quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

 

Psicanálise. Livro O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos. Escrito por Sigmund Freud (1856-1939). UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA. No outono de 1927, G. S. Viereck, jornalista teuto-americano que me fizera uma visita de boas-vindas, publicou o relato de uma conversa comigo, no correr da qual mencionei minha falta de fé religiosa e minha indiferença quanto ao tema da sobrevivência depois da morte. Essa “entrevista”, como foi chamada, foi amplamente lida e trouxe-me, entre outras, a seguinte carta de um médico americano. O que mais me impressionou foi sua resposta à pergunta sobre se acreditava numa sobrevivência da personalidade depois da morte. Consta que o senhor disse: “Não penso no assunto”. Escrevo-lhe agora para lhe narrar uma experiência que tive no ano em que me formei na Universidade X. Certa tarde, ao atravessar a sala de disseção, minha atenção foi atraída por uma velhinha de rosto suave que estava sendo conduzida para uma mesa de dissecção – separar parte de um corpo ou de um órgão humano. Essa mulher de rosto suave me causou tal impressão de que um pensamento atravessou minha mente: “Não existe Deus, se existisse, não permitiria que essa pobre velhinha fosse levada a sala de dissecção”. Quando voltei para casa naquela tarde, o sentimento que experimentara à visão na sala de disseção, fizera-me decidir não mais continuar indo à igreja. As doutrinas do cristianismo, antes disso, já tinha sido objetos de dúvidas em meu espírito. Enquanto meditava sobre o assunto, uma voz falou-me a alma que “deveria considerar o passo que estava a ponto de dar”. Meu espírito replicou a essa voz interior: Se eu tivesse a certeza de que o cristianismo é verdade e que a Bíblia Sagrada é a palavra de Deus, então eu os aceitaria. No decorrer das semanas seguintes, Deus tornou clara para minha alma que a Bíblia era a sua palavra. Que os ensinamentos a respeito de Jesus Cristo eram verdadeiros e que Jesus era nossa única salvação. Após uma revelação tão clara, aceitei a Bíblia como sendo a palavra de Deus, e Jesus Cristo, como meu Salvador pessoal. Desde então, Deus, se revelou a mim por meio de muitas provas infalíveis. Imploro-lhe, como um irmão na medicina, para refletir sobre esse tema tão importante e, posso garantir-lhe, se o considerar com a mente aberta, Deus revelará a verdade à sua alma, assim como fez comigo e com uma infinidade de outros. Enviei-lhe uma resposta polida, dizendo que ficava contente em saber que essa experiência o havia capacitado a manter sua fé. Quanto a mim, Freud, Deus não fizera o mesmo comigo. Nunca me permitira ouvir uma voz interior e se, em vista da minha idade, não se apressasse, não seria culpa minha se eu permanecesse até o fim de minha vida o que agora sou – “an infidel jew” – um judeu infiel. Quando de uma resposta amistosa, meu colega garantiu-me que ser judeu não constituía obstáculo no caminho para a fé verdadeira e provou isso com diversos exemplos. Sua carta culminava com a informação de que preces estavam sendo convictamente endereçadas a Deus, a fim de que me concedesse a “faithy to believe” – fé para crer. Ainda estou esperando o resultado dessa intercessão. Enquanto isso, a experiência religiosa de meu colega fornece substância para reflexão. Parece-me exigir uma certa tentativa de interpretação baseada em motivos emocionais, pois sua experiência é, em si mesma, enigmática, e baseada numa lógica particularmente ruim. Deus, como bem sabemos, permite que aconteçam horrores nada semelhantes à remoção para a sala de dissecção do cadáver de uma velhinha de aparência agradável. Isso é verdade desde sempre, e deve ter sido enquanto o meu colega americano conduzia seus estudos. Tampouco, como estudante de medicina, pôde ficar tão abrigado do mundo, a ponto de nada conhecer de tais males. Porque, então, sua indignação contra Deus irrompeu precisamente ao receber essa impressão específica na sala de dissecção. Para quem quer que esteja acostumado a encarar analiticamente as experiências internas e as ações dos homens, a explicação é óbvia – tão óbvia, que na realidade se insinuou em minha rememoração dos próprios fatos. Certa vez, quando me referia à carta de meu piedoso colega no decorrer de um debate, disse que ele escrevera que o rosto da mulher morta fizera-o lembrar-se do rosto de sua própria mãe. Na realidade, essas palavras não constavam de sua carta e uma curta reflexão bastará para mostrar que elas não tinham possibilidade de estar lá. Mas essa é a explicação a que somos irresistivelmente forçados por sua descrição afetuosamente enunciada da “sweetfaced dear old Woman” – velhinha de rosto suave. Dessa maneira, a fraqueza de julgamento demostrada pelo jovem médico deve ser explicada pela emoção nele despertada pela lembrança de sua mãe. É difícil fugir ao mau hábito psicanalítico de apresentar como prova pormenores que também permitiriam explicações mais superficiais – e fico tentado a recordar o fato de que posteriormente meu colega se dirigiu a mim com “brother Physician” – irmão na medicina. Podemos supor, portanto, que foi assim que as coisas aconteceram. A visão de um cadáver de mulher, nu ou a ponto de ser despido, recordou ao jovem sua mãe. Despertou nele um anseio pela mãe que se originava de seu complexo de Édipo (1), e isso foi imediatamente completado por um sentimento de indignação contra o pai. Suas ideias de “pai” e “Deus” ainda não se tinham separado inteiramente. De modo que seu desejo de “destruir o pai” podia tornar-se consciente como dúvida a respeito da existência de Deus. Procurando justificar aos olhos da razão como indignação com o mau trato dado a um objeto materno. Naturalmente, é típico do filho considerar como mau trato o que o pai faz a mãe nas relações sexuais. O novo impulso, descolado para a esfera da religião, constituía apenas uma repetição da situação edipiana. Consequentemente, logo se defrontou com uma sorte semelhante, ou seja, sucumbiu a uma poderosa corrente oposta. Durante o conflito real, o nível do deslocamento não foi sustentado. Não há menção de argumentos em justificação de Deus, não nos é dito quais foram os sinais infalíveis pelos quais Deus provou sua existência de fato ao que duvidava. O conflito parece ter-se desdobrado sob a forma de uma psicose alucinatória: escutaram-se vozes interiores que enunciaram advertências contra a resistência a Deus. Mas o resultado da luta foi mais uma vez apresentado na esfera da religião, e era de um tipo predeterminado pelo destino do complexo de Édipo: submissão completa à vontade de Deus Pai. O jovem tornou-se crente e aceitou tudo o que desde a infância lhe havia sido ensinado sobre Deus e Jesus Cristo. Tivera uma experiência religiosa experimentaria uma conversão. Tudo isso é tão simples e direto que não podemos nos deixar de perguntar se pela compreensão desse caso lançamos qualquer luz sobre a psicologia da conversão em geral. Posso indicar ao leitor um admirável livro sobre o assunto, de autoria de Sante de Sanctis (1862-1935), escrito em 1924, o qual, incidentalmente, leva em consideração todas as descobertas da psicanálise. O estudo dessa obra confirma nossa expectativa de que, de modo algum, todos os casos de conversão podem ser compreendidos tão simplesmente quanto esse. Em aspecto algum, contudo, nosso caso contradiz as opiniões sobre o assunto a que se chegou pela pesquisa moderna. O ponto que nossa observação presente coloca em relevo é a maneira pela qual a conversão se ligou a um evento determinante específico. O qual fez com que o ceticismo do indivíduo flamejasse uma última vez, antes de se extinguir finalmente. Livro O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos. Abraços. Davi

 

Referência: (1). www.psicanaliseclinica.com. O complexo de Édipo é um termo usado por Freud para descrever os sentimentos de um menino a sua mãe – atração – e seu pai – repulsa. Isto é, o desejo do menino pela mãe e o consequente ciúme que sente pelo pai. É como se o filho visse o pai como rival, ao querer atenção e afeto de sua mãe. Afinal, a criança antes se confundia com a própria mãe durante a gestação. Depois, na fase de amamentação e nos primeiros meses de vida, a criança começa a si distanciar da mãe. Porém, contina tendo da mãe um grande foco de atenção. Gradativamente ela sente que a mãe lhe diminui a atenção, percebendo a existência do pai como uma suposta causa.

 

www.scielo.br. Sigmund Freud viveu em Viena – Áustria, setenta e nove anos de sua vida. Tinha nascido no seio de uma família judia, na vila morávia de Freiberg – atual República Tcheca, nesse momento parte do Império Austro-Húngaro, como Scholomo Freud. Em 6 de maio de 1856, havia emigrado junto a sua família, ainda criança, para Leipzig, e logo, em 1859 para Viena. Ao que parece o fracasso comercial de seu pai Jacob Freud, levou a família, junto a milhares de judeus do Leste Europeu, a procurar melhores possibilidades na capital do então Império, Viena. No outono de 1891, já médico, com trinta e cinco anos e pai de três filhos dos seis que teria, instalou-se no número 19 da rua Berggasse onde viveria e trabalharia quarenta e sete anos. Esse lugar, seu quartel general, presenciou o nascimento e desenvolvimento da Psicanálise. Devemos lembrar que, em 1938, Sigmund Freud foi obrigado a abandonar a Áustria ante a ocupação nazista do dia 12 de março desse ano. Nesse triste dia, Freud escrevia na sua Crônica: Finis Austriae. Por isso, após longas e penosas negociações com os nazistas, parte da família Freud, quatro irmãs morreriam mais tarde no Campo de Concentração de Theresienstadt. Em 4 de junho de 1938, graças à ajuda inestimável de seus amigos e discípulos, principalmente, Ernest Jones (1879-1958) e Marie Bonaparte (1882-1962), Freud pôde deixar Viena, via Paris, rumo a Londres – Reino Unido, morrendo de câncer um ano depois em 1939.

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