Fraternidade Rosa
Cruz. www.fraternidaderosacruz.org. Livreto
Introdutório aos Ensinamentos da Sabedoria Ocidental. Por Antônio de Macedo.
APÓSTOLO PAULO – O INICIADO. Esta mística inserção dum veio comum tradicional
tem levado certos estudiosos a pensar que os Mistérios cristãos se inspiraram
formalmente nos mistérios do mundo antigo: A acrescentar às tradições do Antigo
Testamento e respectiva liturgia sinagogal, as tradições dos cultos mistéricos
helenísticos também foram absorvidas e reinterpretadas segundo fórmulas
cristãs. Assim, dentre as tradições tomadas das religiões mistéricas contam-se por
exemplo: a disciplina arcana com a distinção entre os verdadeiros mystai (os
iniciados nos segredos da fé cristã) a quem era permitido participar no serviço
esotérico (isto é, a Eucaristia), e os catecúmenos; a introdução de hinos
cantados cuja forma dependia do estilo melódico dos hinos mistéricos (além dos
Salmos judeus); a manutenção do antigo gesto de mãos erguidas durante a
epiclese sacramental que invoca a infusão do Espírito Santo no pão e no vinho
no momento da consagração; e muitos outros. Chegado a este patamar peço licença
para fazer uma pausa. Talvez não seja má ideia, depois de tantas vezes ter
falado em «mistério» e «mistérios», determo-nos um pouco para tentar descobrir
o que se esconde por trás de tais palavras, e digo bem, palavras, e não apenas
uma palavra só usada umas vezes no plural, outras no singular. Mais do que um
ideólogo do saudosismo e um filósofo da estética e da simbólica, Afonso Botelho
(1919-1996) questiona-se com frequência, nos seus escritos, acerca das origens
e dos arquétipos, e deixa-nos uma primeira observação, límpida e motivadora,
sobre a distinção singular plural a que acabo de me referir: (…). O essencial
do mistério cristão, para além da separação intransponível da natureza dos dois
mundos, está na oferta cativante de uma via para a transpor. (…). Inversa é a
configuração do mistério ou dos mistérios gregos. Verdadeiramente, só existem
mistérios e não mistério na Grécia, só existem atos de um ritual secreto
praticados pelos mystai. O mistério como caminho entre dois mundos naturalmente
incomunicáveis só depois da Encarnação do Homem-Deus, só depois de Cristo, se
completa. Recuando no tempo, e incorrendo embora no pecado de aqui repetir
enxutamente o que vem em diversos livros e dicionários, começarei por
esclarecer ao leitor menos lidado nestas porfias que a palavra mistério tem a
sua origem primeira na raiz mu-, ou my- (em grego mu), donde derivam dois
verbos: mueô , que significa iniciar, sagrar, instruir, e muô, que significa
fechar a boca ou os olhos, guardar silêncio. Da mesma raiz deriva o latim
mutus, mudo, e o grego muthos ou mythos, o que nos ensina que o silêncio se
associa ao mito, tal como silenciosa deverá ser a Iniciação menor, muêsis, que
se completa pela Iniciação maior, teletê, sendo que esta última deriva do verbo
teleô, que significa simultaneamente «concluir» e «iniciar», ou seja, «iniciar
nos mais altos Mistérios», ou nos Mistérios de plenitude ou de perfeição. O
mais alto grau de Iniciação também se chamava epopteia, já notaremos adiante
porquê. Avançando um pouco mais no mesmo terreno, observamos assim que os
mistérios (ta mystêria) são por conseguinte a teoria de ritos (ta drômena,
“actos”) que conduzem iniciaticamente do silêncio à perfeição, e isto tanto no
Egito antigo como na Pérsia ou na Grécia. O iniciado tem acesso, por secretos
cultos, a regiões — ou melhor: a níveis de ser — inexprimíveis ou inefáveis , o
que em grego se dizia arrhêta, que por sua própria natureza indizível se tornam
naturalmente incomunicáveis, não por qualquer imposição ou obrigação externa de
«manter segredo, mas porque o iniciado ao atingir o cerne do sagrado atinge o
«inefável», e faltam-lhe meios de expressão adequados para comunicar ao mundo
profano o que, na linguagem e segundo a razão desse mundo, seria incompreensível,
e sobretudo porque a Iniciação não é uma cerimónia externa, mas, nunca será
demais repeti-lo, uma experiência interna. Em todos os mistérios da Antiguidade
(Isíacos, Mitríacos, Órficos, Eleusinos, etc.) vigorava a lei dos três graus,
que remonta aos tempos miticamente Atlantes e do seu símbolo sacerdotal, o
enigmático Tabernáculo no Deserto, configurado no Templo de Salomão pela
confraria de «construtores de Templos» regulada por Hiram, símbolo que se
prolonga pelos Collegia Fabrorum romanos e medievais e teve o seu apogeu na
Ordem de Construtores e Arquitetos (Ordem Maçónica), que foi a escola dos
construtores de templos góticos contemporâneos dos Templários. Esses três graus
eram, para os mistérios antigos: postulante (o exô, o de fora), neófito ou misto
(mystês, plural mystai), e epopta (epoptês, plural epoptai). Ou seja, mediante
o rito que lhe proporciona o arrebatamento ao mundo sensível (ekstasis), o
postulante torna-se um neófito ou antes um misto, ou aquele que ainda tem os
olhos fechados, para se converter finalmente em epopta — da raiz ops, «olho» —,
ou aquele que vê as coisas tais quais são. Do mesmo modo se distinguem os graus
dos Iniciadores: o dos mystai será o mystagogos, para a Iniciação menor
(muêsis), enquanto o dos epoptai é o telestês, para a Iniciação maior (teletê,
ou epopteia como dissemos acima). Desde relativamente cedo se começou a
observar nas primitivas comunidades cristãs uma graduação igualmente
tripartida, tanto nas fases eclesiais atinentes ao culto externo como na fase interna,
mais elevada e menos visível. Na fase externa encontramos as seguintes
gradações, se assim se po dem chamar: o catecúmeno (katêchoumenos), o batizado
ou neófito (neophytos — 1 Timóteo 3, 6), e o presbítero (presbyteros) ou bispo
(episkopos, equipolente a epoptês). Os presbíteros podiam transmitir dons
espirituais (charismata) por imposição das mãos (meta epitheseôs tôn cheirôn),
conforme lemos no epistolário do Novo Testamento (1 Timóteo 4, 14; 2 Timóteo 1,
6). O catecúmeno era o equivalente a postulante, recebia instrução religiosa
durante três anos a fim de se preparar para o baptismo e podia assistir a
certos ritos do culto. Por sua vez, o presbítero ou bispo (parece que
inicialmente ambas as palavras designavam a mesma função) contava com um grau intermédio,
o diácono, para o auxiliar sacerdotalmente no seu ministério —, se bem que a
palavra diakonos, então, assumisse por vezes o sentido mais amplo de «servidor»
(lat. minister) que se poderia aplicar aos sacerdotes, ou ao ministério
sagrado, duma forma geral. Está, portanto, a fase formal — externa. Por sua vez
os Mistérios cristãos constituem a fase oculta — mais elevada e interna. Dela
trataremos, um pouco mais detalhadamente, na segunda e na terceira partes deste
livro. Que sempre existiu um esoterismo cristão é indiscutível, embora a Igreja
católica se esforce por desmenti-lo, sobrevalorizando o lado exotérico da
catequese e da liturgia. Não há que negar a legitimidade do formalismo
exotérico da religião cristã, pelo contrário: se bem que as bases iniciais
sejam, tudo atesta, esotéricas, a formulação exotérica da doutrina torna-se
indispensável para que a chama da respectiva linhagem tradicional não se
extinga no mundo — paradoxo que, sendo impossível de se tornear, acarreta
consigo um pesado ónus, pois essa formulação exotérica acaba por se constituir,
praticamente, na sua única “verdade oficial”. Certas confusões são perniciosas
e devemos a todo o custo areá-las e esclarece-las: sem dúvida que falar-se em
Cristianismo esotérico, não sendo, em rigor, um erro, pode induzir em erro,
porque o Cristianismo em si não é exclusivamente esotérico, é uma religião dada
por Cristo para a salvação de todos e comunicável a todos. O que não significa,
porém, que não exista um «esoterismo cristão», acessível apenas aos que queiram
aprofundar os mistérios do Reino de Deus, como refere Orígenes de Alexandria
(184-253) no seu livro Contra Celsum. O próprio Jesus fazia a distinção entre o
que podia transmitir às multidões e o que reservava aos discípulos, a quem dizia:
“A vós deu-vos a conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não lhes
foi dado” (Mateus 13, 11). No passo paralelo do Evangelho de Marcos, Jesus
define claramente quem são aqueles a quem tal não é dado: “Aos de fora [gr.
tois exô] tudo se lhes dá em parábolas, a fim de que olhando, olhem e não
vejam, e ouvindo, ouçam e não entendam, não suceda que se convertam e se
libertem” (Marcos 4, 11-12). Os de fora (oi exô), são os profanos ou ainda só
postulantes, isto é, os que ficam “fora do Templo” e a quem, portanto, apenas
se lhes podem ministrar instruções exotéricas. Paulo dizia o mesmo por outras
palavras: «E eu, irmãos, não pude falar-vos como a espirituais, mas como a
carnais, como a meninos em Cristo. Leite vos dei a beber, não comida sólida,
pois ainda não éreis capazes» (1 Coríntios 3, 1-2). Alguns mais radicais, como
René Guénon (1886-1951), vão mais longe e pensam que as verdadeiras origens do
Cristianismo — e sobre as quais o Novo Testamento, na forma como chegou até
nós, é esclarecedor sem ser claro — teriam sido de facto esotéricas, mas não na
linha de Annie Besant (1847-1933), cuidado!, e que a divulgação generalizada
constituiria um fenómeno posterior: Será provavelmente impossível determinar o
momento preciso em que o Cristianismo se transformou numa religião no sentido
próprio do termo bem como numa forma tradicional destinada a toda a gente, sem
distinção. Seja como for tratava-se dum fato consumado na época de Constantino
e do Concílio de Niceia, de tal sorte que este não fez mais do que «sancioná-lo»,
por assim dizer, inaugurando a era das formulações «dogmáticas» destinadas a
constituir uma apresentação puramente exotérica da doutrina. (…). É pois
evidente que a natureza do Cristianismo original, sendo essencialmente
esotérica e iniciática, devia permanecer completamente ignorada por parte
daqueles que passaram a ser admitidos no Cristianismo agora exotérico; por
conseguinte, tudo quanto pudesse evidenciar ou sequer sugerir o que tinha sido
realmente o Cristianismo nas suas origens deveria ser recoberto, aos olhos
daqueles, por um véu impenetrável. Sobre a existência de Mistérios cristãos
testificam-nos alguns autores antigos, de forma mais ou menos translúcida
dentro dos limites em que era possível falar-se de tais matérias. Costumam ser muito
invocados, a este respeito, dois teólogos de inspiração platónica da Escola de
Alexandria, dos séculos II e III, preocupados com os mistérios alegóricos
contidos na essência do Cristianismo e que não excluem uma interpretação
esotérica das Sagradas Escrituras. Refiro-me a Clemente de Alexandria (150-216)
e ao seu discípulo Orígenes (185-253). Uma das obras mais conhecidas do
primeiro, Stromateis (Miscelâneas), é particularmente importante pelo
testemunho que nos oferece da existência de Mistérios associados ao
Cristianismo primitivo, e a um ensinamento secreto; por exemplo: O Senhor não
nos impediu de fazer o bem por causa das leis do sábado; Ele concordou que os
que são capazes de compreender partilhassem dos mistérios de Deus e da sua
santa luz. Além disso não revelou ao homem vulgar o que não era para ele;
revelou-o, sim, a alguns poucos, a quem sabia que tal revelação lhes seria
apropriada, e capazes de aceitar os mistérios e de se coadunar com eles. As
coisas secretas, tal como o próprio Deus, não se devem confiar por escrito, mas
sim exprimirem-se pelo Logos (ou: por palavra). E se alguém nos contrapõe
citando a Escritura: «Nada há encoberto que se não descubra, nem nada escondido
que se não dê a conhecer» (Mateus 10, 26), responder-lhe-emos que nesta frase
(Jesus) predisse que os segredos ocultos serão revelados aos que escutam em
segredo, e que tudo o que é velado, como a verdade, será descoberto aos que são
capazes de receber as tradições sob um véu, e o que é incompreensível à maioria
será claro para a minoria. (…) Os mistérios são transmitidos misteriosamente,
de boca a ouvido, ou melhor, não nas vozes do que fala e do que escuta, mas nas
suas mentes. Deus concedeu à Igreja que uns sejam «apóstolos, outros profetas,
outros evangelistas, outros pastores e instrutores, para aperfeiçoamento dos
santos na obra do seu ministério, e para edificação do corpo de Cristo (Efésios
4, 11-12). Estou bem consciente da pobreza desta minha compilação de notas
comparada com a graça do Espírito que me considerou digno de o escutar. Mas ao
menos será como que uma imagem, que lembrará o arquétipo original àquele que
tiver sido tocado pelo tirso. “Dá ao sábio, e tornar-se-á mais sábio ainda”,
diz a Escritura (Provérbios 9, 9), e “ao que tem, se dará e terá em abundância”
(Mateus 13, 12). Há aqui uma promessa, não de dar uma plena interpretação dos
segredos — longe disso —, mas de oferecer um vislumbre para quando nos
esquecemos, ou para evitar que isso aconteça. Vejamos um outro elucidativo
passo do mesmo livro de Clemente Alexandrino (150-215): Uma vez que a nossa
tradição não é recebida em comum nem aberta a todos, e muito menos quando nos
damos conta da magnificência do Logos, segue-se que temos de manter secreta “a
sabedoria de Deus em mistério, a oculta”, ensinada pelo Filho de Deus. O
próprio profeta Isaías precisou de ter a língua purificada pelo fogo para poder
revelar a sua visão. Nós também precisamos de ser purificados tanto de ouvido
como de língua, se nos propomos partilhar da verdade. Só de pensá-lo, tolhe-se
a mão para o escrever, e, observando as palavras da Escritura, cuidarei de não
lançar as pérolas aos porcos, não aconteça que as pisem aos pés e,
acometendo-nos, nos despedacem. É difícil apresentar argumentos puros e
lúcidos, a respeito da verdadeira luz, a pessoas que são como cevados na sua
falta de educação. Quase nada há que pareça mais ridículo aos homens vulgares
do que estes discursos, nem mais maravilhoso e divinamente inspirado para os
que sejam de nobre natureza. “Mas o homem vivente não capta as coisas do
Espírito de Deus, pois são loucura para Ele”; os sapientes não anunciam em
público o que discutem em concílio. “O que vos digo às escuras, dizei -o à luz
do dia, e o que escutais ao ouvido, proclamai-o de cima dos terraços”, diz o
Senhor (Mateus 10, 27). Ele quer dizer que recebamos as tradições secretas do
conhecimento revelado, interpretadas com a máxima elevação, e, uma vez que as
ouvimos murmuradas aos nossos ouvidos, que as transmitamos a quem delas seja
digno, e não que as espalhemos sem reserva a qualquer um, quando Ele, para
estes, o fez em parábolas. Quanto a Orígenes, um dos maiores eruditos da
Patrística grega e profundo conhecedor dos mistérios pagãos, é autor dalgumas
obras monumentais — e essenciais — de que se destacam os Hexapla, por exemplo,
primeiro intento de se estabelecer um texto crítico do Antigo Testamento a
partir de seis versões correntes gregas e hebraicas, que cotejou em seis
colunas paralelas e cuja organização lhe consumiu praticamente a vida inteira,
além do denso tratado Peri archôn (Acerca dos princípios), que a Igreja
considera discutível e que o ascético Rufino de Aquileia (345- 410) traduziu
com o título De principiis adulterando-o e eliminando intencionalmente as
passagens e as fórmulas mais «suspeitas». Entretanto, e para o que ora nos
importa, basta que nos abeiremos do seu elucidativo tratado Contra Celsum,
escrito provavelmente no ano 248 em refutação do livro Discurso verídico,
ataque demolidor que o filósofo Celso, igualmente neoplatónico como Orígenes mas
ferozmente anticristão, desfere contra o Cristianismo. Naquele, Orígenes revela
algumas coisas: E nada digo por ora do estudo cuidadoso de tudo quanto está
escrito no Evangelho. Cada ponto contém muitas razões difíceis de entender, não
só para o vulgo, mas incluso para algumas pessoas inteligentes. Tal, a densa
exposição das parábolas que Jesus fazia aos de fora, guardando a explicação
delas para os que tinham ultrapassado a audição exotérica e se aproximavam
privadamente d’Ele, em casa. Celso admirar-se-ia se conseguisse compreender o
motivo que há para se chamar a uns “de fora”, e a outros «de casa». E quem,
sendo capaz de contemplar os vários passos de Jesus, não se maravilhará de
vê-lo ora subir à montanha para proferir este discurso ou para realizar aquelas
outras ações ou transfigurar-se, ora para, em baixo, curar os enfermos,
incapazes de subir aonde o seguiam os seus discípulos? Não é porém este o
momento de explicar quanto de verdadeiramente venerável e divino contêm os
Evangelhos ou o sentido que Paulo tem de Cristo, isto é, da Sabedoria e do
Logos de Deus. Baste o que se disse, para contrapor a essa galhofa, indigna dum
filósofo, de Celso, que ousa comparar os íntimos mistérios da Igreja de Deus
«com os gatos, macacos, crocodilos, bodes e cães dos egípcios. Realcemos, de
passagem, a antiga e clássica distinção esotérica que Orígenes faz entre «subir
à montanha» (o caminho da Iniciação!), e o que se pode claramente fazer “na
planície” aos “enfermos”, isto é, aos incapazes de atingir, enquanto não «curados
e purificados, a sublimação dos Mistérios. Noutro passo do mesmo livro,
Orígenes aponta sem ambiguidades algumas chaves dos Mistérios com que podemos
deparar nas Escrituras judaico-cristãs: Se alguém deseja iniciar-se numa
ciência misteriosa sobre o acesso das almas ao divino, não pelo que nos oferece
a mais obscura seita citada por Celso, mas por livros originariamente judeus,
lidos nas sinagogas, e que são aceites pelos cristãos, e por outros
exclusivamente cristãos, leia as visões do profeta Ezequiel no final da sua
profecia; ou leia também, no Apocalipse de João, a descrição da Cidade de Deus,
a Jerusalém Celeste, bem como a descrição dos seus fundamentos e das suas
portas. E se é capaz de entender por símbolos a senda assinalada aos que se hão
de encaminhar para o divino, leia o livro de Moisés que tem por título Números
e procure quem o introduza nos mistérios que se encontram ocultos nos
acampamentos dos filhos de Israel; averigue de que natureza eram os
acampamentos ordenados às bandas do Oriente, que são os primeiros; de que
natureza eram os orientados para Sul e Sudoeste, os que estavam junto ao mar e
os que, por fim, se ordenavam a Norte. Nestas passagens achará decerto ideias
não despiciendas, e não, como imagina Celso, ideias que pedem ouvintes néscios
e escravos. Compreenderá de quem nelas se fala bem como a natureza dos números
aí indicados e que convêm a cada tribo. Expor aqui cada um destes pontos
parece-nos inoportuno. Finalmente, Orígenes não pode ser mais límpido quando
afirma: E de mais, que haja pontos além do exotérico que não chegam aos ouvidos
do vulgo não é coisa exclusiva do Cristianismo, mas também corrente entre os
filósofos, que tinham doutrinas exotéricas, e também outras esotéricas. Assim,
de Pitágoras havia quem apenas ouvisse dizer: «Ele disse-o»; outros porém eram
secretamente iniciados em doutrinas que não deviam chegar aos ouvidos profanos
e não purificados. E quanto aos mistérios que se praticam em toda a Grécia e
nas terras bárbaras, embora sejam ocultos, não os ataca Celso; por isso em vão
tenta desacreditar o que há de oculto no Cristianismo e que não pode entender.
A necessidade da reformulação exotérica que vimos acima levou a Igreja a
proceder a uma espécie de movimento translacional quanto ao sentido da palavra
mistério, e aqui voltamos à tal distinção a que aludimos entre «mistério» e
“mistérios” que a Igreja oficialmente adoptou e ensina: por um lado os
mistérios enquanto grandes acontecimentos históricos da vida de Jesus ou da
Virgem Maria, por exemplo os mistérios da Cruz ou os mistérios do Rosário; por
outro, no mistério singularizado como por exemplo o mistério da Encarnação de
Cristo, o mistério da Santíssima Trindade, o mistério da Eucaristia ou da
Transubstanciação, o mistério Pascal, o mistério da Ressurreição. A palavra
“mistério” ocorre 28 vezes no Novo Testamento, 21 das quais nos textos
paulinos, e em nenhum caso para exprimir o que acabámos de enumerar e que a
Igreja oficializou: com o decorrer do tempo, o duplo significado de verdade
divina e de rito sacro que o termo «mistério» abrangia acabou por se repartir
por duas palavras, mysterium e sacramentum, ficando a primeira a designar as
verdades ocultas do Cristianismo e a segunda os ritos ou as realidades
sagradas. O que não exclui o poder que a Igreja detém para estabelecer, pelo
mysterium, uma ponte real com o divino, poder que Cristo transmitiu aos
apóstolos e que, por sucessão apostólica, é transmitido por sua vez ao longo
dos séculos a todo o sacerdote regularmente ordenado. É tempo entretanto de regressarmos
a Paulo, que, confirmando quanto mais acima se disse sobre o originário
esoterismo cristão, mui lisamente declara: “Se o nosso Evangelho está porém
velado, está velado para os que se encontram no caminho da destruição, para
aqueles incrédulos cujos pensamentos o deus deste século [gr. aiônos] cegou,
para que neles não brilhasse a iluminação do Evangelho da glória de Cristo, o
qual é imagem [gr. eikôn] de Deus” (2 Coríntios 4, 3-4). É importante pôr em
relevo que foi o mesmo Paulo quem formulou, na sua primeira carta aos Coríntios
e em duas frases fundamentais, que as Escrituras cristãs nos dão dois
Evangelhos, um exotérico e relacionado com a personalidade mundana: “Resolvi
não saber coisa alguma, entre vós, senão Jesus Cristo, e este crucificado” (1
Cor 2, 2), e outro esotérico e relacionado com a individualidade espiritual:
“Não sabeis que sois templo de Deus?” (1 Coríntios 3, 16). Destes “dois
Evangelhos” foi o primeiro, como já fizemos notar, que a Igreja católica trouxe
à luz da ribalta, e manteve, com o carácter que conhecemos e que tem sido a
permanente tónica da sua doutrina cristã. Inácio, bispo de Antioquia (35-108)
martirizado em Roma no ano 107 ou 108, foi Padre Apostólico (vir apostolicus),
isto é, conheceu e conviveu pessoalmente com alguns apóstolos, afirma-o João
Crisóstomo (347-407): Inácio, em primeiro lugar, conviveu nobremente com os
Apóstolos e das presenças deles se gozava como fontes do Espírito. Ora pois,
que muito é que quem com eles convivia e com eles a todas as horas lidava, e
participava dos seus públicos e secretos pensamentos, fosse finalmente tido por
digno de tão alta dignidade?»[33]. Inácio, na sua juventude, decerto teria
conhecido Paulo (além de João, e talvez outros), sendo Antioquia a sua pátria,
e tendo sido de Antioquia que irradiou para o mundo mediterrânico a mensagem de
Paulo, os seus caminhos, com toda a probabilidade, ter-se-iam cruzado. O
testemunho de Inácio, portanto, convém considerar-se com especial atenção,
nomeadamente — e para o caso que nos importa — o seguinte passo duma carta que
endereçou à comunidade cristã de Éfeso, onde a recordação de Paulo permanecia
muito vívida: «Sois passagem para os que se elevam a Deus, iniciados com Paulo
nos mesmos mistérios [gr. Paulou summusai]» (Carta aos Efésios XII, 2). Aquelas
palavras gregas, Paulou symmysai, também se podem traduzir por companheiros de
iniciação de Paulo. Ou seja, os Mistérios cristãos eram um facto, e uma das
provas mais evidentes dá-nos o próprio Paulo, quando auto afirma: Sei de um
homem, em Cristo, que há catorze anos — ignoro se no corpo, ou fora dele, Deus
o sabe — foi arrebatado até ao Terceiro Céu. E sei desse homem — se no corpo ou
fora dele, não sei, Deus o sabe — que foi arrebatado ao Paraíso e ouviu
palavras inexprimíveis [gr. arrhêta rhêmata, lat. arcana verba] que não é
permitido a um homem divulgar. — 2 Coríntios 12, 2-4. Este texto surpreendente
de Paulo revela um facto em que muitos cristãos certamente nunca pensaram, e dá
sobretudo conta, com muita força, do que é o segredo iniciático, as tais
«palavras inexprimíveis que o Iniciado recebe e não pode repetir no mundo
profano. Recordemos que a expressão que Paulo usa para o inexprimível e
incomunicável — arrhêta —, é a mesma que é utilizada nos mistérios antigos
exatamente com o mesmo significado. Não deixa de ser sintomático que São
Jerônimo (347-420), conhecedor dos primitivos Mistérios cristãos, tenha
traduzido, na sua Vulgata Latina, aqueles dois vocábulos gregos, arrhêta
rhêmata (palavras impronunciáveis ou inefáveis), por arcana verba, expressão
muito mais forte, pois significa «palavras ocultas ou secretas». A crítica
positivista, ignorando o alcance iniciático deste texto, assume perante ele uma
de duas atitudes: ou opina que se trata apenas dum ancestral tema mítico (as esferas
do céu!) que permaneceu no Novo Testamento a par doutros como por exemplo a
batalha celestial entre anjos e demónios (Apocalipse 12, 7-9); ou limita-se a
constatar que Paulo mentiu, porquanto, a fazer fé no Evangelho de João,
«ninguém subiu ao Céu a não ser Aquele que desceu do Céu, o Filho do homem»
(João 3, 13). Pois nem uma coisa nem outra: por esta revelação ficamos a saber
que Paulo era um Iniciado com o grau equivalente à 5.ª Iniciação menor da Ordem
Rosacruz: esta é a Iniciação que dá acesso ao Mundo do Pensamento Abstrato, ou
Terceiro Céu, na terminologia iniciática cristã e Rosacruciana. E tal como nas
doutrinas Rosacruzes, Paulo admite deidades ou Hierarquias a que chama
«deuses», inferiores ao Deus único e a Ele submetidos: «Porque, se há aqueles
que são chamados deuses, tanto no céu como na terra, havendo assim muitos
deuses e muitos senhores, para nós porém não há senão um Deus, o Pai, de quem
procedem todas as coisas» (1 Coríntios 8, 5-6). Muito exemplos se poderiam
colher dos textos de Paulo; remato com o seguinte passo da primeira carta aos
Coríntios, que bem merece leitura atenta e profundada, e que já vimos, atrás,
ter sido objeto de misterioso exame tanto de Clemente de Alexandria como de
Orígenes: Entre os perfeitos [gr. en tois teleiois] porém, falamos sabedoria;
não a sabedoria deste século nem a dos chefes deste século condenados a
perecer; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, a oculta, que Deus
predestinou antes dos séculos para glória nossa; que nenhum dos chefes deste século
conheceu; pois se a tivessem conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da
glória. Mas como está escrito: O que olho não viu nem ouvido ouviu, Nem subiu
ao coração do homem, Essas coisas preparou Deus aos que o amam (Isaías 64, 3).
A nós revelou Deus por meio do Espírito; porque o Espírito tudo penetra, mesmo
as profundezas de Deus. Quem pois conhece dos homens as coisas próprias do
homem, a não ser o espírito do homem que nele se encontra? Assim também as
coisas de Deus ninguém as conhece a não ser o Espírito de Deus. Nós, porém não
captamos o espírito do mundo mas o Espírito que vem de Deus, para que
conheçamos as coisas que Deus graciosamente nos deu, as quais falamos não com
aprendidas palavras de sabedoria humana, mas com aprendidas do Espírito, agregando
o espiritual ao espiritual. Mas o homem vivente [gr. psychikos anthrôpos, lat.
animalis homo] não capta as coisas do Espírito de Deus, pois são loucura para
ele, nem é capaz de entendê-las pois só espiritualmente é possível examiná-las.
Em contrapartida o homem espiritual [gr. pneumatikos, lat. spiritalis] ajuíza
todas as coisas, mas ninguém é capaz de ajuíza-lo. Quem pois conheceu o
pensamento do Senhor, para que o instrua? Nós, porém temos o pensamento [gr.
noûn, lat. sensum] de Cristo. — 1 Coríntios 2, 6-16. Os «perfeitos» a que se
refere Paulo são os Iniciados (teleioi) dos Mistérios Maiores, os mesmos
“perfeitos” que Orígenes invoca num outro texto seu que também a este se
reporta e que só o entenderá quem disso for capaz, como ele próprio adverte:
(…) Platão (428 AC 347) põe em terceiro lugar a imagem; nós porém, aplicando o
nome de imagem a outra coisa, diremos mais claramente que a impressão das
chagas que depois do Logos se dá na alma, é o Cristo que mora em cada um, e vem
do Cristo Logos. Ora bem, a sabedoria, que é Cristo e mora nos perfeitos [gr.
en tois teleiois] de entre nós, corresponde ao quarto elemento platónico, que é
a ciência, entenda -o quem disso for capaz. Nos livros canónicos do Novo
Testamento não se dá conta de como Paulo terminou os seus dias. O que se sabe,
ou julga saber, é-nos transmitido pelos apócrifos, nomeadamente os Acta Pauli,
que incluem o Martyrium Pauli, e os fragmentos que nos restam dos Atos de Pedro
e Paulo: teria sido levado para Roma e decapitado no ano 67 nas Aquae Salviae,
na localidade que hoje se chama Tre Fontane. A descrição da sua morte no
Martyrium Pauli inspirou, ao longo dos tempos, tanto a arte como a liturgia:
Paulo então pôs-se de pé e olhou para leste, ergueu as mãos ao céu e orou
demoradamente. Nas suas orações falava em hebraico com os Padres; depois, sem
proferir palavra, ofereceu o pescoço ao verdugo. E quando este lhe cortou a
cabeça, salpicou leite sobre a túnica do soldado. Os poetas, no entanto, têm
uma visão diferente. Tal como Elias, tal como Enoch, o trespasse de Paulo, o
Iniciado, não podia acrisolar-se em cadinho de terrestre cruz, mas apenas em
luminoso raio de celestial mistério: “Paulo não podia morrer, como Pedro.
Desapareceu nas alturas donde recebera a inspiração. O seu amor a Jesus Cristo
alcançou a Eternidade e todos os atributos de Deus. Paulo é imortal em Jesus
Cristo. Não morreu, desapareceu. Aparecer é ganhar forma no espaço, e duração
no tempo. Desaparecer é ficar invisível, simplesmente”. www.fraternidaderosacruz.org.
Abraço. Davi
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