sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

II. O ALCORÃO

 

Islamismo. II. O ALCORÃO. Sua história e origem. Helmei Nasr (1922-2019). Ex-Professor de Língua e Literatura Árabe da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Quanto a isso anote-se que primeiramente que subsistem dúvidas a respeito da penetração de Mohamad em regiões cristãs propriamente ditas, pois no Alcorão se encontram alusões aos caracteres externos do culto cristão, se referindo, entretanto, com maior compreensão a respeito do profundo espírito do Cristianismo oriental. Aliás, certos autores confirmam que as caravanas com as quais seguia Mohamad não se conduziam além de alguns locais determinados pelos negócios . Supondo-se, porém, que ele tenha tido contatos com o Cristianismo. ele não colheria vantagens, pois a religião cristã da época estava num estado lamentável conforme o que Taylor nos afirma. Em condições ainda piores encontrava-se a situação dos árabes convertidos ao Cristianismo, já que conservaram muitos resquícios do paganismo. Cite-se, para tanto, o que Ali afirmou ao se referir a respeito da tribo de Taghlib: "Eles não receberam do Cristianismo senão o hábito de tomar vinho". Assim se identificava o ambiente em que vivia o futuro Profeta e em todas as partes onde ele se dirigia encontrava aberrações a serem eliminadas e desvios a serem retificados de tal forma que em lugar algum poderia ter se defrontado com um modelo moral e religioso do qual teria copiado a sua obra reformadora. Ampliando o campo de nossa investigação poderíamos objetivar a origem do Alcorão em fontes faladas e escritas. A primeira solução possível seria a que supõe que Mohamad teria extraído suas ideias através de uma leitura direta das revelações anteriores, judias, cristãs e outras. Surge-nos, porém, imediatamente uma pergunta: O Profeta Mohamad sabia ler? O Alcorão é uma fonte histórica fidedigna e nos responde negativamente. Com efeito, é uma afirmação indiscutível a de que Mohamad era analfabeto. Todavia, supondo-se mesmo que ele soubesse ler se defrontaria com uma outra dificuldade, ou seja, a de que nesse momento ainda não existia uma Bíblia em árabe, tanto o antigo como o Novo Testamento. "Só alguns séculos mais tarde é que surgiu uma Bíblia em língua árabe e só nos séculos IX e X é que se fez sentir a necessidade de uma tradução árabe do Evangelho". Sendo assim, Mohamad não teve os meios e nem a possibilidade de extrair as suas ideias diretamente dos textos bíblicos, assinalando-se, também, que para as ter extraído indiretamente teria a necessidade de informações metódicas da parte de competentes doutores bilingues. A História, porém, não esclarece sinal algum de um contacto real entre o Profeta e tais sábios antes da Hégira, a fuga de Mohamad da cidade de Meca para Medina – Arábia Saudita. Depois disso ainda nos resta a indagação sobre a origem das ideias de Mohamad. A esse respeito o próprio Alcorão não se cala, ao tratar da novidade de seu ensino em relação aos árabes e ao próprio Profeta. Em várias passagens, mencionando este ou aquele episódio da história sagrada, não deixa de afirmar que antes de ser encarregado de sua missão Mohamad e seu povo não estavam familiarizados com essa história. Permanece para nós o exame de um outro aspecto que poderia intervir nessa questão, ou seja, a clarividência pessoal do Profeta. Com efeito, se pode supor que durante o seu curto isolamento ou durante a sua solidão pastoral esse "sonhador" se entregava à meditações profundas questionando sobre o que seria a verdade nos assuntos religiosos, optando, a seguir, pelas novas ideias. Exige-se, aqui, uma distinção entre os dois níveis do conhecimento humano: o empírico e o racional. A história humana não se dobra à nossa lógica e subsistem absurdidades históricas que contradizem o nosso raciocínio. Não seria ao se curvar sobre si mesmo que Mohamad poderia descobrir que este ou aquele acontecimento decorreu nesta ou naquela data. Ora, é precisamente sobre o paralelismo da história sagrada do Alcorão e dos livros precedentes que sempre se insiste na indagação do meio pelo qual se realizou tal concordância. As meditações racionais, sem efeito sobre o mundo empírico, são sem dúvida uma excelente ajuda para a elucidação das verdades eternas. Qual seria, então, o valor da razão pura em relação à religião? Bem limitado, poderíamos dizê-lo. Ela nos revela, evidentemente, a falsidade, a inanidade e a extravagância da idolatria e da superstição, uma vez, porém, eliminados esses caracteres pagãos, o que então se combateria? Podemos então concluir que nunca uma doutrina se baseia exclusivamente em noções negativas. É verídico o fato de que o ambiente mudou após a Hégira, mas a sua resultante, no tocante ao nosso assunto, permaneceu em mesmo nível. Efetivamente, de um meio pagão, ignorante e oposto, o Profeta transferiu-se para um outro, acolhedor, amigo e culto, e daí em diante permaneceu em contacto com uma comunidade religiosa não apenas organizada, mas também fundamentada em um livro sagrado, ou seja, os judeus de Medina . Agora, poderíamos questionar sobre a fecundidade desse novo ambiente para a objetivação do que procuramos. Consideramos primeiramente a disposição geral do espírito corânico, mesmo antes da Hégira, para verificarmos se ele julgava a nova circunstância como sendo realmente representativa da virtude revelada e consequentemente digna de ser um modelo a ser observado. É curiosa a constatação do espantoso contraste entre a permanente atitude corânica no que se refere ao mundo judeu e ao mundo cristão. Quando fala a respeito do Cristianismo se não faz elogios, pelo menos censura-o num tom relativamente tolerante. Não se verifica o mesmo ao se tratar de judeus, julgando-os como homens que já não seguiam a revelação e sim inspirações satânicas. Fazendo alusões ao suplício pelo fogo que os judeus do Iêmen tinham imposto aos cristãos, ele toma partido destes declarando que tal crime era um atentado contra as verdades da fé. Posteriormente, em Medina, ele não apenas mantém a sua posição, mas multiplica as condenações . Aqueles que receberam o Pentateuco, diz ele, e que ensinam a Escritura, não a observam fielmente, e graças a uma ilusão religiosa eles se permitem à corrupção e à mentira. Não seria espantoso de se supor que esse mesmo povo que o Alcorão julga tão severamente pudesse lhe servir de modelo ou de fonte de ensino? Assim, à luz dos fatos, a hipótese de uma origem humana do Alcorão não pode ser apoiada, e observando o fundador através de sua dupla carreira, “profana” e sagrada, na sua cidade natal e na última residência, na sua capacidade de leitura e na sua disponibilidade de documentação. Conclui-se que todos os meios de investigação se mostram incapazes de nos revelar um caminho natural pelo qual ele tivesse contacto com as verdades sagradas. Graças a uma infinidade de provas coerentes, estão de acordo no reconhecimento ao Profeta de uma sinceridade psicológica convincente e comunicativa. Somente tal sinceridade psicológica não exige necessariamente uma sinceridade real e uma efetiva divindade de suas inspirações . Pode-se admitir, contudo, que um inspirado seja vítima de uma ilusão consciente quando surge bruscamente em seu espírito ideias e expressões que acredita plenamente novas. Enquanto na realidade não representam senão a renovação de antigas colocações, impressas em sua alma e relegadas ao esquecimento. Tais ilusões e essa fraqueza de memória seriam sintomas de um estado mental mais ou menos anormal, o que em hipótese alguma poderia ser aplicado ao caso que analisamos. Com efeito, nenhum resquício revela nele o menor defeito mental, e a melhor prova disso é o que fala Renan: "Nenhuma mente era tão lúcida quanto à sua, O Profeta Mohamad, e nenhum homem possuía melhor pensamento do que o seu". É verdade que um critério subjetivo é incapaz de discernir um estado sonhador ou lúcido. Adormecidos ou acordados achamo-nos igualmente convictos no uso de nossos sentidos e na presença da realidade, mas seria só através de uma confrontação dos dados dos dois estados e pelos graus de sua discordância ou de sua concordância é que poderíamos julgar acertadamente a sua objetividade . É de uma forma completamente lúcida que Mohamad nos fala de seu duplo contacto com o visível e o invisível e para ele esse contacto era uma experiência vivida e mil vozes repetida e verificada. Mas nós, espectadores, não podemos fazer uma experiência subjetiva e viver o que ele viveu. No entanto, temos um meio de verificação para considerarmos se se tratava de uma exaltação alucinatória, de um fenômeno patológico ou se foi mesmo a voz da Verdade que o inspirou. Para tanto devemos levar em consideração não mais a sua afirmação e a sua convicção, mas o próprio conteúdo de seu ensino. Nesse tocante basta-nos o exame de dois aspectos do Alcorão para nos certificarmos de que ele realmente não foi uma obra humana: a)  As verdades religiosas morais e históricas. Ao se observar os preceitos morais do Alcorão vê-se que nenhum entusiasmo pessoal, nenhuma consciência vaga e indireta dos livros sagrados seriam capazes de garantir ao Profeta Mohamad a perfeita concordância do Alcorão com as Escrituras. Isso poderia nos pareceres que ele as tinha constantemente sob os olhos ou que tinha decorado o texto bíblico para ele extrair o ensino necessário a cada ocasião. Ao mesmo tempo dessa identidade essencial pode-se constatar uma independência no tom e na forma com que apresenta as lições. Ou ainda, se se estabelecer um paralelo no assunto dos atributos divinos, dos anjos, dos profetas antigos, da outra vida, se evidenciará um fundo comum de uma espantosa identidade com algumas diferenças secundárias. b) As verdades científicas. Nas suas exortações da fé e da virtude, o Alcorão, porém, não extrai as suas lições exclusivamente do ensino tradicional ou dos acontecimentos decorrentes. Utiliza também os fatos cosmológicos constantes nos chamando a atenção sobre as leis positivas e imutáveis com o objetivo de relembrar o criador. Ora, constata-se que as fórmulas que oferece correspondem exatamente com os últimos dados da ciência como por exemplo a fonte mais recôndita da qual se extrai o elemento genital de nosso ser. As diferentes fases de nossa evolução no seio da mãe. A esfericidade do céu e da terra. A corrida do sol em direção a um ponto fixo. A forma pela qual as sociedades animais em geral vivem em coletividade não menos coerente do que a coletividade humana.  E a fecundação através dos ventos. As verdades que o Alcorão ensina são as que todos os espíritos podem captar e delas tirar um proveito moral, e essa é a razão pela qual ele se coloca acima de todas as particularidades geográficas, raciais, ou outras quaisquer. E porque não nomeia as pessoas e os lugares a que se refere, não retendo deles senão as lições necessárias à educação da humanidade. Tal tom transcendental é por si mesmo uma demonstração de que o Alcorão não é uma obra humana e sim uma revelação própria de um contexto divino.

 

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA. — Alcorão, versão portuguesa de Bento de Castro, Lourenço Marques, 1964. — A. Chahin, Târikh al Koran (A História do Alcorão), ed. Dar Al Kalam, Cairo, 1966. — Al Zurcâni, Ulum al Koran (As Ciências do Alcorão), ed. Al Halabi, Cairo, 1943. — Hassan Ibrahim, Târikh al Iriam (A História do Islão), ed. Al Nahda, Cairo, 1964. — Ibn Hicham, Al Sirah (A Biografia do Profeta), ed. Al Halabi, Cairo, 1955. — Ibn Khaldoun, Al Mukaddima (Os Prolegômenos), ed. Lajnatu Al Bian Al Arabi, Cairo, 1965. — M. A. Draz, Initiation au Koran, ed. Al Maarif, Cairo, 1950. — Vincent Monteil, L'Arabe Moderne, ed. Klincksieck, Paris, 1960. Abraço. Davi

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