Xintoísmo. Bushidor. Br. XINTOÍSMO. Parte VII. Conclusão. O Japão não foi cristianizado como os povos do Ocidente, não conheceu os saberes da civilização greco-romana, nem o Renascimento. Não se aproveitou do desenvolvimento trazido pela tecnologia das revoluções industriais dos séculos XVIII e XIX até a abertura da Era Meiji. Não participou das expedições de conquista ultramarinas empreendidas pelos países europeus a partir do século XV. Desconhecia até pouco mais de um século e meio, o que na Idade Média era conhecida como universitas – centro de pesquisa e conhecimento, embrião das universidades de hoje. Não viveu as grandes agitações da civilização, como a queda do Império Romano e as grandes invasões, as cruzadas e guerras religiosas, nem a Reforma e a Contrarreforma. Desconheceu também as conquistas da Revolução Burguesa e até a menos de um século e meio, ainda vivia no feudalismo, quando o Ocidente o expurgara da sua cartilha política havia quase cem anos. O isolamento de mais de dois séculos a que se submeteu sob o regime dos xoguns - facilitado pelo isolamento geográfico - contribuiu para assentar e reforçar o caráter e pensamento do povo japonês. Ao nativo xintoísmo, da excelência do homem e plena liberdade de crença, vieram juntar-se ideários forâneos que o enriqueceu. Dando-lhe agora as regras morais da convivência social pelo confucionismo e o conforto da vida pós-morte ensinado pelo budismo. O japonês que tinha o passado glorificado pela mitologia, tem no presente os mandamentos éticos do confucionismo e no futuro, a garantia da salvação pelos caminhos do budismo. Passado, presente e futuro complementam-se então na psique do povo, sem que os ensinamentos divirjam; antes, harmonizam-se e influenciam-se mutuamente, emprestando às vezes ensinamentos um ao outro. O príncipe Shotoku no século VI, de lendária sabedoria, ao incentivar a difusão do budismo em terras japonesas, deve ter percebido a harmonia e a complementaridade dos ensinamentos. Para o cumprimento dessa tarefa, o Japão trouxe também a escrita da China, ensinada por ordem do príncipe regente, para suporte do ensino do budismo. Foi então um tríplice acréscimo cultural: o budismo, o confucionismo e a escrita. Além da ampla cultura, que veio anexada inevitavelmente no bojo desse processo, o Japão moldou sua arte, literatura, sistema político e a organização social sob essa forte influência. O Japão não foi berço de nenhum patriarca religioso nem terra de revelações divinas - característica das modernas religiões - e a despeito de possuir uma religião panteísta, pagã, tida por alguns como antiquada, primitiva, selvagem, ainda no estágio pré-antropomórfico e pré-monoteísta, anterior à fase do desenvolvimento das religiões, ao japonês, essa "estagnação na fase primitiva" e falta de "desenvolvimento e modernização", parecem não fazer diferença na prática de sua fé. Ao xintoísmo de caráter absolutamente livre, juntou-se o budismo, religião ateia, não catequizadora, cuja salvação se dá pelo conhecimento e não pela intermediação de entidade espiritual, reforçando no caráter desse povo, a ideia da não-dependência, de liberdade com responsabilidade na busca da salvação, que é sempre individual, ou seja, não há intermediação de pessoa viva ou morta. Ao mesmo tempo o confucionismo lhe ensinava a prevalência do coletivo em detrimento do indivíduo, acentuando a responsabilidade para com o próximo tal qual lhe ensinava o xintoísmo. As estatísticas mostram a liberdade de afirmação religiosa. Em 1994 para uma população de 125 milhões de pessoas, pouco menos da de hoje (127 milhões), havia 115 milhões de xintoístas, 9 milhões de budistas, 1,5 milhão de cristãos e 11 milhões de outras religiões. Cuja soma supera em 90 milhões o número de habitantes, o que revela inclusividade, aceitação de permissiva multiplicidade da prática da fé em várias religiões (Matsumoto Shigeru in TAMARU et alii, op. cit., p. 14). Xintoísmo e budismo se aproximaram, se distanciaram e disputaram poder político, mas nunca digladiaram sobre questões doutrinárias. Pelo contrário, tentou-se até uma unificação, que se chamou genericamente às suas várias seitas de Ryobu-shintô (HERBERT, 1967a, p. 133). O território exíguo de 370 km², espalhado em mais de 4 mil ilhas, 70% ocupado por florestas montanhescas, de subsolo pobre, geologicamente instável, sujeito a terremotos, vulcões ativos, furacões, chuvas torrenciais e tsunamis, sempre foi extremamente rude à vida e parco em recursos aos habitantes. Embora dotada de rara beleza natural que os nativos tratam com muito apreço, não oferece nenhuma facilidade nem qualquer riqueza ao seu povo, a não ser aquelas que ele constrói por si. Mas o xintoísmo ensina ao japonês que aquela terra foi criada por deuses e ali nasceram seus deuses e sua gente, chamando-a então, "Terra dos deuses" (Atsutane Hirata apud in LITTLETON, op. cit., p. 34). E no fundo de sua alma, o japonês segue acreditando ter sido beneficiado por uma dádiva - poder morar numa terra divina, no paraíso digno de ser berço de deuses -, chamando-a ainda "o País dos Santos Espíritos", "a Terra da Grande Paz" (GRIFFIS, op. cit., p. 72). Não há possivelmente no mundo, nenhum outro povo e sua terra que sejam tão próximos e tão familiares um do outro, como constata Griffis, cuja simplicidade no temperamento é o mesmo de dez séculos atrás (ibidem p. 69). Muitas vezes estranha e mesmo antípoda às crenças das modernas religiões, a doutrinária, anômica, a força da mitologia xintô espalha-se por todo o Japão, modelando desde o nascimento, como uma cicatriz congênita, a personalidade desse povo. A singularidade de formar, sem ensinar; de ensinar, sem falar; de falar, sem dizer; e de sentir, sem compreender, possivelmente é o que nutre o mito e a longevidade e faz estudiosos - muitos, estrangeiros -, se debruçarem sobre os livros que tratam deste e de outros assuntos da cultura japonesa, fortemente enformada pelo Xintô. Por vezes, se simpatizar, como Lévi-Strauss, antropólogo e professor da Usp nos seus primórdios (BARROS, op. cit., p. 129). Simples, mais apreendido na convivência do que entendido, os princípios morais do Xintô bimilenário deram ao nipônico profunda fé, respeito e crença na excelência do homem como produto de origem e da vontade divinas. Fé, entendida como Fromm a descreve, não apenas como "crença em algo, mas a qualidade 40 .de certeza e firmeza que nossas convicções possuem; ... [como] traço de caráter que embebe toda a personalidade" (FROMM, 1990, p. 144). A nação pós-Era Meiji sofreu grande influência da cultura e dos conhecimentos do Ocidente, mas não ofuscou os princípios éticos e consuetudinários de seu nativo xintoísmo: sua teogonia é fonte que alimenta a alma do povo, dotado de "extraordinária vitalidade", como diz R. A. B. Ponson-by Fane (apud in HERBERT, 1964, p. 25). É o que fez o xintoísmo nos últimos dois milênios: fez o nipônico amar sua terra e sua gente, traçou um ideal ético amplo, não especificado, não legislado, não imposto, mas consensualmente tido como a matriz ética do convívio social e do amor à Natureza. Está presente em todos os aspectos do quotidiano, possibilitando ao nativo a realização de suas potencialidades de socialização, o fortalecimento de sua integridade pessoal e sua capacidade de amar. Uma sociedade que trilha o Caminho, resume o ideal do Xintô. "Mens sana in corpore sano" (mente sã em corpo são), diziam os romanos traçando seu homem ideal. "Homo sanus in communitate sana" (homem são em comunidade sã), é o que parece sugerir, sem dizer, o Xintô. GLOSSÁRIO Ainu: nativos do Japão, também chamados Ebisu (bárbaros). De acordo com o último censo, são cerca de 18 mil concentrando-se na Ilha de Ezo. Bugaku: É a dança nativa do gagaku desempenhada por uma corte em ocasiões festivas acompanhada de músicas muito antigas. Daimyô : (lit grande nome) - Nobre, senhor feudal, possuidor de grandes domínios de terras chamados myôden. Dohyô : Arena circular sobre terra batida destinada à luta de sumô. Gagaku: música e dança clássica nativa apreciada na corte imperial, cujo repertório foi trazido da China, Coreia e do sudeste asiático. Gohei: Pequenas tiras sagradas de papel branco utilizadas pelo monge xintoísta nas orações e ritos de purificação. É também utilizado para invocar deuses e repelir desgraças em ritos de exorcismo. Kagura: Dança e música do Xintô. Considerados sagrados, de origem antiga, ainda hoje são apresentados nos santuários xintô em festivais por jovens donzelas que pedem por boas colheitas. Segundo a mitologia, sua origem deve-se à deusa Ameno-Uzume-no41 .mikoto que dançou alegremente para atrair a deusa Amaterasu para fora da caverna onde havia se recolhido. Kanpaku: Principal conselheiro do Imperador encarregado de representá-lo e transmitir sua palavra em encontros importantes. Era o intermediário entre o Imperador e membros do governo. Na prática era o regente geral, o que exercia de fato o poder. Mikoshi: Andor, santuário portátil. Considera-se que a divindade repousa no seu interior durante as festividades, quando é carregada pelas ruas. Seu divino poder purificador protege dos maus espíritos e abençoa o ambiente por onde passa. Shogun: (lit enviado para combate aos bárbaros) - Termo abreviado do original Sei-itaishogun (comandante em chefe de combate aos bárbaros), aportuguesado para xogum. O título concedido pelo Imperador Gotoba era hereditário aos descendentes de Yoritomo Minamoto, considerado de fato o primeiro xogun, embora o título tivesse sido concedido no ano 720 a Tajihi no Agatamori pelo imperador Gotoba. Oda Nobunaga (1534-1582) era descendente dos Taira e Toyotomi Hideyoshi era plebeu, razão por que não obtiveram o título de xogum.
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