Xintoísmo. Bushidobr.com. MITOLOGIA
E INFLUÊNCIA na formação da cultura e do carácter do povo japonês. Parte III. O
conceito de michi. Derivado do Tao chinês (mesmo kanji - 道 -
), definido como "a essência de todas as virtudes,[...] o que está perto,
ao alcance das mãos e que erroneamente os homens o procuram longe"
(HARADA, op. cit., p. 55). Discorre Yang Chu e Hu Shi sobre o Tao: A natureza é
a atividade natural, o silente fluir dos acontecimentos tradicionais, a
majestosa ordem das estações e do céu; é o Tao, ou o Caminho, corporificado e
exemplificado em cada fonte, rocha ou estrela; é essa impessoal, imparcial
e, no
entretanto, racional lei das
coisas, com a qual a lei da conduta do homem tem que se conformar, caso ele
deseje viver em sabedoria e paz. Esta lei das coisas é o Tao ou o caminho do
universo, do mesmo modo que a lei da conduta é o Tao
ou o caminho
da vida; na verdade, pensa Lao-Tze, os dois Taos são um só, e a vida humana, em seus ritmos essenciais e
normais, faz parte do
ritmo do universo (Yang, Chu,
16, 19. Schneider, ii, 810, Hu Shih, 14 in
WILHELM, R., Short story of chinese civilization, New York, 1929 apud
in DURANT, 1942, p. 185-186). Confúcio falando mais diretamente sobre o Tao
como conduta do homem, dizia que Caminho é a harmonia com as coisas da
natureza, que provêm do Céu: Sinceridade é o Caminho do Céu; realizar a
sinceridade é o Caminho do homem. Aquele que possui a sinceridade é quem, sem
esforço, faz o que é certo e compreende sem necessidade do pensamento: ele é o
sábio que natural e facilmente incorpora o Caminho (m. t. apud in HARADA, op.
cit., p. 54). Numa cultura em que os deuses são extremamente abundantes
(fala-se em 800 ou 8000 as divindades do Xintô), mas cujos desejos em relação
ao homem é apenas um, o japonês o resume em apenas um conceito: “michi”,
caminho ou via. Seguir a via dos deuses, é a mensagem indelével fortemente introjetada
no inconsciente coletivo desse povo, o que molda seu caráter, pensamento e a
vida. As artes, a cultura e os esportes de origem nipônica trazem esta
mensagem: shodô (書道) é o caminho da escrita; kadô (花道)ou(華道),
o caminho das flores ou dos arranjos florais também conhecido como ikebana;
kadô (歌道), com outro kanji para “ka” significando poesia, é o
caminho da poesia ou a arte do poeta; butsudô (仏道), o caminho
dos ensinamentos budistas; sadô ou chadô (茶道), o caminho
do chá ou a arte da cerimônia do chá; kendô (剣道), o caminho
da espada; judô (柔道), caminho suave ou caminho da luta suave; karatê-dô (空手道),
caminho da arte marcial de mãos vazias. “Michi”, caminho ou via, guarda
estreita relação com o comportamento do nipônico. Embora impreciso, amplo e
vago, como sói nos conceitos dessa cultura, para 15 .o japonês, “michi” não
precisa ser explicitado, definido, ensinado nem imposto: é algo que lhe parece
claro, sem necessidade de palavras para se conceituá-lo. É, muito
possivelmente, o termo mais antigo e de mais largo significado dentro da ética
e da religião na cultura japonesa, "uma inconsciente observância do
Caminho" (HARADA, op. cit., p. 48). Ao homem de michi regras morais ou
conjunto de mandamentos não lhe parecem necessários. Suas ações são livres e
sua autoexpressão, nessa condição de natural liberdade, está mais
verdadeiramente de acordo com o Caminho (ibidem p. 50). Ele entenderá com o
coração e aprenderá na convivência que seguir a “via dos deuses” é seu caminho
natural: é portar-se como um deus, é sentir plenamente seu deus interior, ou
seja, internamente é onde está o controle moral, inato ao homem, independendo,
pois, de controle externo por leis e normas. Estar no Caminho é apenas seguir
sua natureza, seu impulso natural. Estar fora do Caminho constitui um insulto,
significa acusar alguém de levar vida errante (HARADA, op. cit., p. 49). A
natureza das coisas é determinada por leis divinas. Estar em harmonia com a
Natureza é estar no Caminho (ibidem p. 50-51). "Kami nagara no michi"
- ou a Via dos deuses - é apenas o estado natural das coisas, onde inexiste a
ideia do certo ou errado, ou seja, a ética e a moral não entram na apreciação.
Os deuses venerados e os maus espíritos são igualmente reverenciados, o que
torna desimportante um enquadramento ético para esses seres. A ética ou a sua
ausência, ainda que temporária, é aceita como natural aos deuses, tal qual nos
humanos. Não que seja impossível apreciar sob esse ângulo - na mitologia, os
principais deuses têm seus momentos de cólera ou decepção - , mas o xintoísmo
não se ocupa disso, porque não tem importância, não é significante, ensina
Nyozekan Hasegawa (HASEGAWA, 1939, p.10). Ao japonês como crença e prática do
xintoísmo, basta-lhe estar no Caminho, ou seja, ser naturalmente si próprio. O
japonês primevo era já um ser despreocupado com o enquadramento ético, era
"naturalmente puro, santo e correto", afirmava Griffis (GRIFFIS, op.
cit., p. 72). O japonês não se sente vigiado, não conhece punição e recompensa
como mecanismos ligados às ações provenientes
do seu arbítrio. Não existe a ideia de que deuses punem comportamento contrário
à sua vontade e premiam os que lhes obedecem. "Recompensas e punições não
são oferecidas como meio de tornar o homem bom" (HITCHCOCK, 1893, p. 503).
Nesse sentido, inexiste uma pedagogia divina para a educação do homem. 16 .Muro
Kiuso considera o amor como a essência do Caminho, a virtude cardeal.
"[...] assim como o homem morre quando seu pulso para, então também, seu
coração morre quando o princípio do amor perece. Por isso o amor pode ser
chamado a vida do coração" (apud in op. cit. HARADA, p.58). Ainda com foco
na naturalidade interior, Nakae-Toju identifica o Michi com "a verdade
adquirida com o conhecimento de si mesmo" que provém não do mundo à nossa
volta nem de livros, senão do nosso próprio interior, isto é, "da nossa
alma" (idem). O conhecimento então está no nosso interior, na nossa alma
divina. Para esse comentarista o Caminho é algo imanente, invisível,
imperceptível, mas onipresente em nossas vidas. "É o que habita no
universo, assim como a alma habita o homem". (ibidem p. 61) Seguir o
caminho não é obedecer, se submeter à vontade de um ser superior; é apenas
viver, ser si próprio. Tão natural como apreciar flores da cerejeira: para isso
não é preciso nada, apenas o coração em sintonia com a beleza da flor, ou como
dizem os zen-budistas e haicaístas, sentir seu coração, uma flor de cerejeira.
(D. T. SUZUKI in FROMM, 1960, p. 13, 21). Para o homem nipônico “michi” é mais
do que conceito filosófico, regra de vida ou mandamento religioso. É a própria
essência da vida. Na sua obra “The Faith of Japan”, o professor Tasaku Harada,
assim se expressa a esse respeito: Por michi, a via, entende-se um conceito
misterioso, não formulado, e, todavia, influente, que é acompanhado de terror
religioso e de solenidade. O termo michi é provavelmente o mais expressivo de
todo o vocabulário japonês em matéria de ética e de religião. A princípio, e
como na língua corrente, significa carreira ou caminho. Em religião e em ética,
significa via, ensinamento, doutrina ou, como às vezes se traduz, princípio. (O
seu equivalente chinês é tao). Na sua presença, respira-se uma atmosfera
edificante. Um homem de michi é um homem de caráter, um justo, que tem
princípios e convicções e que obedece à natureza da sua humanidade. Acusar
alguém de se ter afastado do michi é um insulto, porque isso implica
perversidade para com aquilo que existe de mais essencial no homem. Michi é uma
componente recebida do Céu, é o ideal celeste que deve ser realizado na
humanidade. Michi é também o modo de vida que nos é dado como ideal e que
aceitamos seguir. Diz-se que o confucionismo é o michi dos sábios e dos
sensatos, o budismo o michi de Buda, o xintô o michi dos kami. A moralidade é
michi, a harmonia entre a vida e o ideal, e considera-se mesmo que a razão
constitui a essência do michi. Mas, seja qual for o sentido em que se empregue,
michi exprime uma convicção muito profunda e sincera que liga o indivíduo, de
maneira solenemente impressionante, à altura e à profundidade do grande Todo.
Ele implica que a essência da vida humana se liga a uma vida sobre-humana. Num
poema de Michizane Sugawara, lê-se: “Se no secreto do nosso coração/ Seguirmos
a via sagrada/ Os deuses certamente nos terão em sua guarda/ Mesmo que nunca
lhes dirijamos nenhuma oração”. [...] kannagara representava o ideal religioso
do povo, “uma obediência inconsciente à via”, que julgavam existir desde tempos
imemoriais. Agir em conformidade com o curso da Natureza, sem esforço
consciente, obedecendo ao impulso que nos sugere a nossa constituição, é, para
o xintô, a mais elevada virtude. Esse curso da Natureza é a vontade dos 17
.deuses. A vontade dos deuses realiza-se
em tudo o que age naturalmente. Encontramos aí uma extrema simplicidade, uma fé
total na justeza do que é natural. Tal é o coração do michi japonês ( HARADA,
op. cit., p.50 traduções de José Pinto apud in op. cit. ROCHEDIEU, p. 108-109).
O santuário xintô e o culto Como vimos, nascido e cultuado no meio da natureza,
os santuários são invariavelmente localizados em meio a árvores, alguns no meio
de florestas, perto de montanhas ou corrente de água. É comum a veneração de
árvores no Xintô. Em tempos antigos, o termo mori (floresta) era sinônimo de
santuário e as árvores do entorno, chamadas de kannabi (abrigo dos deuses)
(ONO, op. cit., p. 98). Diante dos santuários, sem que se compreenda nada,
pode-se ser um adorador, impressionar-se com as indefectíveis árvores, o lago,
o ambiente, independentemente da especificidade que sustente aquele santuário
(HERBERT, 1964, p. 24). Nos santuários não se dá importância ao aspecto
filosófico ou doutrinário que sustentam a fé, mas aos fatos históricos e
costumes que o envolvem. Quase nada se encontra que fale sobre a natureza do
kami, dos ritos e práticas do santuário (ONO, op. cit., p. 92). O estudioso
Yanagita Kunio afirma que “não há nos santuários xintoístas instrução
doutrinária e só se aprende o xintoísmo pela convivência e pelo exemplo”(apud
in BARROS, 1988, p. 46). O santuário e seus ritos, aceitos como símbolos da fé
comunitária, ao mediarem a relação do
homem com os deuses, faz as instruções doutrinárias desnecessárias (ONO, op.
cit., p. 11) De fato, os japoneses mais seguem os exemplos e tiram lições de
conduta das personagens mitológicas do que obedecem a alguma instrução ou
mandamento. Não há combate do mal com o bem. Nos seus primórdios também não
havia necessidade de templo ou santuário. Como vimos, as celebrações eram
feitas ao ar livre, geralmente à beira de um rio, cachoeira ou no elevado de
uma colina, num espaço cercado para esse fim. Fala sobre o santuário xintô Jean
Herbert: O templo xintô é uma manifestação visível e sempre eficaz da relação
de consanguinidade que existe entre o indivíduo e o mundo inteiro, a
humanidade, os seres vivos e não vivos, os mortos, a terra toda, os corpos
celestes e os deuses, qualquer que seja o nome que se lhes dê. A pessoa que
entra no templo torna-se mais ou menos consciente, inevitavelmente, desta
relação íntima e, a certa altura, dá-se conta de que todos os sentimentos de
ansiedade, de antagonismo, de solidão, de desânimo, desaparecem, do mesmo modo
que a criança vem repousar tranquilamente nos braços da mãe. Uma sensação quase
palpável de paz e de segurança invade o visitante à medida que vai avançando
para o interior do recinto sagrado .... ( HERBERT, 18 .1964, p. 155-156, tradução de José Pinto apud in op. cit. ROCHEDIEU, p. 129-130). Produto desse
sentimento de irmandade, o xintoísmo "é essencialmente o credo que afirma
a vida", e trata muito pouco da morte e do mundo pós-morte. (LITTLETON,
op. cit., p. 89). Suas cerimônias e ritos comemoram não apenas o cotidiano do
indivíduo como nascimento, aniversário e casamento, mas também os da comunidade
e da nação (ONO, op. cit., p. 50). Crê-se no xintoísmo que o tama (espírito)
por algum tempo ainda exerça influência na vida antes de se tornar um
antepassado kami (entidade elevada, deus) da família à qual pertenceu, o que dá
raízes identitárias à ancestralidade da família ou do clã. (idem). Alguns se
tornavam até mesmo o kami venerado por trabalhadores de sua guilda. (HEARN,
1984, p. 124) Os aprendizes eram introduzidos no trabalho e no culto ao kami de
seus colegas (ibidem p.125). Havia profunda identificação entre o trabalho e o
Xintô. O carpinteiro vestido como monge xintô, invocava a proteção de deuses e
realizava certos ritos ao designar o local de sua obra (idem). O alfageme
submetia-se a ritual religioso na confecção de sua espada: "trabalhava vestido como monge,
submetia-se a ritos de purificação enquanto trabalhava para obter uma boa
lâmina". Seu local de trabalho era protegido pela corda sagrada shimenawa,
onde não entrava nem seus familiares e só se alimentava de comida preparada no
fogo sagrado. Durante seu trabalho não falava com ninguém, nem mesmo com gente
de sua família (idem). O culto extremamente simples, é feito diante de um
oratório doméstico (kamidana). Crê-se que os espíritos (kami e ancestrais)
protegem sua família e "não deixam de servir ao seu senhor, aos pais, à
esposa e aos filhos, como quando estavam ainda em vida" (Hirata apud in
BRILLANT et alii, op. cit., p. 183). O kamidana deve estar sempre limpo e
imaculado. Oferecem-se geralmente pequenas porções de comida e água; é costume
também oferecer coisas de que o morto gostava
(ONO, op. cit., p.59). Porta-se como se o familiar venerado estivesse
ainda vivo, oferecendo-lhe ou comunicando-lhe promoções, recebimento de
salários, diplomas, nascimentos, casamentos e todo fato importante da família,
como expressão de agradecimento (idem). Idealmente o ritual deve ser diário,
mas não se lhes devotam mais do que os cumprimentos e gentilezas que fazemos
quotidianamente aos nossos familiares. As crianças costumam fazer a comunicação
no kamidana de suas notas escolares, antes mesmo de exibi-las aos pais
(HERBERT, 1964, p. 250). Sobre o culto familiar, discorre Wenceslau: [...]os
avós, pelas suas próprias virtudes durante a apagada existência, e pelas
propiciações que os vivos lhes tributam, no desempenho dos ritos familiares.
Abraço. Davi
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