Espiritismo.
www.febnet.org.br. Livro O Céu e o
Inferno. Texto de Allan Kardec (1804-1869). Capítulo II. O INFERNO II. Esses
reis reviam-se constantemente nesse espelho, achando-se mais monstruosos e
horrendos que a própria Quimera vencida por Belerofonte, que a Hidra de Lerna
abatida por Hércules e que Cérbero vomitando por suas três goelas um sangue
negro e venenoso, capaz de empestar toda a raça de mortais que vivem sobre a
Terra. De outro lado, outra Fúria lhes repetia injuriosamente todos os louvores
que os lisonjeiros lhes dispensavam em vida e mostrava-lhes ainda outro espelho
em que se viam tais como a lisonja os pintara. Da antítese dos dois quadros
brotava o suplício do amor-próprio. Era para notar que os piores dentre esses
reis, foram os que tiveram maiores e mais fulgentes louvores durante a vida,
por isso que os maus são mais temidos que os bons e exigem impudicamente as vis
adulações dos poetas e oradores do seu tempo. Na profundeza dessas trevas, onde
só insultos e escárnios padecem, ouvem-se-lhes os gemidos agoniados. Nada os cerca
que os não repila, contradiga e confunda em contraste ao que supunham na vida,
zombando dos homens, convictos de que tudo era feito para servi-los. No
Tártaro, entregues a todos os caprichos de certos escravos, estes lhes fazem
provar por sua vez a mais cruel servidão; humilhados dolorosamente, não lhes
resta esperança alguma de modificar ou abrandar o cativeiro. Qual bigorna sob
as marteladas dos Ciclopes, quando Vulcano os acoroçoa nas fornalhas
incandescentes do Monte Etna, assim permanecem, mercê das pancadas desses
escravos transformados em verdugos. Aí viu Telêmaco pálidos semblantes,
hediondos e consternados. Negra tristeza essa que consome estes criminosos,
horrorizados de si próprios, sem poderem dela despojar-se como da própria
natureza. Não têm outro castigo às suas faltas que não as mesmas faltas;
veem-nas incessantemente na plenitude da sua enormidade, apresentando-se sob a
forma de espectros horríveis que os perseguem. Procurando eximir-se a essa
perseguição, buscam morte mais potente do que a que os separou do corpo.
Desesperados, invocam uma morte capaz de extinguir a consciência deles: pedem
aos abismos que os absorvam, a fim de se furtarem aos raios vingadores da
verdade que os atormenta, mas continuam votados à vingança que sobre eles destila
gota a gota e que jamais estancará. A verdade que temem ver constitui-se em
suplício; veem-na, contudo, e só têm olhos para vê-la erguer-se contra eles,
ferindo-os, despedaçando-os, arrancando-os de si mesmos, como o raio, sem nada
os destruir exteriormente, a penetrar-lhes o âmago das entranhas. Entre os
seres que lhe eriçavam os cabelos, viu Telêmaco vários e antigos Reis da Lídia
punidos por haverem preferido ao trabalho as delícias de uma vida inativa,
quando aquele deve ser o consolo dos povos e, como tal, inseparável da realeza.
Estes reis lastimavam-se reciprocamente a cegueira. Dizia um a outro, que fora
seu filho: — Não vos tinha eu recomendado tantas vezes durante a vida e ainda
antes da morte que reparásseis os males ocorridos por negligência minha? — Ah!
Desgraçado, pai! — dizia o filho — fostes vós que me perdestes! Foi o vosso
exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a voluptuosidade e a crueldade
para com os homens! Vendo-vos governar com tanta incúria, cercado de aduladores
infames, habituei-me a prezar a lisonja e os prazeres. Acreditei que os homens
eram para os reis o que os cavalos e outros animais de carga são para aqueles,
isto é, animais que só se consideram enquanto proporcionam serviços e
comodidades. “Acreditei-o, e fostes vós que fizestes crer (...) sofrendo agora
tantos males por vos haver imitado”. A estas recriminações aliavam as mais
acerbas blasfêmias, como que possuídos de raiva bastante para se despedaçarem
mutuamente. Quais notívagos mochos, em torno desses reis corvejavam as
suspeitas cruéis, os vãos receios e desconfianças que vingam os povos da dureza
de seus reis, a ganância insaciável das riquezas, a falsa glória sempre
tirânica e a moleza displicente que duplica os sofrimentos sem a compensação de
sólidos prazeres. Viam-se muitos desses reis severamente punidos, não por males
que tivessem feito, mas por terem negligenciado o bem que poderiam e deveriam
fazer. Todos os crimes dos povos, provenientes da desídia na observância das
leis eram imputados aos reis, que não devem reinar senão para que as leis
exerçam seu ministério. Imputavam-lhes também todas as desordens decorrentes do
fausto, do luxo e dos demais excessos que impelem os homens à violência,
instigando-os à aquisição de bens com o desprezo das leis. Sobretudo recaía o
rigor sobre os reis que, em vez de serem bons e vigilantes pastores dos povos,
só cuidavam de devastar o rebanho, quais lobos devoradores. O que mais
consternou Telêmaco, porém, foi ver nesse abismo de trevas e males um grande
número de reis que, tendo passado na Terra pelos melhores, condenaram-se às
penas do Tártaro por se terem deixado guiar por homens ardilosos e maus. Tal
punição correspondia aos males que tinham deixado praticar em nome da sua
autoridade. Ademais, a maior parte desses reis não foram nem bons nem maus, tal
a sua fraqueza; não os atemorizava a ignorância da verdade, e assim como nunca
experimentaram o prazer da virtude, jamais poderiam fazê-lo consistir na
prática do bem. Esboço do inferno cristão. 11. A opinião dos teólogos sobre o
inferno resume-se nas seguintes citações. Esta descrição, sendo tomada dos
autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto melhor ser considerada como
expressão da fé ortodoxa na matéria, quanto é ela reproduzida a cada instante,
com pequenas variantes, nos sermões do púlpito evangélico e nas instruções
pastorais. 12. “Os demônios são puros Espíritos, e os condenados, presentemente
no inferno, podem ser considerados puros Espíritos, uma vez que só a alma aí
desce, e os restos entregues à terra se transformam em ervas, em plantas, em
minerais e líquidos, sofrendo inconscientemente as metamorfoses constantes da
matéria. Os condenados, porém, como os santos, devem ressuscitar no dia do
juízo final, retomando, para não mais deixá-los, os mesmos corpos carnais que
os revestiam na vida. Os eleitos ressuscitarão, contudo, em corpos purificados
e resplendentes, e os condenados em corpos maculados e desfigurados pelo
pecado. Isso os distinguirá, não havendo mais no inferno puros Espíritos, porém
homens como nós. Conseguintemente, o inferno é um lugar físico, geográfico,
material, uma vez que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de
pés, mãos, boca, língua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos, sangue
nas veias e nervos sensíveis. Onde estará esse inferno? Alguns doutores o têm
colocado nas entranhas mesmas do nosso globo; outros não sabemos em que
planeta, sem que o problema se haja resolvido por qualquer concílio. Estamos,
pois, quanto a este ponto, reduzidos a conjecturas; a única coisa afirmada é
que esse inferno, onde quer que exista, é um mundo composto de elementos
materiais, conquanto sem Sol, sem estrelas, sem Lua, mais triste e inóspito,
mais desprovido de todo gérmen e das aparências benéficas que porventura se
encontram ainda nas regiões mais áridas deste mundo em que pecamos. Os teólogos
mais circunspectos não se atrevem, à semelhança dos egípcios, dos hindus e dos
gregos, a descrever os horrores dessa morada, limitando-se a mostrar como
premissas no pouco que dela fala a escritura, o lago de fogo e enxofre do
Apocalipse e os vermes de Isaías, esses vermes que formigam eternamente sobre
os cadáveres do Tofel, e os demônios atormentando os homens que eles levaram à
perdição, e os homens a chorarem, rangendo os dentes, segundo a expressão dos
evangelistas. Santo Agostinho (354-430) não concorda que esses sofrimentos
físicos sejam apenas reflexos de sofrimentos morais e vê, num verdadeiro lago
de enxofre, vermes e verdadeiras serpentes saciando-se nos corpos, casando suas
picadas às do fogo. Ele pretende mais, segundo um versículo de Marcos, que esse
fogo estranho, posto que material como o nosso e atuando sobre corpos
materiais, os conservará como o sal conserva o corpo das vítimas. Os
condenados, vítimas sempre sacrificadas e sempre vivas, sentirão a tortura
desse fogo que queima sem destruir, penetrando-lhes a pele. Serão dele
embebidos e saturados em todos os seus membros, na medula dos ossos, na pupila
dos olhos, nas mais recônditas e sensíveis fibras do seu ser. A cratera de um
vulcão, se aí pudessem submergir, ser-lhes-ia lugar de refrigério e repouso.
Assim falam com toda a segurança os teólogos mais tímidos, discretos e
comedidos; não negam que haja no inferno outros suplícios corporais, mas dizem
que para afirmá-lo lhes falta suficiente conhecimento, pelo menos tão positivo
como o que lhes foi dado sobre o suplício horrível do fogo e dos vermes. Há,
contudo, teólogos mais ousados ou mais esclarecidos que dão do inferno
descrições mais minuciosas, variadas e completas. E conquanto se não saiba em
que lugar do Espaço está situado esse inferno, há santos que o viram. Eles não
foram lá ter com a lira na mão, como Orfeu; de espada em punho, como Ulisses,
mas transportados em espírito. Desse número é Santa Teresa. Dir-se-ia, pela narrativa
da santa, que há uma cidade no inferno: Ela aí viu, pelo menos, uma espécie de
viela comprida e estreita como essas que abundam em velhas cidades, e
percorreu-a horrorizada, caminhando sobre lodoso e fétido terreno, no qual
pululavam monstruosos repteis. Foi, porém, detida em sua marcha por uma muralha
que interceptava a viela, em cuja muralha havia um nicho onde se abrigou, aliás
sem poder explicar a ocorrência. Era, diz ela, o lugar que lhe destinavam se
abusasse, em vida, das graças concedidas por Deus em sua cela de Ávila. Apesar
da facilidade maravilhosa que tivera em penetrar esse nicho, não podia
sentar-se, ou deitar-se, nem manter-se de pé. Tampouco podia sair. Essas
paredes horríveis, abaixando-se sobre ela, envolviam-na, apertavam-na como se
fossem animadas de movimento próprio. Parecia-lhe que a afogavam,
estrangulando-a, ao mesmo tempo que a esfolavam e retalhavam em pedaços. Ao
sentir queimar-se, experimentou, igualmente, toda a sorte de angústias. Sem
esperança de socorro, tudo era trevas em torno de si, posto que através dessas
trevas percebesse, não sem pavor, a hedionda viela em que se achava, com a sua
imunda vizinhança. Este espetáculo era-lhe tão intolerável quanto os apertos
mesmos da prisão. Esse não era, sem dúvida, mais que um pequeno recanto do
inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos, pois viram
grandes cidades no inferno, quais enormes braseiros: Babilônia e Nínive, a
própria Roma, com seus palácios e templos abrasados, acorrentados todos os
habitantes. Traficantes em seus balcões, sacerdotes reunidos a cortesãos em
salas de festim, chumbados às cadeiras ululantes, levando aos lábios rubras
taças chamejantes. Criados genuflexos em ferventes cloacas, braços distendidos,
e príncipes de cujas mãos escorria em lava devoradora o ouro derretido. Outros
viram no inferno planícies sem-fim, cultivadas por camponeses famintos, que,
nada colhendo desses campos fumegantes, dessas sementes estéreis, se
entredevoravam, dispersando-se em seguida, tão numerosos como dantes, magros,
vorazes e em bando, indo procurar ao longe, em vão, terras mais felizes. Outras
colônias errantes de condenados os substituíam imediatamente. Ainda outros
relatam que viram no inferno montanhas inçadas de precipícios, florestas
gemebundas, poços secos, fontes alimentadas de lágrimas, ribeiros de sangue,
turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas tripuladas por desesperados,
singrando mares sem praia. Viram, em uma palavra, tudo o que viam os pagãos: um
lúgubre revérbero da Terra com os respectivos sofrimentos naturais eternizados,
e até calabouços, patíbulos e instrumentos de tortura forjados por nossas
próprias mãos. Há, com efeito, demônios que, para melhor atormentarem os homens
em seus corpos, tomam corpos. Uns têm asas de morcegos, cornos, couraças de
escama, patas armadas de garras, dentes agudos, apresentando-se armados de
espadas, tenazes, pinças, serras, grelhas, foles, tudo ardente, não exercendo
outro ofício por toda a eternidade, em relação à carne humana, que não o de
carniceiros e cozinheiros; outros, transformados em leões ou víboras enormes,
arrastam suas presas para cavernas solitárias; estes se transformam em corvos
para arrancar os olhos a certos culpados, e aqueles em dragões volantes,
prontos a se lançarem sobre o dorso das vítimas, arrebatando-as assustadiças,
ensanguentadas, aos gritos, através de espaços tenebrosos, para arremessá-las
enfim em tanques de enxofre. Aqui, nuvens de gafanhotos, de escorpiões
gigantescos, cuja vista produz náuseas e calafrios, e o contato, convulsões.
Além, de monstros policéfalos, escancarando goelas vorazes, a sacudirem sobre
as disformes cabeças as suas crinas de áspides, a triturarem condenados com
sangrentas mandíbulas para vomitá-los mastigados, porém vivos, porque são
imortais. Estes demônios de formas sensíveis, que lembram tão visivelmente os
deuses do Amenti e do Tártaro, bem como os ídolos adorados pelos fenícios,
moabitas e outros gentios vizinhos da Judeia, esses demônios não obram ao
acaso, tendo cada um à sua função. O mal que praticam no inferno está em
relação ao mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra. Os condenados são
punidos em todos os seus órgãos e sentidos, porque também a Deus ofenderam por
todos os órgãos e sentidos. Os delinquentes de gula são castigados pelos demônios
da glutonaria, os preguiçosos pelos da preguiça, os luxuriosos pelos da
devassidão, e assim por diante, numa variedade tão grande como a dos pecados.
Terão frio, queimando-se, e calor, enregelados, ávidos igualmente de movimento
e de repouso; sedentos e famintos; mil vezes mais fatigados que escravo ao fim
do dia. Mais doentes que os moribundos, mais alquebrados e chaguentos que os
mártires, e isso para sempre. Demônio algum se furta, nem se furtará jamais ao
desempenho sinistro da sua tarefa, perfeitamente disciplinados e fiéis, quanto
à execução das vingativas ordens que receberam. Aliás, sem isso que seria o
inferno? Repousariam os pacientes se os algozes altercassem ou se enfadassem.
Mas nada de repouso nem disputas para quaisquer deles, pois apesar de maus e
inumeráveis que são, estendendo-se de um a outro extremo do abismo, nunca se
viu sobre a Terra súditos mais dóceis a seus príncipes, exércitos mais
obedientes aos chefes ou comunidades monásticas mais humildes e submissas aos
seus superiores. Quase nada se conhece da ralé demoníaca, desses vis Espíritos
que compõem as legiões de vampiros, sapos, escorpiões, corvos, hidras,
salamandras e outros animais sem-nome; conhecem-se, porém, os nomes de muitos
dos príncipes que comandam tais legiões, entre os quais Belfegor, o demônio da
luxúria; Abadon ou Apolion, do homicídio; Belzebu, dos desejos impuros, ou
senhor das moscas que engendram a corrupção. Mamon, da avareza; Moloc, Belial,
Baalgad, Astarot e muitos outros, sem falar do seu chefe supremo, o sombrio
arcanjo que no Céu se chamava Lúcifer e no inferno se chama Satanás.” Eis aí
resumida a ideia que nos dão do inferno, sob o ponto de vista da sua natureza
física e também das penas físicas que aí sofrem. Compulsai os escritos dos
padres e dos antigos doutores; interrogai as pias legendas; observai as
esculturas e painéis das nossas igrejas; atentai no que dizem dos púlpitos e
sabereis ainda mais. 13. O autor acompanha esse quadro das seguintes reflexões,
cujo alcance procuraremos cada qual compreender: “A ressurreição dos corpos é
um milagre, mas Deus faz ainda um segundo milagre, dando a esses corpos mortais
— já uma vez usados pelas passageiras provas da vida, já uma vez aniquilados —
a virtude de subsistirem sem se dissolverem numa fornalha, onde se volatilizariam
os próprios metais. Que se diga que a alma é o seu próprio algoz, que Deus não
a persegue e apenas a abandona no estado infeliz por ela escolhido (conquanto
esse abandono eterno de um ser desgraçado e sofredor pareça incompatível com a
Bondade divina), vá; mas o que se diz da alma e das penas espirituais, não se
pode de modo algum dizer dos corpos e das respectivas penas, para perpetuação
das quais já não basta que Deus se conserve impassível, mas, ao contrário, que
intervenha e atue, sem o que sucumbiriam os corpos. Os teólogos supõem,
portanto, que Deus opera, efetivamente, após a ressurreição dos corpos, esse
segundo milagre de que falamos. Que em primeiro lugar tira dos sepulcros que os
devoravam os nossos corpos de barro; retira-os tais como aí baixaram com suas
enfermidades originais e degradações sucessivas da idade. Restitui-nos a esse
estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios de necessidades, sensíveis a
uma picada de abelha, assinalados dos estragos da vida e da morte, e está feito
o primeiro milagre; depois, a esses corpos raquíticos, prontos a voltarem ao pó
donde saíram, outorga propriedades que nunca tiveram — a imortalidade, esse dom
que, em sua cólera (dizei antes em sua misericórdia), retirara a Adão ao sair
do Éden — e eis completo o segundo milagre. Adão, quando imortal, era
invulnerável, e deixando de ser invulnerável tornou-se mortal; a morte seguia
de perto a dor. A ressurreição não nos restabelece, pois, nem nas condições
físicas do homem inocente, nem nas do culpado, sendo antes uma ressurreição das
nossas misérias somente, mas com um acréscimo de misérias novas, infinitamente
mais horríveis. É, de alguma sorte, uma verdadeira criação, e a mais maliciosa
que a imaginação tenha, porventura, ousado conceber. Deus muda de parecer, e,
para ajuntar aos tormentos espirituais dos pecadores tormentos carnais que
possam durar eternamente, transforma de súbito, por efeito do seu poder, as
leis e propriedades por Ele mesmo estabelecidas de princípio aos compostos
materiais, ressuscita carnes enfermas e corrompidas e, reunindo por um nó
indestrutível esses elementos que tendem por si mesmos a separar-se, mantém e
perpetua, contra a ordem natural, essa podridão viva, lançando-a ao fogo, não
para purificá-la, mas para conservá-la tal qual é, sensível, sofredora,
ardente, horrível e como a quer — imortal. Por este milagre se arvora Deus num
dos algozes infernais, pois se os condenados só a si podem atribuir seus males
espirituais, em compensação só à Deus poderão imputar os outros. Era pouco
aparentemente o abandono, depois da morte, à tristeza, ao arrependimento, às
angústias de uma alma que sente perdido o bem supremo. Segundo os teólogos,
Deus irá buscá-las nessa noite, ao fundo desse abismo, chamando-as
momentaneamente à vida, não para as consolar, mas para as revestir de um corpo
horrendo, chamejante, imperecível, mais empestado que a túnica de Dejanira,
abandonando-as então para sempre. Ainda assim Ele não as abandonará para
sempre, em absoluto, visto como Céu e Terra não subsistem senão por ato
permanente da sua vontade sempre ativa. Deus terá, portanto, sem cessar, esses
condenados à mão, para impedir que o fogo se extinga em seus corpos,
consumindo-os, e querendo que contribuam perpetuamente por seus perenes
suplícios para edificação dos escolhidos”. 14. Dissemos, e com razão, que o
inferno dos cristãos excedera o dos pagãos. Efetivamente, no Tártaro veem-se
culpados torturados pelo remorso, ante suas vítimas e seus crimes, acabrunhados
por aqueles que espezinharam na vida terrestre; vemo-los fugirem à luz que os
penetra, procurando em vão esconderem-se aos olhares que os perseguem; aí o
orgulho é abatido e humilhado, trazendo todos o estigma do seu passado, punidos
pelas próprias faltas, a ponto tal que, para alguns, basta entregá-los a si
mesmos sem ser preciso aumentar-lhes os castigos. Contudo, são sombras, isto é,
almas com corpos fluídicos, imagens da sua vida terrestre; lá não se vê os
homens retomarem o corpo carnal para sofrer materialmente, com fogo a
penetrar-lhes a pele, saturando-os até a medula dos ossos. Tampouco se vê o
requinte das torturas que constituem o fundo do inferno cristão. Juízes
inflexíveis. Porém justos, proferem a sentença proporcional ao delito, ao passo
que no império de Satã são todos confundidos nas mesmas torturas, com a
materialidade por base, e banida toda e qualquer equidade. Incontestavelmente,
há hoje, no seio da Igreja mesma, muitos homens sensatos que não admitem essas
coisas à risca, vendo nelas antes simples alegorias cujo sentido convém interpretar.
Estas opiniões, no entanto, são individuais e não fazem lei, continuando a
crença no inferno material, com suas consequências, a constituir um artigo de
fé. 15. Poderíamos perguntar como há homens que têm conseguido ver essas coisas
em êxtase, se elas de fato não existem. Não cabe aqui explicar a origem das
imagens fantásticas, tantas vezes reproduzidas com visos de realidade. Diremos
apenas ser preciso considerar, em princípio, que o êxtase é a mais incerta de
todas as revelações, porquanto o estado de sobre-excitação nem sempre importa
um desprendimento de alma tão completo que se imponha à crença absoluta,
denotando muitas vezes o reflexo de preocupações da véspera. As ideias com que
o Espírito se nutre e das quais o cérebro, ou antes o invólucro perispiritual
correspondente a este, conserva a forma ou a estampa, se reproduzem
amplificadas como em uma miragem, sob formas vaporosas que se cruzam, se
confundem e compõem um todo extravagante. Os extáticos de todos os cultos
sempre viram coisas em relação com a fé de que se presumem penetrados, não
sendo, pois, extraordinário que Santa Teresa e outros, tal qual ela saturados
de ideias infernais pelas descrições, verbais ou escritas, hajam tido visões,
que não são, propriamente falando, mais que reproduções por efeito de um
pesadelo. Um pagão fanático teria antes visto o Tártaro e as Fúrias, ou
Júpiter, empunhando o raio. Livro O Céu e o Inferno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário