Islamismo. II. O ALCORÃO. Sua
história e origem. Helmei Nasr (1922-2019). Ex-Professor de Língua e Literatura
Árabe da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Quanto a isso
anote-se que primeiramente que subsistem dúvidas a respeito da penetração de
Mohamad em regiões cristãs propriamente ditas, pois no Alcorão se encontram
alusões aos caracteres externos do culto cristão, se referindo, entretanto, com
maior compreensão a respeito do profundo espírito do Cristianismo oriental.
Aliás, certos autores confirmam que as caravanas com as quais seguia Mohamad
não se conduziam além de alguns locais determinados pelos negócios .
Supondo-se, porém, que ele tenha tido contatos com o Cristianismo. ele não
colheria vantagens, pois a religião cristã da época estava num estado
lamentável conforme o que Taylor nos afirma. Em condições ainda piores
encontrava-se a situação dos árabes convertidos ao Cristianismo, já que
conservaram muitos resquícios do paganismo. Cite-se, para tanto, o que Ali
afirmou ao se referir a respeito da tribo de Taghlib: "Eles não receberam
do Cristianismo senão o hábito de tomar vinho". Assim se identificava o
ambiente em que vivia o futuro Profeta e em todas as partes onde ele se dirigia
encontrava aberrações a serem eliminadas e desvios a serem retificados de tal
forma que em lugar algum poderia ter se defrontado com um modelo moral e
religioso do qual teria copiado a sua obra reformadora. Ampliando o campo de
nossa investigação poderíamos objetivar a origem do Alcorão em fontes faladas e
escritas. A primeira solução possível seria a que supõe que Mohamad teria
extraído suas ideias através de uma leitura direta das revelações anteriores,
judias, cristãs e outras. Surge-nos, porém, imediatamente uma pergunta: O
Profeta Mohamad sabia ler? O Alcorão é uma fonte histórica fidedigna e nos
responde negativamente. Com efeito, é uma afirmação indiscutível a de que
Mohamad era analfabeto. Todavia, supondo-se mesmo que ele soubesse ler se
defrontaria com uma outra dificuldade, ou seja, a de que nesse momento ainda
não existia uma Bíblia em árabe, tanto o antigo como o Novo Testamento.
"Só alguns séculos mais tarde é que surgiu uma Bíblia em língua árabe e só
nos séculos IX e X é que se fez sentir a necessidade de uma tradução árabe do
Evangelho". Sendo assim, Mohamad não teve os meios e nem a possibilidade
de extrair as suas ideias diretamente dos textos bíblicos, assinalando-se,
também, que para as ter extraído indiretamente teria a necessidade de
informações metódicas da parte de competentes doutores bilingues. A História,
porém, não esclarece sinal algum de um contacto real entre o Profeta e tais
sábios antes da Hégira, a fuga de Mohamad da cidade de Meca para Medina –
Arábia Saudita. Depois disso ainda nos resta a indagação sobre a origem das
ideias de Mohamad. A esse respeito o próprio Alcorão não se cala, ao tratar da
novidade de seu ensino em relação aos árabes e ao próprio Profeta. Em várias
passagens, mencionando este ou aquele episódio da história sagrada, não deixa
de afirmar que antes de ser encarregado de sua missão Mohamad e seu povo não
estavam familiarizados com essa história. Permanece para nós o exame de um
outro aspecto que poderia intervir nessa questão, ou seja, a clarividência
pessoal do Profeta. Com efeito, se pode supor que durante o seu curto
isolamento ou durante a sua solidão pastoral esse "sonhador" se
entregava à meditações profundas questionando sobre o que seria a verdade nos
assuntos religiosos, optando, a seguir, pelas novas ideias. Exige-se, aqui, uma
distinção entre os dois níveis do conhecimento humano: o empírico e o racional.
A história humana não se dobra à nossa lógica e subsistem absurdidades
históricas que contradizem o nosso raciocínio. Não seria ao se curvar sobre si
mesmo que Mohamad poderia descobrir que este ou aquele acontecimento decorreu
nesta ou naquela data. Ora, é precisamente sobre o paralelismo da história
sagrada do Alcorão e dos livros precedentes que sempre se insiste na indagação
do meio pelo qual se realizou tal concordância. As meditações racionais, sem
efeito sobre o mundo empírico, são sem dúvida uma excelente ajuda para a
elucidação das verdades eternas. Qual seria, então, o valor da razão pura em
relação à religião? Bem limitado, poderíamos dizê-lo. Ela nos revela,
evidentemente, a falsidade, a inanidade e a extravagância da idolatria e da
superstição, uma vez, porém, eliminados esses caracteres pagãos, o que então se
combateria? Podemos então concluir que nunca uma doutrina se baseia
exclusivamente em noções negativas. É verídico o fato de que o ambiente mudou
após a Hégira, mas a sua resultante, no tocante ao nosso assunto, permaneceu em
mesmo nível. Efetivamente, de um meio pagão, ignorante e oposto, o Profeta
transferiu-se para um outro, acolhedor, amigo e culto, e daí em diante
permaneceu em contacto com uma comunidade religiosa não apenas organizada, mas
também fundamentada em um livro sagrado, ou seja, os judeus de Medina . Agora,
poderíamos questionar sobre a fecundidade desse novo ambiente para a
objetivação do que procuramos. Consideramos primeiramente a disposição geral do
espírito corânico, mesmo antes da Hégira, para verificarmos se ele julgava a
nova circunstância como sendo realmente representativa da virtude revelada e
consequentemente digna de ser um modelo a ser observado. É curiosa a
constatação do espantoso contraste entre a permanente atitude corânica no que
se refere ao mundo judeu e ao mundo cristão. Quando fala a respeito do
Cristianismo se não faz elogios, pelo menos censura-o num tom relativamente
tolerante. Não se verifica o mesmo ao se tratar de judeus, julgando-os como
homens que já não seguiam a revelação e sim inspirações satânicas. Fazendo
alusões ao suplício pelo fogo que os judeus do Iêmen tinham imposto aos
cristãos, ele toma partido destes declarando que tal crime era um atentado
contra as verdades da fé. Posteriormente, em Medina, ele não apenas mantém a
sua posição, mas multiplica as condenações . Aqueles que receberam o
Pentateuco, diz ele, e que ensinam a Escritura, não a observam fielmente, e
graças a uma ilusão religiosa eles se permitem à corrupção e à mentira. Não
seria espantoso de se supor que esse mesmo povo que o Alcorão julga tão
severamente pudesse lhe servir de modelo ou de fonte de ensino? Assim, à luz
dos fatos, a hipótese de uma origem humana do Alcorão não pode ser apoiada, e
observando o fundador através de sua dupla carreira, “profana” e sagrada, na
sua cidade natal e na última residência, na sua capacidade de leitura e na sua
disponibilidade de documentação. Conclui-se que todos os meios de investigação
se mostram incapazes de nos revelar um caminho natural pelo qual ele tivesse
contacto com as verdades sagradas. Graças a uma infinidade de provas coerentes,
estão de acordo no reconhecimento ao Profeta de uma sinceridade psicológica
convincente e comunicativa. Somente tal sinceridade psicológica não exige
necessariamente uma sinceridade real e uma efetiva divindade de suas
inspirações . Pode-se admitir, contudo, que um inspirado seja vítima de uma
ilusão consciente quando surge bruscamente em seu espírito ideias e expressões
que acredita plenamente novas. Enquanto na realidade não representam senão a
renovação de antigas colocações, impressas em sua alma e relegadas ao
esquecimento. Tais ilusões e essa fraqueza de memória seriam sintomas de um
estado mental mais ou menos anormal, o que em hipótese alguma poderia ser
aplicado ao caso que analisamos. Com efeito, nenhum resquício revela nele o
menor defeito mental, e a melhor prova disso é o que fala Renan: "Nenhuma
mente era tão lúcida quanto à sua, O Profeta Mohamad, e nenhum homem possuía
melhor pensamento do que o seu". É verdade que um critério subjetivo é
incapaz de discernir um estado sonhador ou lúcido. Adormecidos ou acordados
achamo-nos igualmente convictos no uso de nossos sentidos e na presença da
realidade, mas seria só através de uma confrontação dos dados dos dois estados
e pelos graus de sua discordância ou de sua concordância é que poderíamos
julgar acertadamente a sua objetividade . É de uma forma completamente lúcida
que Mohamad nos fala de seu duplo contacto com o visível e o invisível e para
ele esse contacto era uma experiência vivida e mil vozes repetida e verificada.
Mas nós, espectadores, não podemos fazer uma experiência subjetiva e viver o
que ele viveu. No entanto, temos um meio de verificação para considerarmos se
se tratava de uma exaltação alucinatória, de um fenômeno patológico ou se foi
mesmo a voz da Verdade que o inspirou. Para tanto devemos levar em consideração
não mais a sua afirmação e a sua convicção, mas o próprio conteúdo de seu
ensino. Nesse tocante basta-nos o exame de dois aspectos do Alcorão para nos
certificarmos de que ele realmente não foi uma obra humana: a) As verdades religiosas morais e históricas.
Ao se observar os preceitos morais do Alcorão vê-se que nenhum entusiasmo
pessoal, nenhuma consciência vaga e indireta dos livros sagrados seriam capazes
de garantir ao Profeta Mohamad a perfeita concordância do Alcorão com as
Escrituras. Isso poderia nos pareceres que ele as tinha constantemente sob os
olhos ou que tinha decorado o texto bíblico para ele extrair o ensino
necessário a cada ocasião. Ao mesmo tempo dessa identidade essencial pode-se
constatar uma independência no tom e na forma com que apresenta as lições. Ou
ainda, se se estabelecer um paralelo no assunto dos atributos divinos, dos
anjos, dos profetas antigos, da outra vida, se evidenciará um fundo comum de
uma espantosa identidade com algumas diferenças secundárias. b) As verdades
científicas. Nas suas exortações da fé e da virtude, o Alcorão, porém, não
extrai as suas lições exclusivamente do ensino tradicional ou dos
acontecimentos decorrentes. Utiliza também os fatos cosmológicos constantes nos
chamando a atenção sobre as leis positivas e imutáveis com o objetivo de
relembrar o criador. Ora, constata-se que as fórmulas que oferece correspondem
exatamente com os últimos dados da ciência como por exemplo a fonte mais
recôndita da qual se extrai o elemento genital de nosso ser. As diferentes
fases de nossa evolução no seio da mãe. A esfericidade do céu e da terra. A
corrida do sol em direção a um ponto fixo. A forma pela qual as sociedades
animais em geral vivem em coletividade não menos coerente do que a coletividade
humana. E a fecundação através dos
ventos. As verdades que o Alcorão ensina são as que todos os espíritos podem
captar e delas tirar um proveito moral, e essa é a razão pela qual ele se
coloca acima de todas as particularidades geográficas, raciais, ou outras
quaisquer. E porque não nomeia as pessoas e os lugares a que se refere, não
retendo deles senão as lições necessárias à educação da humanidade. Tal tom
transcendental é por si mesmo uma demonstração de que o Alcorão não é uma obra
humana e sim uma revelação própria de um contexto divino.
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA. —
Alcorão, versão portuguesa de Bento de Castro, Lourenço Marques, 1964. — A.
Chahin, Târikh al Koran (A História do Alcorão), ed. Dar Al Kalam, Cairo, 1966.
— Al Zurcâni, Ulum al Koran (As Ciências do Alcorão), ed. Al Halabi, Cairo,
1943. — Hassan Ibrahim, Târikh al Iriam (A História do Islão), ed. Al Nahda,
Cairo, 1964. — Ibn Hicham, Al Sirah (A Biografia do Profeta), ed. Al Halabi,
Cairo, 1955. — Ibn Khaldoun, Al Mukaddima (Os Prolegômenos), ed. Lajnatu Al
Bian Al Arabi, Cairo, 1965. — M. A. Draz, Initiation au Koran, ed. Al Maarif,
Cairo, 1950. — Vincent Monteil, L'Arabe Moderne, ed. Klincksieck, Paris, 1960.
Abraço. Davi
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