Cristianismo. Livro Imitação
de Cristo. Por Tomas de Kempis (1380-1471). AVISO ÚTEIS PARA A VIDA ESPIRITUAL.
Parte V. 19. O exercício do bom religioso. A vida do bom religioso deve ser
ornada de todas as virtudes. Para que corresponda o interior ao que fora veem
os homens. E com razão, ainda mais perfeito deve ser no interior do que por
fora parece, pois lá penetra o olhar perscrutador de Deus. A quem devemos suma
reverência, em qualquer lugar onde estivermos, e em cuja presença cumpre andar
com pureza angélica. Cada dia devemos renovar nosso propósito e exercitar-nos
com o maior fervor, como se esse fosse o primeiro dia de nossa conversão,
dizendo: Confortai-me, Senhor, meu Deus, no bom propósito e em vosso santo
serviço. Concedei-me começar hoje deveras, visto que nada é o que até aqui
tenho feito. A medida da nossa resolução será nosso progresso, e uma grande
solicitude exige o sério aproveitamento. Se aquele que toma enérgicas
resoluções tantas vezes cai, que será daquele que as toma raramente ou menos
firmemente propõe? Sucede, porém, de vários modos deixarmos o nosso propósito,
e raras vezes passa sem danos qualquer leve missão de nossos exercícios. O
propósito dos justos mais se firma na graça de Deus, que em suas próprias
sabedorias, nela confiam sempre, em qualquer empreendimento. Porque o homem
propõe, mas Deus dispõe “e não estão nas mãos do homem os seus caminhos”
(Jeremias 10,23). Quando, por motivo de piedade ou proveito do próximo, se
deixa alguma vez o costumado exercício, fácil é reparar depois essa falta.
Omiti-lo, porém, facilmente, por enfadado ou negligência, já é bastante
culpável, e sentir-se-á o prejuízo. Esforcemos quanto pudermos, ainda assim
cairemos em muitas falhas. Contudo, devemos sempre fazer um propósito
determinado, mormente contra os principais obstáculos do nosso progresso
espiritual. Devemos examinar e ordenar tanto o interior como o exterior, porque
ambos importam ao nosso aproveitamento. Se não podes continuamente estar
recolhido, recolhe-te de vez em quando, ao menos uma vez por dia, pela manhã ou
à noite. De manhã toma resoluções e à noite examina tuas ações: como te
houvesse hoje em palavras, obras e pensamentos, porque nisso, talvez não raro,
tenhas ofendido a Deus e ao próximo. Arma-te varonilmente contra as maldades do
demônio. Refreia a gula, e facilmente refrearás todo apetite carnal. Nunca
estejas de todo desocupado, mas lê ou escreve ou reza ou medita ou faze alguma
coisa de proveito comum. Nos exercícios corporais, porém, haja toda discrição,
porque não convêm igualmente a todos. Os exercícios pessoais não se devem fazer
publicamente, mais seguro é praticá-los secretamente. Guarda-te de ser
negligente nos exercícios da regra e mais diligente nos particulares. Todavia,
satisfeitas inteira e fielmente as coisas de obrigação e preceito, se tempo
sobrar, ocupa-te em exercícios, conforme te inspirar a tua devoção. Nem todos
podem ter o mesmo exercício, um convém mais a este, outro aquele. Até do tempo
depende a conveniência e o atrativo das práticas. Porque umas são mais
apropriadas para os dias festivos, outras para os dias comuns. De umas
precisamos para o tempo de tentação, de outras no tempo de paz e sossego. Em
certas coisas gostamos de meditar quando estamos tristes e noutras quando
estamos alegres no Senhor. A volta das festas principais devemos renovar os
nossos bons exercícios e com mais fervor implorar a intercessão dos santos. De
uma para outra festividade devemos preparar-nos, como se então houvéssemos de
sair deste mundo e chegar à festividade eterna. Por isso, devemos aparelhar-nos
diligentemente, nos tempos de devoção, com vida mais piedosa e observância mais
fiel de todas as regras, como se houvéssemos de receber em breve o galardão do
nosso trabalho. E se for adiado essa hora, tenhamos por certo que não estamos
ainda bem-preparados, nem dignos de tamanha glória que, a seu tempo, se
revelará em nós, e tratemos de nos preparar para a morte. “Bem-aventurados o
servo – diz o evangelista Lucas – a quem o Senhor, quando vier, encontrar
vigilante. Em verdade vos digo que o constituirá sobre todos os seus bens”.
(Lucas 12,37 e Mateus 24,47). 20. O amor à solidão e ao silêncio. Procura tempo
oportuno pra cuidar de ti e relembra amiúde os benefícios de Deus. Renúncia as
curiosidades e escolhe leituras tais, que mais sirvam para te compungir que
para te distrair. Se te abstiveres de conversações supérfluas e passeios
ociosos, como também de ouvir novidades e boatos, acharás tempo suficiente e
adequado para te entregares a santas meditações. Os maiores santos evitavam,
quando podiam, a companhia dos homens, preferindo viver com Deus, em retiro.
Disse alguém: Quantas vezes estive entre homens, volvi menos homem”
(Sêneca).Isso experimentamos muitas vezes, quando falamos muito. Mais fácil é
calar de todo do que não tropeçar em alguma palavra. Mais fácil é ficar oculto
em casa, que fora dela ter a necessária cautela. Quem, pois, pretende chegar à
vida interior e espiritual, importa-lhe que se afaste da turba, com Jesus.
Ninguém, sem perigo, se mostra em público, senão quem gosta de esconder-se.
Ninguém seguramente fala, senão quem gosta de calar. Ninguém seguramente manda,
senão o que perfeitamente aprendeu a obediência. Não pode haver alegria segura
sem o testemunho de boa consciência. Contudo, a segurança dos santos estava
sempre misturada com o temor de Deus. Nem eram menos cuidadosos e humildes em
si mesmos, porque resplandeciam em grandes virtudes e graças. A segurança dos
maus, porém, nasce da soberba e presunção, e acaba por enganar-se a si mesma.
Nunca dês por seguro nesta vida, ainda que pareças bom religioso no devoto
ermitão. Muitas vezes, os melhores no conceito dos homens correram graves
perigos, por sua demasiada confiança. Por isso, para muitos é melhor não serem
de todo livres de tentações, mas que sejam frequentemente combatidos, para que
não confiem demasiadamente em si. Nem se exaltem com soberba, nem tampouco
busquem com ânsia as consolações exteriores. Oh! Quem nunca buscasse alegria
transitória, nem deste mundo cuidasse, que consciência pura teria! Oh! Quem
arredasse tudo vão cuidado para só cuidar das coisas salutares e divinas, pondo
toda a sua confiança em Deus, de que grande paz e sossego gozaria. Ninguém é
digno da consolação celestial, senão quem se excitar, com diligência, na santa
compunção. Se queres compungir-te de coração, entra em teu quarto, despede todo
o bulício do mundo, conforme está escrito: “Compungi-vos em vossos cubículos”
(Salmos 4,5). Na cela acharás o que fora dela muitas vezes perdes. A cela bem
guardada causa doçura e pouco frequentada gera enfado. Se bem a guardares e
habitares no princípio de tua conversão, ser-te-á querida companheira e
suavíssimo consolo. Abraço. Continuar página 33. No silêncio. Davi
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