Psicanálise. Livro O Futuro
de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos. Escrito por
Sigmund Freud (1856-1939). UMA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA. No outono de 1927, G. S.
Viereck, jornalista teuto-americano que me fizera uma visita de boas-vindas,
publicou o relato de uma conversa comigo, no correr da qual mencionei minha
falta de fé religiosa e minha indiferença quanto ao tema da sobrevivência
depois da morte. Essa “entrevista”, como foi chamada, foi amplamente lida e
trouxe-me, entre outras, a seguinte carta de um médico americano. O que mais me
impressionou foi sua resposta à pergunta sobre se acreditava numa sobrevivência
da personalidade depois da morte. Consta que o senhor disse: “Não penso no
assunto”. Escrevo-lhe agora para lhe narrar uma experiência que tive no ano em
que me formei na Universidade X. Certa tarde, ao atravessar a sala de disseção,
minha atenção foi atraída por uma velhinha de rosto suave que estava sendo
conduzida para uma mesa de dissecção – separar parte de um corpo ou de um órgão
humano. Essa mulher de rosto suave me causou tal impressão de que um pensamento
atravessou minha mente: “Não existe Deus, se existisse, não permitiria que essa
pobre velhinha fosse levada a sala de dissecção”. Quando voltei para casa
naquela tarde, o sentimento que experimentara à visão na sala de disseção,
fizera-me decidir não mais continuar indo à igreja. As doutrinas do
cristianismo, antes disso, já tinha sido objetos de dúvidas em meu espírito.
Enquanto meditava sobre o assunto, uma voz falou-me a alma que “deveria
considerar o passo que estava a ponto de dar”. Meu espírito replicou a essa voz
interior: Se eu tivesse a certeza de que o cristianismo é verdade e que a
Bíblia Sagrada é a palavra de Deus, então eu os aceitaria. No decorrer das semanas
seguintes, Deus tornou clara para minha alma que a Bíblia era a sua palavra.
Que os ensinamentos a respeito de Jesus Cristo eram verdadeiros e que Jesus era
nossa única salvação. Após uma revelação tão clara, aceitei a Bíblia como sendo
a palavra de Deus, e Jesus Cristo, como meu Salvador pessoal. Desde então,
Deus, se revelou a mim por meio de muitas provas infalíveis. Imploro-lhe, como
um irmão na medicina, para refletir sobre esse tema tão importante e, posso
garantir-lhe, se o considerar com a mente aberta, Deus revelará a verdade à sua
alma, assim como fez comigo e com uma infinidade de outros. Enviei-lhe uma
resposta polida, dizendo que ficava contente em saber que essa experiência o
havia capacitado a manter sua fé. Quanto a mim, Freud, Deus não fizera o mesmo
comigo. Nunca me permitira ouvir uma voz interior e se, em vista da minha
idade, não se apressasse, não seria culpa minha se eu permanecesse até o fim de
minha vida o que agora sou – “an infidel jew” – um judeu infiel. Quando de uma
resposta amistosa, meu colega garantiu-me que ser judeu não constituía
obstáculo no caminho para a fé verdadeira e provou isso com diversos exemplos.
Sua carta culminava com a informação de que preces estavam sendo convictamente
endereçadas a Deus, a fim de que me concedesse a “faithy to believe” – fé para
crer. Ainda estou esperando o resultado dessa intercessão. Enquanto isso, a
experiência religiosa de meu colega fornece substância para reflexão. Parece-me
exigir uma certa tentativa de interpretação baseada em motivos emocionais, pois
sua experiência é, em si mesma, enigmática, e baseada numa lógica
particularmente ruim. Deus, como bem sabemos, permite que aconteçam horrores
nada semelhantes à remoção para a sala de dissecção do cadáver de uma velhinha
de aparência agradável. Isso é verdade desde sempre, e deve ter sido enquanto o
meu colega americano conduzia seus estudos. Tampouco, como estudante de
medicina, pôde ficar tão abrigado do mundo, a ponto de nada conhecer de tais
males. Porque, então, sua indignação contra Deus irrompeu precisamente ao
receber essa impressão específica na sala de dissecção. Para quem quer que
esteja acostumado a encarar analiticamente as experiências internas e as ações
dos homens, a explicação é óbvia – tão óbvia, que na realidade se insinuou em
minha rememoração dos próprios fatos. Certa vez, quando me referia à carta de
meu piedoso colega no decorrer de um debate, disse que ele escrevera que o
rosto da mulher morta fizera-o lembrar-se do rosto de sua própria mãe. Na
realidade, essas palavras não constavam de sua carta e uma curta reflexão
bastará para mostrar que elas não tinham possibilidade de estar lá. Mas essa é
a explicação a que somos irresistivelmente forçados por sua descrição
afetuosamente enunciada da “sweetfaced dear old Woman” – velhinha de rosto
suave. Dessa maneira, a fraqueza de julgamento demostrada pelo jovem médico
deve ser explicada pela emoção nele despertada pela lembrança de sua mãe. É
difícil fugir ao mau hábito psicanalítico de apresentar como prova pormenores
que também permitiriam explicações mais superficiais – e fico tentado a
recordar o fato de que posteriormente meu colega se dirigiu a mim com “brother
Physician” – irmão na medicina. Podemos supor, portanto, que foi assim que as
coisas aconteceram. A visão de um cadáver de mulher, nu ou a ponto de ser
despido, recordou ao jovem sua mãe. Despertou nele um anseio pela mãe que se
originava de seu complexo de Édipo (1), e isso foi imediatamente completado por
um sentimento de indignação contra o pai. Suas ideias de “pai” e “Deus” ainda
não se tinham separado inteiramente. De modo que seu desejo de “destruir o pai”
podia tornar-se consciente como dúvida a respeito da existência de Deus.
Procurando justificar aos olhos da razão como indignação com o mau trato dado a
um objeto materno. Naturalmente, é típico do filho considerar como mau trato o
que o pai faz a mãe nas relações sexuais. O novo impulso, descolado para a
esfera da religião, constituía apenas uma repetição da situação edipiana.
Consequentemente, logo se defrontou com uma sorte semelhante, ou seja, sucumbiu
a uma poderosa corrente oposta. Durante o conflito real, o nível do
deslocamento não foi sustentado. Não há menção de argumentos em justificação de
Deus, não nos é dito quais foram os sinais infalíveis pelos quais Deus provou
sua existência de fato ao que duvidava. O conflito parece ter-se desdobrado sob
a forma de uma psicose alucinatória: escutaram-se vozes interiores que
enunciaram advertências contra a resistência a Deus. Mas o resultado da luta foi
mais uma vez apresentado na esfera da religião, e era de um tipo predeterminado
pelo destino do complexo de Édipo: submissão completa à vontade de Deus Pai. O
jovem tornou-se crente e aceitou tudo o que desde a infância lhe havia sido
ensinado sobre Deus e Jesus Cristo. Tivera uma experiência religiosa
experimentaria uma conversão. Tudo isso é tão simples e direto que não podemos
nos deixar de perguntar se pela compreensão desse caso lançamos qualquer luz
sobre a psicologia da conversão em geral. Posso indicar ao leitor um admirável
livro sobre o assunto, de autoria de Sante de Sanctis (1862-1935), escrito em
1924, o qual, incidentalmente, leva em consideração todas as descobertas da
psicanálise. O estudo dessa obra confirma nossa expectativa de que, de modo
algum, todos os casos de conversão podem ser compreendidos tão simplesmente
quanto esse. Em aspecto algum, contudo, nosso caso contradiz as opiniões sobre
o assunto a que se chegou pela pesquisa moderna. O ponto que nossa observação
presente coloca em relevo é a maneira pela qual a conversão se ligou a um
evento determinante específico. O qual fez com que o ceticismo do indivíduo
flamejasse uma última vez, antes de se extinguir finalmente. Livro O Futuro de
uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos. Abraços. Davi
Referência: (1). www.psicanaliseclinica.com. O
complexo de Édipo é um termo usado por Freud para descrever os sentimentos de
um menino a sua mãe – atração – e seu pai – repulsa. Isto é, o desejo do menino
pela mãe e o consequente ciúme que sente pelo pai. É como se o filho visse o
pai como rival, ao querer atenção e afeto de sua mãe. Afinal, a criança antes
se confundia com a própria mãe durante a gestação. Depois, na fase de
amamentação e nos primeiros meses de vida, a criança começa a si distanciar da
mãe. Porém, contina tendo da mãe um grande foco de atenção. Gradativamente ela
sente que a mãe lhe diminui a atenção, percebendo a existência do pai como uma
suposta causa.
www.scielo.br.
Sigmund Freud viveu em Viena – Áustria, setenta e nove anos de sua vida. Tinha
nascido no seio de uma família judia, na vila morávia de Freiberg – atual
República Tcheca, nesse momento parte do Império Austro-Húngaro, como Scholomo
Freud. Em 6 de maio de 1856, havia emigrado junto a sua família, ainda criança,
para Leipzig, e logo, em 1859 para Viena. Ao que parece o fracasso comercial de
seu pai Jacob Freud, levou a família, junto a milhares de judeus do Leste
Europeu, a procurar melhores possibilidades na capital do então Império, Viena.
No outono de 1891, já médico, com trinta e cinco anos e pai de três filhos dos
seis que teria, instalou-se no número 19 da rua Berggasse onde viveria e
trabalharia quarenta e sete anos. Esse lugar, seu quartel general, presenciou o
nascimento e desenvolvimento da Psicanálise. Devemos lembrar que, em 1938,
Sigmund Freud foi obrigado a abandonar a Áustria ante a ocupação nazista do dia
12 de março desse ano. Nesse triste dia, Freud escrevia na sua Crônica: Finis
Austriae. Por isso, após longas e penosas negociações com os nazistas, parte da
família Freud, quatro irmãs morreriam mais tarde no Campo de Concentração de
Theresienstadt. Em 4 de junho de 1938, graças à ajuda inestimável de seus
amigos e discípulos, principalmente, Ernest Jones (1879-1958) e Marie Bonaparte
(1882-1962), Freud pôde deixar Viena, via Paris, rumo a Londres – Reino Unido,
morrendo de câncer um ano depois em 1939.
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