quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

I. O ALCORÃO - Sua história e origem

 

Islamismo. I. O ALCORÃO. Sua história e origem. Helmei Nasr (1922-2019). Ex-Professor de Língua e Literatura árabe da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. INTRODUÇÃO. Ao examinarmos rapidamente os livros religiosos escritos em línguas ocidentais, reparamos logo na existência de um vácuo bem amplo e profundo devido ao seu silêncio no que diz respeito à revelação corânica. Todos os seus esforços se reduzem em traduções literais do texto sagrado, encarando levemente os pontos essenciais sem jamais aprofundá-los. Quanto à composição do texto do Alcorão, de sua origem, da forma pela qual foi revelado, das hipóteses que podem ser analisadas e das dúvidas que podem ser esclarecidas, tudo isso geralmente permanece indeterminado. Devido a esse fato parece-nos indispensável a retomada do assunto abordando-o segundo o método que acreditamos seja o mais objetivo cuja finalidade é a de esclarecer, na medida do possível, os pontos que colocamos e certas lacunas que subsistem a respeito do Alcorão. 1) A história do Alcorão. Conforme a etimologia árabe a palavra Alcorão, entre outras interpretações, é o infinito do verbo 'ler'. A seguir esse infinito tornou-se um nome próprio ao denominar a revelação de Deus a seu apóstolo Mohamad. Anote-se que essa denominação também pode ser usada ou para a totalidade do Alcorão ou para uma parte dele, de tal forma que qualquer versículo pode levar esse nome. Segundo a tradição Mohamad recebia o Alcorão através do anjo Gabriel e o transmitia aos crentes que, sendo árabes puros e possuidores de uma notável memória, decoravam imediatamente o que lhes era transmitido. Anote-se, ainda, que a maioria desses árabes era analfabeta e não tinha nem meios e nem possibilidades de transcrever a revelação. Originalmente, o Alcorão foi revelado aos poucos, segundo a evolução dos acontecimentos, começando por volta do ano 610 de nossa era, perdurando durante vinte e três anos, ou seja, até a morte do Profeta. Tal tempo de revelação é praticamente dividido em dois períodos, mequinense e medinense, ou antes, conforme a sua anterioridade ou posterioridade à Hégira. Desses dois períodos, o primeiro tem a duração de quase treze anos e o segundo de dez, assim se compreendendo a razão pela qual onze capítulos se chamam de "medinenses", Medina, e os outros de "mequinenses" Meca. Hoje em dia, o Alcorão se nos apresenta num só volume composto de quase setecentas páginas e dividido em cento e quatorze "suras", ou capítulos, desiguais em sua extensão. Salvo a introdução, composta de cinco pequenas linhas, em geral as "suras" são dispostas segundo a sua extensão relativa: as mais extensas no começo, as médias no meio, e as curtas ao final. No Alcorão, encontram-se sinais diacríticos, vocálicos, ortográficos, e os sinais de pronúncia para indicar ao leitor o lugar correto das pausas. Tal não era o Alcorão do tempo do Profeta. Seu texto permanece rigorosamente o mesmo, mas o seu aspecto é totalmente diverso . Primeiramente, não havia o que se chama de volume, pois o Alcorão foi revelado sob a forma de fragmentos que variavam a partir de um capítulo completo até um versículo e, às vezes, parte de um versículo. Cada fragmento revelado ao Profeta era recitado por ele, apreendido pelos seus ouvintes e divulgado entre os que não o ouviam diretamente. Ao mesmo tempo em que cada fragmento era memorizado, era também transcrito em qualquer objeto ao alcance dos escribas: papel, ramos de palmeira, pergaminho, pedras planas, ossos do ombro de animais etc. O número de pessoas que no tempo do Profeta colaboraram na escrita do Alcorão é elevado a vinte e nove, entre as quais encontramos os cinco primeiros califas, Abu Bakr, Omar, Osman, Ali e Muâwia, assinalando-se, ainda, que os crentes que sabiam escrever, não tardaram a reproduzir o texto revelado em escritos pessoais para seu uso particular. Todavia, a respeito de sua forma escrita, os fragmentos do Alcorão, primitivamente não visavam a formação de uma coleção homogênea, classificada e numerada. As "suras", com efeito, não poderiam receber a sua estrutura definitiva senão depois da morte do Profeta. Desde cedo, porém, percebeu-se que os fragmentos não eram destinados nem a permanecer completamente isolados e nem a tomar uma sequência determinada pela ordem cronológica de sua revelação. Verificou-se que vários grupos de textos se desenvolveram isoladamente uns dos outros e passavam a constituir, pouco a pouco, unidades independentes pela adição de outros versículos que mais tarde juntaram-se a eles e que deviam, segundo a indicação do Profeta, se colocar em lugares diversos. Com o fim de deixar a abertura para tais construções progressivas foi então necessário que se esperasse o termo do livro antes de se colocá-lo num só corpo. No entanto, pela ausência de uma sequência contínua entre os fragmentos escritos, cada passagem, em todas as etapas da revelação, oralmente conhecia sempre o seu lugar determinado nesta ou naquela "sura". Assim, durante a vida do Profeta, centenas de companheiros seus, chamados de "portadores do Alcorão", já eram especialistas na leitura do livro e sabiam de cor cada "sura" em sua forma indicada, provisória ou definitiva. Apenas um ano após a morte do Profeta sentiu-se a necessidade de se recolher esses documentos espalhados numa só coleção maneável, fácil de se consultar e na qual as partes de cada capítulo se ligassem conforme a ordem já fixada nas memórias e sem uma solução de continuidade . Essa ideia foi sugerida por Omar ao primeiro califa Abu Bakr após a batalha de Iamâmah contra o falso profeta Mussailama, batalha está em que foram mortos centenas de muçulmanos incluindo setenta "portadores do Alcorão". Temendo-se uma diminuição progressiva do número desses "portadores" pelas eventuais guerras, os dirigentes ensejaram, dessa forma, a colocação da totalidade da fonte escrita em segurança e a aprovação da forma desse documento. Reunido pela autoridade dos leitores existentes e de todos os companheiros do Profeta, os quais separadamente sabiam, cada um, determinadas partes do Alcorão. Essa tarefa foi confiada a Zaid Ibn Sabit, que, consciente de sua pesada responsabilidade, estabeleceu uma regra de trabalho e aplicou-a rigorosamente: não se admitiria nenhum escrito que não fosse certificado por duas testemunhas como sendo redigido não pela memória, mas pela recitação do próprio Profeta e perfazendo parte do texto em seu último estágio . Concluído o livro com toda a precaução, Zaid entregou-o em mãos de Abu Bakr que o guardou consigo durante o seu califado. Antes de sua morte o primeiro califa confiou-o a Omar que tinha sido escolhido como seu sucessor. Este, por sua vez, nos últimos momentos de sua vida remeteu-o à sua filha Hafsa, uma das viúvas do Profeta, já que o terceiro califa ainda não tinha sido designado . Além de sua integralidade, essa primeira coleção oficial, a qual se pode imaginar sob a forma de um auto a que se juntavam páginas classificadas, mas não ligadas, distingue-se por uma espécie de rigorismo absoluto das outras cópias integrais ou parciais então existentes. Todavia, tal coleção só adquiriu a sua autoridade universal a partir do dia em que foi publicada. A oportunidade dessa publicação se apresentou no tempo de Osman, o terceiro califa, após as batalhas de Arminha e Azirbaijã. Com efeito, os exércitos da Síria e do Iraque ao serem reunidos nessa ocasião perceberam algumas diferenças em suas recitações. Os sírios seguiam a leitura de seu mestre Obai Ibn Caab, enquanto os iraquianos seguiam a de Ibn Massoud, até chegarem ao ponto de se replicarem mutuamente: "Nossa lição é melhor do que a sua". Assustado por tal espetáculo, Huzaifa Ibn Al Iamani encontrou-se com o califa Osman e lhe pediu que pusesse fim em tal disputa que poderia estabelecer divisões semelhantes às dos judeus e cristãos a respeito de seus livros. Osman formou então um grupo de quatro copistas encarregando-os da cópia do original de Hafsa em número de exemplares tanto quanto o número das principais cidades do império islâmico. Concluído o trabalho em perfeita concordância com o original, este foi devolvido à Hafsa e os outros exemplares foram encadernados e distribuídos como protótipos imutáveis . Ao mesmo tempo foram anulados todos os outros textos que apresentavam alguma diferença com os novos. Essa edição, desde quatorze séculos, é a única em vigor no mundo islâmico e a respeito dela concluiu Noeldeke que o seu texto "foi tão completo e fiel da forma como se poderia esperar", e afirmou Leblois "o Alcorão é hoje o único livro sagrado que não apresenta variantes notáveis"). 2) A origem do Alcorão. Após essa revisão histórica passaremos ao problema da origem do Alcorão e discutiremos, na medida do possível, todas as hipóteses viáveis a fim de que possamos atingir uma meta. Como todas as obras originais, o Alcorão se compõe de estilo e de ideias, e conforme a opinião de árabes autênticos o seu estilo é tão superior que não se pode, de forma alguma, imitá-lo. Na literatura árabe tal fato é considerado consumado. Na impossibilidade de se discutir aqui a evidência dessa afirmação podemos nos abster do argumento que se pode chegar através da maravilha do estilo corânico em favor de sua divindade. A partir disso, podemos simplesmente indagar se as ideias que o Alcorão apresenta podem ser explicadas por outros meios que não pela revelação. A esse respeito encontramos diversas pesquisas e devemos mencionar, em favor do Alcorão, o fato de que ele registra fielmente todas as hipóteses de contemporâneos do Profeta na tentativa de fornecer uma explicação desse gênero . Essas hipóteses esgotaram não só as possíveis soluções, mas também as extravagâncias que um espírito pode criar até o ponto em que podemos afirmar que as pesquisas modernas apenas conseguem desenvolver ou repetir, sob uma forma ou outra, as mesmas tentativas dos antigos. A hipótese mais simplista é a que pretende encontrar no ambiente restrito da cidade natal do Profeta, Meca, os elementos necessários para a elaboração do Alcorão. Segundo fontes históricas fidedignas, porém, nessa cidade nada se encontra para o apoio de tal opinião. Como se sabe, os árabes eram pagãos e a sua sociedade estava contaminada por determinados vícios incontestáveis: o infanticídio, a prostituição, o incesto, a consideração da mulher como parte da herança, a opressão aos orfãos, os conflitos permanentes entre as tribos etc. E' certo que se distinguiam nessa época algumas pessoas conhecidas na tradição árabe sob o nome de hanifas, isto é, refratários à opinião comum. Tais pessoas, porém, representavam apenas espíritos descontentes. O politeísmo e as tradições relaxadas de seus concidadãos não satisfaziam as suas almas e aspirando uma religião sã e santa pretendiam encontrá-la fora desse ambiente, sendo que dela, porém, não tinham nenhuma noção precisa que pudesse anunciar, mesmo longinquamente, a doutrina corânica Zaid Ibn Nufail, o mais firme e o mais independente elemento desse grupo confessavam solenemente ignorar de que modo Deus devia ser adorado. Assim, refinado ou grosseiro, o ambiente de Meca nada nos fornece como explicação da origem do Alcorão. Talvez os meios cristão e judaico nos forneçam algumas luzes sobre a questão, e para tanto examinemos a hipótese seguinte: viviam nos subúrbios de Meca aventureiros cristãos de origem romana e abissínia, vendedores de vinho e habitantes de certos bairros excêntricos. Ora, se disse que julgando-se, consequentemente, que teria sido dessa forma que Mohamad teve contatos com as ideias religiosas. Tal pretensão, porém, sob o ponto de vista científico, não tem fundamento, pois deixa-nos num vácuo já que não existe nenhum documento preciso sobre essa espécie de relações de Mohamad. Aliás, temos muitas razões para não levar a sério a possibilidade e a fecundidade de tal relacionamento. As ocupações do futuro Profeta são conhecidas e delimitadas pela História a qual nos apresenta essa personagem sucessivamente em três lugares: na solidão de um guarda de rebanho, no comércio caravaneiro e na alta sociedade com os chefes . Nem pelas tradições, nem pela sua nascença e nem pelo itinerário de suas ocupações se pode imaginá-lo como hóspede de ambientes licenciosos. Em segundo lugar, tal contacto teria sido inútil não apenas porque tais pessoas conheciam mal a sua própria religião, mas também porque a sua língua estrangeira os constituía um obstáculo intransponível. Em terceiro lugar, se esse ambiente tivesse se constituído em fonte de utilidade para o Profeta não seria mais natural que os seus adversários explorassem esse fato para esmagar a sua missão ao invés de procurar os seus argumentos em Medina, conforme o que nos diz a História? Falemos antes sobre uma hipótese culturalmente mais ampla a qual pretende que as ideias e as práticas religiosas teriam contribuído para a formação da doutrina islâmica. Sabe-se que durante a sua juventude, Mohamad teve a ocasião de visitar a Síria e provavelmente também o Iêmen por motivos de negócio . Ora, sabemos que os ghassanitas da Síria como também os Bani Hariç de Najrân, no Iêmen, tinham adotado o Cristianismo, sem falar das tribos judias de Medina com as quais o Profeta só teve contacto, mais tarde, após a Hégira, sendo possível de se supor, então, que Mohamad tenha se impressionado pelas tradições delicadas e pelas ideias mais sãs reinantes nessas regiões. É assim que pensa Godziher . Com efeito, esse autor considera que o confronto da vida e dos costumes de seus compatriotas com as impressões vivas que adquirira em suas viagens forneceu a Mohamad o primeiro impulso para a grande reforma. Até que ponto, porém, podemos nos apoiar em tal explicação para solucionar semelhante questão? Abraço. Davi

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