhos das  traduções  do pensamento da China para o  Ocidente e vice-­versa, encontramos um interessante reflexo, pois, quando se buscou uma tradução do termo “ontologia” para o chinês, escolheu­-se justamente essa expressão benti para o “óntos” grego. É  possível que os  taoístas  não se reconheçam nesse espelho  “ontológico” ou os aristotélicos nesse espelho “bentilógico”. Zhang Dainian conceitua essa dimensão da estrutura radical das coisas através da ideia de leis que as regem. Dada a multiplicidade de fenômenos, algo que o pensamento chinês procurou regular em suas  cosmovisões, haveria então uma multiplicidade de leis  para regê-­las. A questão seria: qual é a Lei que rege essa multiplicidade de leis? Esse seria o  caráter do Tao de Lao ­Tsé, ou seja, é um princípio unificador que não poderia ser abordado  no nível da diversidade da palavra e das nomeações humanas (Zhang D. 1997, p.20). O surgimento de algo depende de uma lei, sem a qual tal existência seria impossível. Ora, as leis  que regem cada coisa, não são independentes  umas das  outras. Todas essas leis se remetem a uma unidade, isto é, estão unidas em uma lei mais radical. As  leis, portanto, seguem uma grande lei, última e Universal, e sendo partilhada por todas as  coisas, é única e não­ dual, eterna e imutável, e poderia ser chamada de: Lei Geral. TAO COMO UM.  为一 Em concepções desenvolvidas nos períodos posteriores à “nomeação” do Tao por Lao­ Tsé os  pensadores  chineses  iniciaram um longo percurso de descrição do que seria esse nomeado inominável. A definição do “Tao como Um” surge em dois  tratados  influenciados pelo pensamento de Lao ­Tsé no início da dinastia Han (206 AC 220):  Lüshi Chungqiu 吕氏春秋 e Huainanwang shu  淮南王, e que tomaram como base uma passagem do Tao Te King: “O TAO GERA O UM, O UM GERA O DOIS, O DOIS GERA O TRÊS, O TRÊS GERA TODAS AS COISAS.” (cap. 42). Em ambos os tratados o Tao passa a ser definido  como Tai yi [太一], o “SUPREMO UM”, um estado indiferenciado anterior ao surgimento de todas as coisas. Esse ponto inicial, o caos original, seria o Um de onde são gerados o Céu  e a Terra (o Dois), e então os três princípios de YIN , YANG , e CHONGQI  [] (o  sopro circulante, o princípio dinâmico), e então todas as coisas (Zhang D. 1997 p. 21). Tal enfoque prioriza a visão da gênese do Universo, que, segundo Zhang Dainian, não seria fiel à colocação original de Lao ­Tsé em termos da ordem dessa criação:  No Lüshi Chunqiu  o “Supremo” e o “Um” foram unidos  em um nome próprio, sendo uma outra denominação para o Tao: “O Tao é suma essência, não tem forma, não pode ser nomeado, se forçado a nomeá-­lo o chamaria de “SUPREMO UM’”. Em  Huainanwang shu, o “UM” é ainda mais  claramente utilizado como um pronome  para o Tao: “O UM é a raiz das dez mil coisas, não é outro senão o Tao”, o que não  está em harmonia com colocação de Lao­ Tsé: “O  Tao gera o Um”. (idem p. 22, grifo meu) Um dos tratados citados, o Huainanwang shu, altera inclusive a frase original de Lao­ Tsé ao dizer que: “O Tao inicia com o Um” (Zhang L. org 1996, p.2). Tal questão  aponta para um dos  mais  pungentes  dilemas  do pensamento chinês: a raiz de todas  as  coisas é existente ou não­ existente, ou seja, vazia. É curioso que em Lao­ Tsé essa questão  é posta em termos  de não contradição, pois  o Tao está além da existência e da não­ existência, sendo ambas apenas faces dessa raiz primeira, inominada e indefinível. Apesar disso o fato de se estabelecer uma hierarquia metafísica aparentemente abriu espaço para pensar o que é isso que está além da existência e da não ­existência. Uma das opções  filosóficas na história da China foi afirmar uma existência não­ material e impossível de ser percebida pelo sentidos, um caldo original de onde todas as coisas emergiram a uma existência definida, chamado: “SUPREMO UM”. Referências bibliográficas: LAO ­TSÉ. Os escritos do Curso e sua Virtude. São Paulo: Mandruvá, 1997. ZHANG, Dainian. 中国哲学大  Os  tópicos  da Filosofia Chinesa. Beijing: Academia Chinesa de Ciências Sociais, 1997. ZHANG, Liwen.  Dao. Beijing: Universidade Popular da China, 1996. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – SP – Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário